A MÍSTICA DA FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

Transmitiu-me Eduardo Araujo o convite da Turma para estarmos juntos aqui, neste mesmo lugar onde há 40 anos – 1971 terminava uma etapa da vida de vocês – a etapa como estudantes universitários da Faculdade de Direito do Recife, para começar a desconhecida, incerta, desafiadora viagem pelo mundo próprio aos bacharéis em Direito, que para o iniciante era, e continua sendo, cheia de encruzilhadas, de bifurcações que exigem escolhas;  de dificuldades, algumas vezes de decepções. Mas, sobretudo, de esperança e a esperança é própria dos jovens que vocês e eu éramos então.

Perguntei a Eduardo como seria a solenidade, respondeu-me – simples. Gostei. Gosto das coisas simples, das pessoas simples, dos encontros simples. A mim, parecem-me mais bonitos porque são mais verdadeiros. E se estamos reunidos, com simplicidade,  40 anos depois da despedida é porque ficou algo muito importante daquele tempo dentro de cada um de nós.

O fato de lhes falar com um texto escrito, por favor, não tomem por formalismo, mas pelo desejo de fazer algumas colocações e recordar um pouco daquele tempo, o que sempre me causa emoção.

Na realidade a ligação de vocês, a nossa ligação, a esta Casa é mística – este nosso santuário, que com uma intimidade irreverente sempre chamamos afetuosamente a “Casa de Tobias”, é muito forte. Chegamos todos, ou quase todos, com entusiasmo imenso, um desejo de transformar o mundo, de fazer Justiça – de todas as formas, a Justiça social para os embalados por ideologias da época; a Justiça pelo Direito, através da aplicação da lei que acreditávamos tinha na sua letra, o certo, o adequado a regular os atos da vida e à solução dos conflitos.

Mas, esta Casa, por sua tradição, já então mais que centenária, também era uma Escola de formação política, de formação de jornalistas, de escritores. Quando nasceu em 1827 não foi apenas para formar aplicadores do Direito ou fazedores de leis, nem só para substituir Coimbra. Mas tornou-se um centro cultural catalisador de mentes e divulgador de idéias, no país nascente. E esta característica da nossa formação nesta Casa, deve ser preservada, por mais que se multipliquem as Faculdades de Direito ou se tenham desdobrado em cursos específicos como novas profissões.

Penso que guardar a visão ampla do mundo, das idéias e das coisas, o que era ainda mais forte há quatro décadas, é uma das razões que nos fazem voltar. Os cinco anos vividos entre estas mesmas paredes, não saíram de dentro de nós, até mesmo se pensarmos que aquele tempo é passado. Não é, aquele tempo  também é o nosso presente, aquele tempo nos acompanhará sempre.

Quem poderá esquecer as aulas daqueles grandes Mestres que tivemos? Tenho medo de nominá-los por causa de algumas omissões que certamente ocorrerão, mas antecipadamente peço perdão à memória daqueles a quem não mencionar. Ouso lembrar: logo no primeiro ano depois do esforço do vestibular (que felizmente não era de marcar “x”), mas de decorar as Catilinárias para a prova de Latim. Deparávamos com: o Prof. JJ de Almeida e seus assistentes, como eram chamados, chegando à sala de aulas com ritual quase o de sacerdotes subindo ao altar, e nós nem pestanejávamos. Um Lourival Vilanova, acompanhado por Nelson Saldanha e Bernadete Pedrosa – não tínhamos a percepção do privilégio que era sermos alunos deles. Direito Romano, o Prof. Mário Baptista, com os Códigos de Justiniano e Papiniano colocava séculos de História e de Direito diante de nós. Vinha em Economia Política: os jovens Vamireh Chacon, Roberto Cavalcanti e Germano Coelho. Seguíamos o percurso das salas. O Prof. Pinto Ferreira, ainda hoje referência não só no Direito Constitucional, continua citado permanentemente e o Prof. Palhares Moreira Reis, cada dia mais produtivo com obra sempre atualizada.

Em Penal, poder-se-ia ser aluno de Everardo Luna, como na minha Turma, ou de Ruy Antunes, como a de vocês. Prof. Ruy conseguia imprimir uma marca nos seus alunos nos dois anos de ensino da matéria, que naquela época eram destinados ao Direito Penal. Tanto assim que sempre era eleito paraninfo, patrono ou nome de Turma. Prof. Ruy conseguia ser próximo dos alunos e ao mesmo tempo se colocar no lugar do grande jurista penalista que era. Acompanhado de Antonio Luís Lins de Barros que aliava o saber jurídico com a grande atuação na área do Direito Penitenciário em Pernambuco. E seguíamos, em Comercial, se poderia ser aluno de Pashaus; Murilo Guimarães, e seus assistentes, Roberto Magalhães, Jose Arthur Latache e destaco Sileno Ribeiro, inteligência brilhante, que encantava, e que foi escolhido por vocês, o paraninfo desta Turma.  Ainda em Comercial estavam: Otavio Lobo, Rodolfo Araujo (boníssima criatura) com o prof. Ajuricaba e o seu navio debaixo do braço – as avarias, bombordo, boreste e ia ele e o seu Direito Marítimo, de vento em popa. Os de Direito Civil – Mário Baptista, Rosa e Silva Sobrinho, Artur Cesar Pereira, Olimpio Costa Júnior, Silvio Neves Baptista e tantos outros. Os de Processo Civil – Moura Rocha, com obras excelentes publicadas ou Luís Rodolfo Araujo que morreu tão cedo. Medicina Legal, prof. Percivo Cunha; Trabalho, Gentil Mendonça, um poeta; no Direito Administrativo, o Prof. Luís Delgado (o pai) de uma seriedade ímpar, o filho José Luís migrou para outras disciplinas; no Processo Penal, Nilzardo Carneiro Leão – também sabia ser amigo dos alunos; Direito Internacional Privado, Prof. Silvio Loreto, tranqüilo, educado, procurava deslindar as complicações da sua disciplina; Direito Financeiro, Prof. Hilton Guedes Alconforado e Manuel Varejão que infernizava Ricardo Costa Pinto quando o assunto era a prevalência dos Tratados em matéria Tributária.

Deixei para o fim o Direito Internacional Público: Marcos Vilaça e eu. Ninguém se interessava muito pela matéria, pois a guerra ainda não tinha saído da cabeça dos internacionalistas. A reconstrução doutrinária da paz, num mundo dividido em blocos, era uma incógnita. Falávamos em Institutos que vinham do século XIX. Certa feita, quando havia prova oral, um aluno nada respondeu às questões feitas pelo Professor Mário Pessoa (que era o catedrático). Eis que o mestre foi surpreendido com uma explicação ousada do estudante: “professor, Direito Internacional tem um caso a cada século, o deste século (XX) foi o do navio português Santa Maria que veio parar no porto do Recife e o senhor foi o advogado. O que vai sobrar para mim?”. Terminou aprovado.

Noutra oportunidade, mais adiante, fui procurada pelo Prof. Rosa e Silva, com ar de decepção para me dizer que a sua filha Regina desejava ficar comigo em Direito Internacional, e não em Direito Civil, sua matéria. E complementou com desalento, o Direito Internacional é para as mulheres e para os poetas, são sonhadores!

Passaram-se tantos anos, não arredei o pé, sempre fiel, acreditando no Direito Internacional, na intensificação do comércio e das relações internacionais, na transformação das formas políticas de organização da sociedade internacional, desejando a paz, embora soubesse que ela não estaria em todas as partes. Lutando pelos Direitos Humanos e o pelo reconhecimento da personalidade internacional do indivíduo. Como os fatos mudaram neste campo! Felizmente, muito do que era apenas sonho hoje já é realidade, embora ainda falte bastante a se realizar. Espero que eu tenha conseguido deixar naquele tempo, pelo menos, uma semente de paixão pelo mundo, de paz e de amizade entre os povos.

Não posso contar sobre a convivência da Turma – disto vocês sabem muito mais que eu, as suas brincadeiras, os seus estudos, as trelas de alguns, os amores feitos e desfeitos – às vezes emprestava os meus ouvidos para as confidências, as lamentações e dizia aquelas palavras de compreensão! E assim, me tornei tão próxima de tantos aqui. Mas tempo passou.

Hoje vocês voltam – aqui estão as paredes, as salas, o terraço, os bancos de madeira, que povoam a nossa imaginação de lembranças. Tudo sendo restaurado depois de um longo abandono. A Casa parece reviver, este salão reflete um tempo, aquele nosso tempo. Vocês voltam, mais não estão todos como há 40 anos – o tempo os dispersou, muitos se foram para outras plagas, outros na fatalidade do caminho sem volta. Pelo coração, certamente agora procurarão ouvir algumas vozes, rever algumas figuras, que não mais encontrarão. As Parcas inclementes levaram muitos, muitos dos mestres aqui lembrados. Mas eles deixaram as obras, os exemplos e as lições, por isso não serão esquecidos.

Mas, alguns aqui estão, como eu – se os cabelos não estão cobertos com a neve do tempo é porque a vaidade feminina a esconde. Mas estou para recebê-los, como me despedi há 40 anos, afetuosamente. Esta noite – é de saudade, mas também de alegria por este reencontro com tantos amigos e colegas que souberam escolher nos atalhos da nossa profissão e da vida, o melhor caminho.  Alegria de vê-los, os que vieram, sentindo a presença dos que partiram  – professores e alunos – e poder dizer-lhes não a mesma mensagem de 40 anos passados, mas lhes desejar que continuem no caminho que traçaram, mas saibam renovar-se na profissão e na vida, com a sadia obstinação dos que sempre procuram mais um objetivo a alcançar, como uma razão de viver, de servir, de ser feliz e de fazer Justiça.

Meu afetuoso e caloroso abraço.


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