A proteção constitucional à privacidade, intimidade e vida privada e o direito ao esquecimento

CONGRESSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL

CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO PROFESSOR PINTO FERREIRA

TEMA: A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA E O DIREITO AO ESQUECIMENTO

LOCAL: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 5ª. REGIÃO

DATA: 9 DE NOVEMBRO DE 2018 – ÀS 20:20

PALAVRAS DE: MARGARIDA CANTARELLI

Senhoras, Senhores,

Quero externar os meus agradecimentos aos Organizadores deste Congresso pelo convite que me foi feito para participar de tão importante evento.

Para mim é uma honra estar incluída entre os que homenageiam o Professor Luís Pinto Ferreira pelo transcurso do centenário do seu nascimento. Além da amizade pessoal – o que acho muito relevante, tenho pelo Professor Pinto Ferreira um grande respeito e admiração – foi um jurista completo, um dos últimos representantes da Escola do Recife que tanto elevou a nossa Faculdade de Direito. Embora o Professor Pinto Ferreira seja mais conhecido como constitucionalista, mas a sua obra bem comprova o quanto contribuiu para outros ramos do Direito, como o Eleitoral, o Processo Civil e todos que dedicou obras referenciais. Foi também ocupante de uma das cadeira da Academia Pernambucana de Letras.

O nosso tema: A Proteção Constitucional à Privacidade, Intimidade e vida privada e o Direito ao Esquecimento é atualíssimo. Nunca um assunto esteve tanto nos noticiários, na mídia em geral – nas tão famosas Redes Sociais. Até o tema da dissertação do ENEM na prova do dia 4, se referia à internet e suas interferências. Mas, lamentavelmente, essa evidência decorre das constantes violações a direitos, como das pequenas possibilidades de coibi-las ou de punição. Muitos aspectos da primeira parte do assunto – a proteção à privacidade, à intimidade e vida privada, pareciam assente na doutrina e jurisprudência pátria. É inconteste que o ser humano deve ter assegurada a sua privacidade.

Mas, o mundo mudou tanto e tão rapidamente – pela tecnologia, especialmente na transmissão da dados, imagens, formas de comunicação que conceitos consolidados precisaram ser revistos, repensados. Sempre afirmo, não se trata de novos princípios, nem de novos crimes. Não. São apenas novas formas de se praticarem velhos crimes. E tudo isto tem a ver com a preservação da dignidade humana. A tecnologia permite que uma pessoa seja atingida na sua honra, na sua reputação com a facilidade de poucos “clics” num computador. Os duelos, ficaram para os filmes históricos; a troca de insultos, entre dois ou poucos desafetos, são formas do passado! Mesmo uma matéria publicada, alcançava um número limitado de leitores. Mas hoje, uma postagem alcança imediatamente incontável número de outras pessoas – milhares, milhões até, e onde o anonimato (ou o encobrimento da autoria) quase sempre é a regra. Como também a tutela preventiva e atenuante, exigindo que cesse ou pare a ameaça ou a lesão, quase nenhum efeito produz. E se produz já é tardio, ficando no máximo para a tutela indenizatória.

Se, por um lado cresce a importância dos Direitos Humanos no campo Internacional, e no âmbito constitucional, dos Direitos Fundamentais, dentre os quais – a privacidade/intimidade, por outro lado, as novas tecnologias permitem uma exposição tamanha de cada um de nós que se tornou um tema, como disse, de evidência nos nossos dias.

                       Entendo que direta ou indiretamente – o direito à privacidade (intimidade e correlatos) sempre apareceu nos textos legais quando assegurava a inviolabilidade do domicílio, o sigilo da correspondência e proibia o anonimato. O Direito Penal tipificando os crimes contra a Honra: injuria, calunia e difamação, punia quem violasse a privacidade, a imagem e a dignidade de outro. As violações de domicílio e de correspondência tinham tipos penais previstos. E ainda a tutela privada, como a legítima defesa, inclusive da honra. Merece destaque o Processo do escravo Tomás, acusado da morte do seu senhor, e defendido em Júri no Recife pelo estudante de Direito – Joaquim Nabuco que invocou pela primeira vez no Brasil a tese da Legítima Defesa da Honra de um escravo, conseguindo a aplicação de uma pena menor. Ainda o Direito de Resposta e as indenizações por danos materiais e morais sofridos.   

Do ponto de vista Constitucional, já encontramos na primeira Constituição brasileira, de 1824, no art. 179 que garantia a inviolabilidade dos Direitos Civis, no inciso VII, que: “todo cidadão tem em sua casa um asilo inviolável…” e fixava diversas hipóteses: à noite não se poderá nela entrar sem o seu consentimento, salvo para defende-lo de incêndio ou inundação e durante o dia, só nas formas determinadas pela lei; e está no inciso XXVII: “o segredo das cartas é inviolável. A administração do Correio fica rigorosamente responsável por qualquer infração deste Artigo”. 

         A República, com a Constituição de 1891 que tantas modificações trouxe ao Estado brasileiro, neste aspecto porém, fez algumas inovações, como: na Declaração de Direitos, no art.72, assegura a garantia dos direitos a brasileiros e estende a estrangeiros residentes no país; no parágrafo 11, estabelece a inviolabilidade da casa como asilo do indivíduo, incluiu à noite, no ingresso sem consentimento, além dos desastres, às vítimas de crimes) e, ainda, no parágrafo 18, o sigilo da correspondência. Além desses, incluiu no parágrafo 12, que trata da livre manifestação do pensamento, a proibição do anonimato.

A Constituição de 1934 – aos moldes de Weimar, que introduziu a democracia social, não fez grandes mudanças nesses três pontos: art.113, 8, mantem a inviolabilidade do sigilo de correspondência; no 9, a proibição do anonimato e no 16, refere-se à casa como asilo inviolável do indivíduo.

A de 1937, Constituição outorgada e restritiva em direitos e garantias, colocou no art. 122, que os assegurava apenas aos brasileiros residentes no país; num mesmo inciso 6, trata da inviolabilidade do domicilio e de correspondência, salvas as exceções expressas em lei. Mais restritiva ainda com a imprensa, fixa no inciso 15, “c”, o direito gratuito de resposta, e no “d” a proibição do anonimato.

Veio a 2ª Guerra Mundial, e no pós guerra a Constituição de 1946, num país redemocratizado, fez voltar, no art.141, que a Constituição assegurará aos brasileiros e estrangeiros residentes no país os Diretos e Garantias; e os três pontos relativos, no parágrafo 6 à inviolabilidade e ao sigilo da correspondência; no parágrafo 5, mantem a proibição do anonimato, e no parágrafo 15, a casa como asilo inviolável.

A Constituição de 1967/EC 1/69, no Capítulo sobre os Direitos e Garantias Individuais, art.153, parágrafo 9º, que é inviolável o sigilo da correspondência e inclui as comunicações telegráficas e telefônicas, permanecendo quando à casa, dispositivo idêntico às anteriores. Quanto à liberdade de expressão, garante o direito de resposta, não falando mais em anonimato.

Mas, neste ano de 2018, não poderemos chegar à CF 88, sem uma referência à Declaração Universal de Direitos Humanos que no próximo mês de dezembro completa 70 anos. Aprovada pela Resolução 217, na 3ª sessão ordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, em 10 de dezembro de 1948, diz no seu art.17:

“1. Ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicilio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação.

2.  Toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas”.

A Constituição de 88, que ora completa os seus trinta anos (balzaquiana – o romance de Honoré de Balzac – a mulher de trinta anos, escrito em 1831), traz um grande elenco de Direitos e Garantias Fundamentais. Muito importante a extensão do art.5º trazendo para o âmbito constitucional muitos direitos dispersos em leis ordinárias, mas que por sua magnitude deveriam sim, serem incorporados à Lei Maior.

Com relação à primeira parte do nosso tema, diz no art. 5º, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação.

Há trinta anos a tecnologia estava bem longe do que se atingiu nos dias de hoje, ficando a Constituição adstrita à tutela indenizatória.

A Constituição manteve, no inciso seguinte, o XI, a inviolabilidade da casa, com redação semelhante e quanto ao sigilo de correspondência, no inciso XII foi mais ampla, além das comunicações telegráficas, incluiu as de dados e das comunicações telefônicas, com as ressalvas judiciais.

Uma outra relevante incorporação ao texto constitucional, está no inciso XIV do art.5º: é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.  

Ante tantas possibilidades de exposição da pessoa, de fatos de sua vida e de circunstâncias a respeito de si que a constranjam, não raro se constatam choques de Direitos Fundamentais. Assim, o Direito à intimidade e à vida privada, frequentemente se choca com o direito à informação com o resguardo do sigilo da fonte.

Mas esse tema, também está albergado do Código Civil de 2002, no Capítulo II, Dos Direitos da Personalidade, no seu art. 21: A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências para impedir ou fazer cessar ato contrário a essa norma.

Ora, havendo choque entre o direito à vida privada do indivíduo e a liberdade de imprensa que em si contém o direito de informar e o direito coletivo de ser informado, é preciso levar em consideração que nenhum deles é absoluto. Tem que haver uma ponderação das circunstâncias que naturalmente são variáveis: o fato (tornado público); os sujeitos: ativo (aquele que divulgou) e o passivo (a pessoa exposta); a razão da prática e a intensidade da exposição sofrida. Só levando em conta as circunstâncias, sopesando os efeitos delas, é possível ao juiz dar a prevalência de um dos direitos: à privacidade ou à informação.

Em reação às situações frequentes de violação da vida privada, sobretudo pelas formas que a tecnologia permite, surge uma natural reação. É o “me deixem em paz”, ou o que o Presidente João Figueiredo pediu ao deixar a presidência da República: “esqueçam-se de mim”. É o que está sendo batizada (impropriamente) de: Direito ao Esquecimento. Ou no inglês “right to be forgotten”, cheio de muitas controvérsias, algumas fantasiosas.

Na realidade o Direito ao Esquecimento envolve muitas facetas,  de um modo geral, baseia-se na autonomia de dispor um indivíduo das suas informações pessoais. Algumas, são obvias como a de “salvaguardar os que pretendam retirar (suas próprias) informações dos bancos de dados e de ferramentas de busca”. Quantos inconvenientes sofrem as pessoas pela utilização indevida dos seus dados para fins ilícitos. Quem não teve um cartão de crédito clonado ou uma cobrança por débitos contraídos por estranhos no seu nome. Muitos em razão de serviços prestados noutros Estados, por companhias telefônicas e não há meios de convencer o cobrador que nunca esteve naquela cidade, que não mandou instalar qualquer telefone que logo são apresentados o seu CPF, RG e outros dados pessoais.

Outras facetas já envolvem maiores discordâncias, como a exibição ou rememoração de fatos passados e tornados públicos. Para ficar mais claro, “Jussara Costa Melo entende que tal é o direito de não ser lembrado contra a vontade”. 

Esse assunto é debatido no mundo inteiro e há decisões de Cortes Europeias paradigmáticas. No Brasil ainda não há uma legislação, mas em março de 2013, na VI Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal foi aprovado o Enunciado n. 531 do seguinte teor: “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. 

Embora um Enunciado não tenha força de lei, mas serviu de orientação para alguns julgados no nosso país. Do mesmo modo gerou muitos argumentos contrários, como se fosse uma volta à censura ou tentar apagar a História.

O Supremo Tribunal Federal realizou audiência pública para ouvir as manifestações de vários grupos que expressavam opiniões discordantes. Assim, em apertada síntese, encontramos quanto ao Direito ao Esquecimento, como ocorre em todos os conceitos no Direito, três teorias: 1) Posição pró-informação: nega o Direito ao Esquecimento e é defendida por principalmente por entidades ligadas à comunicação. Alegam que não existe norma legal, nem poderia ser extraído de qualquer dos direitos fundamentais, nem mesmo do Direito à privacidade e à intimidade. Seria contra a memória de um povo e que a informação deve prevalecer sobre tudo. Referem-se à decisão do Supremo sobre biografias não autorizadas. Nota-se que é uma posição extremada. Em que o meu CPF retirado de um banco de dados, após utilização ilícita, fere a memória do povo? 

 2) Posição pró-esquecimento: na esteira da clausula geral da tutela da dignidade da pessoa humana, seria um escudo para proteger o cidadão da invasão pelas mídias sociais, dos provedores de conteúdo ou mesmo buscadores de informações da sua privacidade. Prevaleceria sobre a liberdade de informação acerca de fatos pretéritos, num estágio mais avançado em relação a fotos publicadas, mas relativas ao passado. Nega-lo seria aplicar penas perpetuas e os seus defensores lembram que até no Direito Penal há o direito ao esquecimento, com os institutos como a reabilitação, o afastamento da reincidência depois de cinco anos e a certidão negativa quando extinta a punibilidade. 

Emblemática foi a decisão do STJ sobre a Chacina da Candelária – direito de não ser lembrado contra a sua vontade; 

3) Posição intermediária: os seus defensores alegam que a Constituição não permite a hierarquização prévia e abstrata entre a liberdade de informação e o direito à privacidade (do qual o Direito ao Esquecimento seria um desdobramento). Sendo ambos direitos fundamentais, a solução seria a ponderação, vistas a obter o menor sacrifício possível a cada um dos interesses em colisão – posição defendida pelo Instituto Brasileiro de Direito Civil. 

Mais uma vez é a ponderação que levará a uma decisão. Sopesando entre o interesse público na divulgação de fatos relevantes, mesmo muito antigos e o resguardo ao direito à intimidade e à inviolabilidade pessoal. Devem ser evitados abusos com exposição desnecessária das pessoas. Nem se pode admitir que a curiosidade (quase mórbida) pela vida alheia, ou a ânsia para divulgar fatos, furos de reportagens levem a danos terríveis. Basta lembrar o acidente em Paris que vitimou a Princesa Diana, decorrente da tentativa de fuga pelo motorista de fotógrafos (os temidos paparazzi) que perseguiam o veículo onde se encontrava a Princesa. É preciso muito bom senso para decidir sobre a prevalência entre os direitos fundamentais. 

Como disse o Prof. Anderson Schreiber “seja qual for a posição adotada pelo STF no caso que se encontra em análise, uma coisa é certa: estaremos diante de um julgamento que será difícil de esquecer”.

Como nós não devemos esquecer pessoas que contribuíram para a Ciência do Direito, como é o caso do Professor Luís Pinto Ferreira, no centenário do seu nascimento.   

Muito obrigada

que toma corpo o chamado Direito ao Esquecimento, que é a segunda parte do nosso tema.


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