CURSO DE EXTENSÃO
Imigração e direitos humanos perspectivas e fronteiras
Dia 1o de Março de 2004.
DJUMBAY e FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE.
Tema: Respeito aos Direitos Humanos fundamentais: natureza jurídica
do Asilo (Refúgio)
I. Gostaria de agradecer ao convite para participar deste evento sobre tema da máxima relevância: Imigração e Direitos Humanos, perspectivas e fronteiras que o Djumbay e a Faculdade de Direito estão promovendo. Dizer da minha satisfação em conversarmos um pouco sob a ótica dos Direitos Humanos Fundamentais e da minha experiência pessoal.
II. Parabenizar pela excelente justificava apresentada para este evento, onde levanta os pontos cruciais do problema e nos dá motivação para refletir sobre o tema.
II a – Quem leu o Jornal do Commercio de ontem encontrou duas matérias importantes sobre o assunto: uma relativa a crise atual do Haiti e outra mais grave sobre a xenofobia em Londres relativa aos vôos noturnos do Leste Europeu e a próxima entrada no dia 1o de maio dos novos membros da União Européia. Expressam os dois enfoques bastante atuais do problema: os refúgio por motivo político e o por motivo econômico.
III. Mas, vamos fazer uma volta ao passado. Creio que o ponto de partida é histórico: o movimento das pessoas que deixam o local onde se encontram para procurar melhores condições noutra parte. São os movimentos migratórios que podem ser internos ou internacionais. Isso não só é humano como se vê muito claramente entre os animais (piracema, aves migratórias, etc.), é o instinto de conservação e a busca da felicidade, consciente ou meramente instintiva.
IV. Os movimentos internos podem ser inter-regionais (por ex.: no Brasil a ida dos nordestinos para o sul, os candangos na época da construção de Brasília). Alguns movimentos são naturais, outros são induzidos (soldados da borracha durante a 2a Guerra para a Amazônia). Eles ocorrem também das áreas rurais para os centros urbanos, especialmente quando fogem das intempéries ou buscam oportunidade de trabalho ou estudo.
V. Mas, os deslocamentos que estamos nos referindo aqui são os internacionais, quando um indivíduo ou um grupo deixa o Estado ao qual está vinculado pela nacionalidade (ou permanência) e busca outro Estado para viver.
Vamos excluir da apreciação os deslocamentos de pessoas em certos períodos da História, como no tráfico escravo porque faltava aos indivíduos que eram deslocados o elemento vontade. Eram levados sem o seu consentimento e para fins que não visavam ao seu bem estar, sequer hipotético (trabalho escravo). Como também, no Brasil, estariam fora da nossa análise, aqueles fluxos migratórios consentidos e voltados a determinadas regiões: italianos para São Paulo (mostrado em recentes telenolevas), alemães, japoneses, poloneses, etc. Em tais casos havia o consentimento dos que emigravam e do Governo em aceitá-los, algumas vezes até precedido de acordos entre os Governos.
Mas, os deslocamentos que queremos analisar aqui são os que ocorrem basicamente por motivos políticos, étnicos (nacionalidade) e religiosos. Os grandes deslocamentos quase sempre estão associados a conflitos, a guerras (civis ou entre Estados). Milhões de indus deixavam o Paquistão para viverem na Índia, no sentido inverso milhões de muçulmanos deixavam a Índia para viverem no Paquistão. As minorias raciais fugindo de perseguições. As Grandes Guerras Mundiais mostraram ao mundo o drama dos deslocamentos de pessoas e que tais situações não poderiam ficar fora de um apoio, controle e outras espécies de atuação de organismos internacionais. Até então a Cruz Vermelha Internacional praticamente sozinha tentava minorar a situação de tantas pessoas. Os esforços internacionais mais fortes começaram com a Liga das Nações, atuando pragmaticamente, mas com grandes limitações. Só após a 2a Guerra foi criado o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, sendo a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951 e seu Protocolo de 1967.
No Brasil além das regras estabelecidas no Estatuto do Estrangeiro, há um Comitê Nacional para os Refugiados, CONARE e a Lei 9.474, de 1997.
VI. Retomando a apreciação teórica. O Direito Internacional sempre cuidou, através do Instituto do Asilo da situação de pessoas perseguidas e que buscam proteção fora do território nacional. Da mesma maneira também é muito antigo o Instituto da Extradição, que trata, no sentido oposto, da devolução de pessoas que deixaram o território de um Estado e para o mesmo deveriam retornar independentemente da sua vontade.
VII. No passado, os dois Institutos serviam a finalidades opostas às atuais. A extradição era concedida em casos de crimes políticos (lesa majestade, deserção, etc. – um dos textos de tratados mais antigos que se tem conhecimento trata da extradição para casos de crimes políticos) enquanto que o asilo era concedido para o crime comum. Os locais de concessão do asilo eram os templos porque nos templos não poderiam atuar os agentes do poder público – espécie de imunidade de jurisdição. Após a instalação das Embaixadas permanentes (século XV), também nelas era possível a concessão do asilo, pelos princípios da extraterritorialidade o que acarretava a imunidade de jurisdição. Na Idade Média tais concessões geravam problemas graves, havia pagamento para obtenção do asilo e se estenderam além do prédio da Embaixada a todo o quarteirão. Ali eram abrigados criminosos perigosos.
Tomo como marco a Revolução Francesa, para a inversão das causas de concessão ou negação de cada um dos dois Institutos. Assim, o asilo passou a ser admitido para o autor de crime político (em razão das liberdades consagradas, do princípio da soberania popular e da laicisação do poder) e a extradição era concedida em caso de crimes comuns, como continua sendo nos nossos dias. Embora dito isto de uma forma muito simples, mas sabemos cada um deles está cercado de princípios para a concessão.
A associação à Revolução Francesa faz sentido se levarmos em conta que o direito de asilo apareceu pela primeira vez num texto constitucional – art.120 da C. Francesa de 1793, afirmava que o povo francês “dá asilo aos estrangeiros exilados de sua pátria por causa da liberdade. Recusa-o aos tiranos”. Todavia, a partir daí há um longo silêncio nos textos constitucionais sobre o direito de asilo direcionando-o para converter-se em direito do Estado.
VIII – O asilo, que vai nos interessar aqui, é de dois tipos: asilo territorial, aquele em o(s) individuo(s) entra(m) no território de um Estado por seus próprios meios, infringindo as normas nacionais estabelecidas para a imigração, e ao ultrapassar as linhas de fronteiras solicitam o refúgio (se deferido o pedido, tornam-se refugiados); e o asilo diplomático concedido na sede das Missões Diplomáticas (Embaixadas); navios de guerra, aeronaves e acampamentos militares. Esta segunda forma de asilo é basicamente para casos políticos, próprio da América Latina, e só nela seguido como uma norma de Direito Internacional Regional. Nesta última hipótese há necessidade de deslocar o indivíduo para o território do Estado em cuja Embaixada buscou asilo, não devendo permanecer indefinidamente em tais locais. Para tanto deverá receber do governo territorial (isto é do Estado onde a Embaixada está situada) um documento que o garanta transitar e que chamamos de salvo-conduto.
IX – Passemos a um ponto que embora teórico, me parece a pedra de toque da ligação entre o asilo e os direitos humanos: sua a natureza jurídica. É o asilo um direito do Estado? É um direito do indivíduo? Os textos internacionais têm se manifestado ora num ora noutro sentido. Vejamos: A Declaração Universal dos Direitos Humanos, dezembro de 1948, diz no art. XIV: “1. Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. 2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes do direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas”.
A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada em 2 de maio de 1948, portanto, anterior à Declaração Universal da ONU que foi de dezembro do mesmo ano, estabelecia no seu art.27: “Toda pessoa tem direito de buscar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de perseguição que não seja por delitos de direito comum e de acordo com a legislação de cada país e com as convenções internacionais”.
Já as Convenções sobre Asilo Territorial e Asilo Diplomático promovidas pela Organização dos Estados Americanos há exatamente 50 anos, 20 de março de 1954 (entraram em vigor no Brasil em 1965), dizem: A sobre Asilo Territorial – “Art. 1 Todo Estado tem direito, no exercício de sua soberania, de admitir dentro de seu território as pessoas que julgar conveniente, sem que, pelo exercício desse direito, nenhum outro Estado possa fazer qualquer reclamação” – A sobre Asilo Diplomático, diz: Todo Estado o Estado tem o direito de conceder asilo, mas não se acha obrigado a concede-lo, nem a declarar por que o nega”.
Assim tanto a Convenção Americana, o Pacto de São José, de 1969 e o Pacto de Direitos Políticos e Civis da ONU, de 1966 não dedicam qualquer artigo ao direito de asilo.
A Lei espanhola de 1984, por exemplo, no capítulo I, art. 1o , fala no “direito de solicitar asilo”, mas no art.2o já afirma que: o asilo é a proteção dispensada pelo Estado no exercício de sua soberania, aos estrangeiros que se encontrem em algumas das circunstâncias previstas no art.3o .
Como se vê, teoricamente parece faltar algo que faça o elo entre o indivíduo e o seu direito. O próprio Estado dos Refugiados descreve as suas condições de concessão mas não se diz o que é o Instituto.
Para mim, tenho defendido isto em sala de aula há muitos anos, o refúgio ou asilo, não é nem direito do Estado, nem direito do indivíduo. É sim, uma garantia internacional individual a direitos preexistentes, tais como, à vida, às liberdades, à integridade física, entre outros. A busca do refúgio é uma conseqüência por todos reconhecida de uma perseguição sofrida por uma pessoa ou grupo de pessoas por motivos políticos, religiosos, de nacionalidade, principalmente. A sociedade internacional não é institucionalizada, conseqüentemente existem poucos órgãos (ACNUR, Cruz Vermelha, etc.) aos quais se possa recorrer em casos tais. Nota-se, nos últimos conflitos armados, que a presença desses órgãos tem sido mais evidente, todavia, ainda insuficiente.
Qual seria então a diferença? Deixando de ser um direito do Estado e passando a uma garantia do indivíduo, converter-se-ia num reforço aos direitos humanos fundamentais, inerentes aos indivíduos em quaisquer circunstâncias, e assegurados (pela maioria) das Constituições modernas. Seria assim, como um Hábeas Corpus Internacional para os indivíduos, como proteção ao direito à vida, à liberdade tal como ocorre no Instituto consagrado do Hábeas Corpus no direito interno.
Não por coincidência, mas por similitude de finalidade, chama-se “Salvo conduto” o nome do instrumento que é concedido por um Governo ao asilado em Embaixadas para que se desloque pelo país rumo ao estrangeiro. Salvo Conduto também é a expressão do documento fornecido nos Hábeas Corpus preventivo.
Na prática, a grande mudança é que, embora o Estado não esteja obrigado a admitir a permanência no seu território de todos aqueles que conseguirem ingressar no mesmo (muitas vezes haveria impossibilidade econômica), mas o tratamento dispensado a tais pessoas deveria ser não de infratores, mas de “pacientes”. É assim que os vejo.
O assunto que vai mobilizar este Seminário, como disse é interessantíssimo e pouco tratado diante da sua magnitude internacional. Mas creio que devemos agora fazer uma outra abordagem, relativa à imigração.
Muitos pontos coincidem com o que foi dito, a mobilidade das pessoas que além daqueles aspectos mencionados (perseguição) pode ocorrer pelo desejo de mudança, procurar um lugar melhor ou até mesmo espírito nômade, aventureiro. Hoje, temos que nos defrontar com um fator da dura realidade: da mobilidade empurrada pelas necessidades econômicas, pela fome, pelas doenças.
Para esses casos a primeira grande pergunta é, a tecnologia veio facilitar tais tipo de imigração? Entendo que para os deslocamentos com pontos permanentes de atração praticamente não, pois as pessoas se deslocam a pé (fronteira México & Estados Unidos) ou em navios (de todos tipos – costa da Flórida, da Itália,por exemplo), como se fazia há séculos atrás. O que a tecnologia levou para eles foi mais informações sobre outros países, situações melhores, mundos mais atrativos.
Para um determinado grupo, bem menor, agora me referindo ao especificamente ao Brasil, a tecnologia tem tido papel importante, sim – primeiro, é o ingresso legal no país, por via aérea, com posterior a permanência ilegal quando vencido o prazo permissivo para turismo, por exemplo. Ingressam no mercado de trabalho, clandestinamente. Isto tem acontecido com pessoas da classe média brasileira, rumo aos Estados Unidos, Canadá e Europa (Portugal). Recentemente houve o repatriamento de um grande número por avião, provindos de prisões nos Estados Unidos.
Por esse meio tem-se constatado as graves situações das vítimas das máfias de exploração de mulheres para prostituição; de homens trabalho escravo (recente caso dos chineses na Grã-Bretanha, catando conchas em lugar de maré perigosa).
Consultando o setor da Polícia Federal sobre a situação nos Portos de Pernambuco, foi-me informado que os africanos (de diversos países – Nigéria, Libéria, Serra Leoa, etc.) começaram a desembarcar a partir dos anos 80, quando chegou um grupo de 15 clandestinos a bordo de um navio rebocado vindo de Monróvia. A média normal é de 4 a 5 repatriados por ano. No início dos anos 90, também chegou um grupo de 15 romenos, vindo via Portugal, mas aí estavam fugindo das mudanças do governo na Romênia.
Interessante notar que de novembro de 2003 a janeiro de 2004, tivemos 16, dos quais 10 vindos da Guiné (2 da Costa do Marfim e 8 da Guiné) e posteriormente mais 6 (4 liberianos e 2 nigerianos). Como se pode observar em menos de três meses tivemos um número correspondente a três ou quatro anos da média dos casos semelhantes. Li também que o Porto de Santos recebeu no ano passado 79 clandestinos. Creio que tem uma clara explicação. Depois do 11 de setembro houve um endurecimento nas fronteiras em geral, nos Estados Unidos e noutras áreas também. A rota tradicionalmente buscada – Estados Unidos, ou Canadá ou Europa está se tornando inaccessível, logo há que buscar novas rotas, sendo a América Latina o lugar menos problemático – clima, comida, laços culturais,etc.
Nos últimos 20 anos, desses imigrantes, 25 formularam pedidos de refúgio através do já referido CONARE, só poucos foram admitidos. Ao que soube, dos 10 formulados apenas dois foram concedidos.
Tenho especial atenção para os casos daqueles que chegam ao nosso país na busca de um lugar ao sol. De uma oportunidade de vida melhor. Devo dizer-lhes que o primeiro caso de advocacia que recebi no meu primeiro escritório foi o de um coreano (nos idos de 1967, talvez) chamado Kim Dong, nunca esqueci o seu nome. Tentei legalizar a sua situação, mas era impossível. Um dia ele desapareceu e nada mais soube.
Daí talvez a minha preocupação acadêmica, na busca de formular alguma teoria, já que nunca fui legisladora para apresentar projeto de lei. Vejam vocês, as coisas da vida, coincidência? D. Helder escreveu numa dedicatória de um livro seu que me ofereceu, que não há coincidências tudo está previsto nos planos de Deus. Pois não é que chegou às minhas mãos, na véspera de Natal, um pedido de Hábeas Corpus versando sobre a prisão de imigrantes ilegais. Eram aqueles 10 africanos cuja história todos aqui conhecem. De repente na minha pessoas fundiram-se o Estado-Juiz que eu representava e os conceitos acadêmicos que sempre defendi e acredito. Se tantos anos de estudo e a minha teoria não servirem para mais nada, valeram pelo menos para conceder a liberdade a 10 seres humanos e para mim ter um verdadeiro Natal de Paz.