A PARTIÇÃO DO PODER COMO INDICADOR DA FORMA DE ORGANIZAÇÃO DO TERRITÓRIO
(FEDERAÇÃO, INTEGRAÇÃO E ORGANIZAÇÃO TERRITORIAL)
Margarida Cantarelli
Gostaria, inicialmente, de agradecer ao Professor George Bercholc pelo honroso convite para que a ESMAFE – Escola da Magistratura Federal da 5a Região do Brasil e eu própria participássemos deste relevante Seminário, ao Professor e Desembargador Federal Carlos Rebelo pelo apoio, incentivo e amizade renovadamente manifestados, bem como às Instituições patrocinadoras deste evento.
Preparei um texto, certamente mais longo do que a paciência dos senhores suportaria e achei por bem reduzi-lo a pontos, que entendo mais relevantes, dentro do nosso tema específico: Organização Política do território em Estados Federais.
I -Introdução; II – O Poder; III – A Organização Territorial e o Poder; IV – A Federação; V- A Integração; VI – Conclusão.
I – Introdução:
À guisa de introdução, destaco que o tema geral deste nosso Colóquio: Federação, integração e organização territorial constituem assuntos dos mais importantes e de atualidade permanente porque repousam sobre pontos desafiadores da Ciência Política, das Relações Internacionais e do Direito Público, quais sejam: o Poder, a Soberania e o Estado-nação. Para simplificar, dir-se-ia que envolvem o Poder (Poder Político): sua distribuição ou concentração num espaço determinado. As razões ou os fundamentos para que agrupamentos humanos permaneçam juntos dentro do modelo político-jurídico que habitualmente chamamos de Estado-nação, ou nos grandes espaços de integração, levam a que estes modelos tenham que se ajustar/moldar permanentemente às realidades que abarcam. Daí porque dei como título a esta apresentação: “A partição do Poder como indicador da forma de organização do território”. Portanto, entendo que o ponto nodal, nevrálgico, desta questão, das formas jurídico-políticas de organização do território, repousa no PODER e sua partição ou partilha, dosagem, balanço entre partes que se arvoram no direito de exercê-lo com exclusividade. Assim, reparti-lo é mais que uma ciência é a arte da harmonia, da convivência ou da sobrevivência de cada parte envolvida naquele espaço determinado. E a condição para a duração, a permanência ou a evolução da forma escolhida está na sua livre e voluntária aceitação. Caso contrário, se converterá num caldeirão de animosidades (mágoas e ódios) que explodirá no primeiro sopro ou momento de liberdade.
Quando se fale neste tema, sempre vem a baila, por sua relevância – histórica e presente – o modelo americano. É comum que alguns estudos dêem um especial enfoque à Revolução Americana para descrever os fundamentos do federalismo. Entretanto, outros o fazem remontar há 3.200 anos, com a anfictionia das tribos israelitas e de igual sorte com o sistema de algumas tribos beduínas, além de outras experiências muito anteriores à americana. Conquanto, induvidosamente, esta seja admitida como a primeira federação da época moderna.
Ademais, a segunda metade do Séc. XX serviu de palco a uma proliferação de formatos federais, notadamente, no afã de manter unidas em uma determinada base territorial comunidades multiétnicas. Muitos desses agrupamentos decorrentes das duas Grandes Guerras. Apenas para lembrar um exemplo – a Federação da Iugoslávia, cujo esfacelamento todos ainda assistimos.
Aproximadamente, nos dias atuais existem, pouco mais de 190 países que se poderiam classificar como soberanos. Destes, se contam 24 federações, nas quais se inserem cerca de 480 unidades federadas ou constituintes (quer chamemos estados, províncias ou qualquer outra denominação), e onde residem 40% da população mundial.
Igualmente, como já me referi, não se pode deixar de mencionar o surgimento de variantes, como a própria União Européia, em que estados federais e unitários jungem suas soberanias, numa estrutura híbrida, supranacional.
Esse hibridismo já fora descrito quanto à constituição americana, assim está na obra clássica “O Federalista” de Hamilton, Madison e John Jay:
Como conseqüência do anterior. // a Constituição proposta não é estritamente uma Constituição nacional, nem federal, mas uma combinação, um acomodamento de ambas. Do ponto de vista de seu fundamento, é federal, não nacional; pela origem donde procedem os poderes comuns do governo, é em parte federal e em parte nacional; pela atuação destes poderes, é nacional, não federal […]. (Tradução nossa).
Este acomodamento demonstra que o sistema federal, nas suas múltiplas possibilidades de constituição, pretende preservar identidades (étnicas e culturais) distintas, em união, dentro de um mesmo espaço político. Por quais razões? As razões (ou fundamentos) devem ser desejadas e não impostas, repito o que para mim é fundamental. Assim, ao circunscrever, primacialmente, o objeto da abordagem sobre o poder político, a hipótese que se coloca é a de desbravar descrições, em que se contempla a busca de modelo organizacional do Estado, dentro do qual se permita o convívio de interações dos variados anelos comunitários. Então, em umas múltiplas identidades (culturais ou étnicas), o encontro de alternativas viáveis ao conjunto, faria preservar o elo entre todos, – unidade na diversidade – com uma força centrípeta integradora numa organização política e base territorial comuns.
II – O Poder
Neste contexto, não poderíamos deixar de partir da apreciação do próprio Poder.
Este está sempre presente na vida das comunidades – onde houver um agrupamento humano, desde os mais primitivos, existe o Poder, variando apenas a forma de exercê-lo ao longo dos tempos. Constitui-se um desafio para os que o exercem, o estudam ou, até mesmo, a ele estão submetidos. Na História da Humanidade, o Poder sempre foi um fator de desentendimentos, de subjugações e de revoltas. Em torno do Poder giram as alianças, geram-se as discórdias. A guerra e a paz são filhas do Poder.
Karl de Loewenstein, no seu livro “Teoría de la Constitución”, inicia o primeiro capítulo “Sobre la anatomía del proceso del Poder Político”, com um subtítulo “La enigmática tríada”, dizendo:
Los tres incentivos fundamentales que dominan la vida del hombre en la sociedad y rigen la totalidad de las relaciones humanas, son: el amor, la fe y el poder; de una manera misteriosa, están unidos y entrelazados. Sabemos que el poder de la fe mueve montañas, y que el poder del amor es el vencedor en todas las batallas; pero no es menos proprio del hombre el amor al poder y la fe en el poder. La historia muestra cómo el amor y la fe han contribuido a la felicidad del hombre, y cómo el poder a su miseria.
O referido autor analisa a “cratologia” como ciência e observa que, cada vez mais, se considera o Poder como a: infra-estrutura dinâmica das instituições sócio-políticas. Vê, na ênfase que se tem dado ao fenômeno do Poder, a chave para uma melhor compreensão da sociedade estatal, o que faz diminuir o interesse científico pelo conceito de soberania que, ao longo de séculos, ocupou lugar de honra, tanto na teoria política como na prática do Direito Internacional. Segundo afirma:
Quizá se pueda decir que la soberania no és más, y tampoco menos, que la racionalización jurídica del factor poder, constituyendo éste el elemento irracional de la política. Según ésto, soberano es aquel que está legalmente autorizado, en la sociedad estatal, para ejercer el poder político, o aquel que en último lo ejerce.
Celso de Albuquerque Mello, grande internacionalista brasileiro recentemente falecido, observa com muita propriedade, que:
Parece-nos que as duas últimas décadas do século XX estão conduzindo à reformulação ou mesmo ao desaparecimento de um conceito fundamental de Direito Público e também do Estado desde o seu aparecimento. Estado e soberania foram noções que caminharam irmanadas desde o século XVI até o final do século XX, uma não existia sem a outra. A pergunta que podemos deixar no ar sem resposta, vez que não somos futurólogos, é a seguinte: haverá ainda um Estado no futuro sem soberania?
Assim, ao adotar a expressão Poder (no sentido de Poder Político), preferencialmente à soberania, não estou agora a descartá-la ou a afirmar o seu desaparecimento, apenas por vislumbrar na primeira, um sentido mais preciso para os enfoques que aqui serão feitos.
III – A Organização Territorial e o Poder
Se voltarmos nossos olhos para a História, vamos observar que foi a distribuição do Poder sobre um espaço físico que deu origem a diferentes formas de organização do território – quer em grandes Impérios, com concentração e ilimitação do poder (origem divina, nas teocracias, por exemplo), impostos quase sempre pela força das armas, com aniquilamento ou escravização de povos e anexação dos seus bens e territórios; quer, em menores extensões, como a cidade antiga (urbe) ou a “Polis” grega, que se organizou em várias formas de governo; mais adiante os feudos, os pequenos reinos, os principados, entre outros. Note-se, quer os grandes Impérios da antiguidade, quer as pequenas “Polis”, todos utilizavam mecanismos para ampliação do poder (ou melhor, de forças – efetiva ou potencial) – quer pela guerra ou, em tempos de paz, através dos tratados de amizade ou de aliança, para fazer face à defesa dos seus interesses políticos, econômicos, à intangibilidade do seu território, etc.
Os descobrimentos e as grandes viagens marítimas ampliaram substancialmente os espaços ocupáveis (o “Novo Mundo”, por exemplo) ou subjugáveis (colônias européias no Extremo Oriente), instituindo outros meios de submissão e exploração de territórios e povos; vêm os Estados nacionais; a independência das colônias do continente americano, fins do século XVIII e início do XIX; o neocolonialismo e a descolonização, com uma nova onda de estados independentes, na África e ilhas do Pacífico, já no século XX. E mais recentemente, com as transformações ocorridas em decorrência do esfacelamento do Bloco Soviético. E a marcha continua com a busca permanente de novos modelos de reorganização do território.
Interessante observar, inclusive, os atuais processos de integração podem ser vistos, sob a ótica do território, como mais um mecanismo de busca de coexistência com outros entes subjacentes, mantendo todos a sua personalidade jurídica (pelo menos até o momento).
Na realidade, o mapa do mundo com os traçados de linhas de fronteiras separando os povos, sofreram e sofrem alterações constantes. As fusões, desmembramentos, independência, secessão e outras formas de nascimento ou morte dos Estados, são freqüentes. A demarcação das linhas de fronteiras, quando não aceitas por uma das partes, ou a sua ultrapassagem, com a violação desses espaços, leva a sérios conflitos em razão da fixação da soberania sobre os territórios.
Dentre os temas que vêm desafiando a capacidade de adequar conceitos antigos à sociedade internacional atual, sem dúvida o território figura nos primeiros lugares. Por ser algo que não se multiplica, não se fabrica, nem se produz de acordo com as necessidades ou ambições de quem quer que seja, além do que, praticamente, todo o espaço ocupável, hoje, já se encontra baixo alguma soberania, o território se torna, mais e mais, alvo de cobiça.
Como bem descreve Bertrand Badie:
Os territórios parecem ser, mais do que nunca, objetos de paixão. Celebrando uma antiga tradição, os homens fazem deles um motivo essencial de sua discórdia. Morre-se hoje para que esta ou aquela jeira permaneçam sérvias, croatas ou bósnio-muçulmanas; sacraliza-se a terra da Palestina ou de Israel; cada minoria procura traduzir numa reivindicação territorial intransigente a vontade de se afirmar e de se distinguir. A guerra e a paz, a ordem e a desordem internacionais parecem depender inteiramente da ambição de arrumar ou de rearrumar os frágeis mapas do mundo.
Muitas foram as teorias sobre a natureza jurídica do território: a do território como elemento constitutivo do Estado ou território-sujeito; a teoria do território-objeto, manifestando-se em duas direções, o poder estatal como um direito real de propriedade e outra, como um direito real de soberania; a teoria do território-limite, admitindo que não é mais do que o perímetro dentro do qual exerce o seu poder de mando; a do território-competência, ou seja, aquela porção da superfície terrestre onde se aplica com efetividade de execução um determinado sistema de normas jurídicas; e, ainda, sem a pretensão de esgotá-las, posto que muitas outras foram apresentadas pelos doutrinadores, a teoria do espaço vital, adotada pelo III Reich entre 1933 e 1945, e que aparece no preâmbulo do Tratado de Aliança Germano-italiano, de 22 de maio de 1939, segundo o qual os signatários tomavam a decisão de “intervir conjuntamente e com suas forças unidas, para assegurar o seu espaço vital e para manter a paz”. Igual determinação aparece no Pacto Tripartite germano-ítalo-japonês, de 27 de setembro de 1940.
Do ponto de vista jurídico-internacional, pouco parece ter mudado. O Direito Internacional continua considerando o território como o quadro espacial no qual se estabelecem todas as comunidades humanas, materializando a sua fixação ao solo e determinando os seus limites, bem como os de sua soberania, apresentando as duas características clássicas: delimitação e estabilidade (com a sua população dentro daquele espaço).
Não bastassem tantos problemas, a tecnologia tem proporcionado, cada dia mais, a possibilidade de relações aterritoriais e pluriterritoriais, o que poderia levar ou a uma ausência de poder, no primeiro caso, ou a uma superposição de poderes (soberanias), na segunda hipótese. Tais situações eram impensadas há décadas passadas, salvo na ficção.
Os circuitos financeiros, as trocas comerciais, as difusões de ondas e de imagem, as migrações das pessoas, as solidariedades religiosas, culturais, lingüísticas, as diásporas de todos os tipos sobrepõem-se, em potência e eficácia, ao peso do território. O pensamento exposto de Bertrand Badie nos leva a uma reflexão mais forte sobre uma nova realidade que, nem sequer, podemos chamar de internacional:
O território já não é somente um objeto de querelas e de contenciosos. As suas significações múltiplas e divergentes engendram cacofonias, discursos que, não se inscrevendo num mesmo registro, nunca se encontram, resultando em conflitos que se arriscam a não ter solução. Em suma, em vez de ser um meio de ordenamento do mundo, o território tende a tornar-se propriamente aporético… não é seguro que o modelo vestfaliano possa acomodar-se com o seu contrário para compor com ele uma nova ordem estável… desenha-se uma nova cena mundial que tanto é aterritorial como está sujeita à concorrência de várias lógicas territoriais contraditórias e que, cada vez mais raramente, é banalmente Estado-nação. A ilusão cartográfica já não é suficiente para dissimular esta pluridimensionalidade das relações, que só em parte são internacionais. As relações entre nações – aliás, cada vez mais difíceis de territorializar – passam a ser um aspecto do funcionamento de uma cena mundial feita também de redes de relações, de proliferação e de volutilidade de alianças, elas próprias inscritas em diversos espaços.
Todo este quadro tem levado alguns autores a falar no fim do Estado, outros no do território, mas o que se constata é a profunda transformação do primeiro e a urgente modificação de uso do segundo.
IV – A Federação
Neste contexto como se colocaria a organização política do território em Estados Federais?
Se feita uma reflexão sobre o Poder dentro da Federação e do processo de Integração, num primeiro momento, poder-se-ia afirmar que, na Federação, há uma descentralização do Poder, enquanto que os processos de integração teriam, como uma das suas características, a centralização do Poder (ou de poderes). Mas, ao se buscar as origens do federalismo, encontra-se algo diferente. A história do federalismo mostra que unidades dotadas de Poder (soberanas) sobre um território se uniam para, juntas, enfrentarem determinadas situações adversas que, isoladamente, não teriam capacidade ou condições de o fazer – primeiro em Confederação (que tiveram curta duração), depois em Federação. E quando a união ocorre para formar uma Confederação, cada parte confederada guarda a sua personalidade internacional, só cedendo parte do seu Poder a um órgão central e isto, normalmente, através de tratado. No caso da Federação, a união é mais profunda e a cessão de poderes bem maior (a totalidade ou uma grande parte da soberania externa ou independência), desaparecendo a personalidade internacional dos entes federados, formando-se mediante uma Constituição.
Os três exemplos clássicos do federalismo são, como mencionados o considerado mais antigo: das 13 Colônias americanas que se tornaram independentes da metrópole, mas que se uniram inicialmente numa Confederação, vindo, depois, a se transformar numa Federação, os Estados Unidos da América; e mais a Confederação Helvética (a Suíça) e a Confederação Germânica, a atual Alemanha (que também conheceu desmembramento e absorção).
Só num momento posterior, o Federalismo seguiu o caminho de organização do território, por descentralização administrativa, como razão da adoção da sua forma mais praticada – a Federação, e, em decorrência de vários outros motivos: diversidades culturais internas e plurietnias, grande extensão dos territórios, ou mesmo, para manter a unidade territorial de um Estado evitando secessões.
Conveniente apreciar alguns exemplos atuais. Assim, ao se observar a atual Constituição belga, vê-se que, na quarta reforma do Estado (1993), está clara a necessidade de definir a natureza e a competência das partes constitutivas da Bélgica, (para efeito da distribuição do Poder), em decorrência das diversidades históricas e culturais, sem nenhuma correlação com o tamanho do território que ocupa, até porque é, tão só, uma pequena área. A forma adotada pela Constituição está bem determinada a partir do Título I – “De la Belgique Fédérale, de ses composantes et de son territoire”, enquanto que na versão anterior estava redigido simplesmente: “Du Territoire et ses divisions”. Foi inscrito no art.1o: “La Belgique est um État federal qui se compose des communautés et des régions” (forma anterior: “La Belgique est divisée en provinces”).
Noutros casos, é a forma Federal que dá suporte à continuação do Estado, acomodando províncias onde parte da sua população manifestara expressamente o desejo de emancipação. Situação como esta pode ser apontada no Canadá, onde, em diversas consultas, os eleitores da Província do Quebec, num percentual bastante elevado (embora não configurando a maioria), apontaram para esta opção.
A Federação brasileira nasceu com a República. No Império, o Brasil era um Estado unitário, embora subdividido em Províncias por razões históricas (vindas do período colonial – as Capitanias Hereditárias), administrativas e a sua grande extensão territorial. Mas, as Províncias tinham poderes políticos bastante limitados, estabelecidos na Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador Pedro I. Ao ser proclamada a República, em 1889, os constituintes optaram, na primeira Constituição republicana (1891), por nítida influência da Constituição dos Estados Unidos, da Argentina e da Suíça, pela forma federativa sob a denominação de Estados Unidos do Brasil.
Assim, dizia a Constituição Republicana de 1891, no seu Título I:
Art.1o – A Nação brasileira adota como forma de governo, sob regime representativo, a República Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas antigas províncias, em Estados Unidos do Brasil.
Art.2o – Cada uma das antigas províncias formará um Estado, e o antigo município neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a capital da União[…].
O Brasil nunca experimentou a forma de Confederação, nem as Províncias do Império, como dito, jamais foram dotadas de poderes soberanos; logo, a Federação brasileira é construção jurídica, nasceu com a República (da Constituição de 1891). A sua denominação – Estados Unidos do Brasil – permaneceu (Constituições de 1934, 1937 e 1946), até que, com a Constituição de 1967, passou-se a adotar a de – República Federativa do Brasil, mantida nos textos constitucionais subseqüentes (Emenda Constitucional n.1/1969 e Constituição de 1988).
No federalismo brasileiro, ao longo dos seus cento e vinte anos de existência, constata-se uma marcha de concentração de Poder no órgão central, a União. É fácil observar mais acentuada, em períodos de exceção – como no chamado Estado-Novo, implantado após golpe de Estado, por Getúlio Vargas, e refletido na Constituição de 1937, por ele mesmo outorgada. Também, após a Revolução de 1964, onde está evidente a hipertrofia do executivo federal, que asfixiou os Estados-membros. A Constituição de 1988 tentou redesenhar o federalismo brasileiro, não obtendo, neste aspecto, o êxito desejado na devolução de poderes às unidades federadas, especialmente no plano financeiro. O que se vê são Estados (notadamente os insertos em áreas de menor desenvolvimento econômico), praticamente a mendigar ajuda financeira do Governo Federal, quando necessitam de recursos além das Cotas dos repasses obrigatórios dos Fundos de Participação, ficando sujeitos aos humores político-partidários (para o bem ou para o mal).
Ainda, numa construção própria, a Constituição Federal brasileira de 1988 incluiu os municípios como entes federados. Mas, dessa inclusão, não advieram modificações significativas da condição dos municípios no contexto político-jurídico da Federação. Diz o art.1o do texto constitucional:
Art.1o: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.
Não se pode afirmar, todavia, que, em contraposição ao Estado unitário, o federalismo seja a única forma ou fórmula de “dosagem” ou de distribuição de poder dentro de um Estado ou na organização do seu território. Os exemplos próximos que nos deram a Espanha e Portugal são magistrais. Na Espanha com o “Estado das autonomias” e sua “Cultura del Pacto”.
Na publicação pela Tecnos, da décima edição da Constituição Espanhola, em 2001, preparada por Luis López Guerra, catedrático de Direito Constitucional da Universidade Carlos III de Madrid, há uma introdução ao texto, sendo dedicado o item II ao tema: “Constitución y Estado de las Autonomias”, onde ressalta:
Esta cualidad de norma-cauce, que hace posible la existencia de opciones legislativas alternativas, que no representan propriamente un ‘desarrollo’ de la Constitución, sino la puesta en vigor de alguna de las múltiples posibilidades que abarca, se hace evidente en lo que se refiere a la ordinación territorial del Estado y, más precisamente, a la ordenación de lo que se ha denominado ‘el Estado de las Autonomías’.
E observa, o referido autor, com muita propriedade, a construção dessas Autonomias, a partir da Constituição, mas não rigidamente enfeixadas por ela, permitindo o desenvolvimento da “cultura del pacto”, predominante na sociedade espanhola, ao menos, a respeito dos princípios fundamentais da organização do Estado.
No art. 2o da Constituição Espanhola, está dito:
La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomia de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas.
No Título VIII – “De la organización territorial del Estado”, o Capítulo Primeiro, art. 137, reza:
El Estado se organiza territorialmente en municípios, en províncias y en las Comunidades Autónomas que se constuyan. Todas estas entidades gozan de auntonomía para la gestión de sus respectivos intereses.
E no Capítulo III, art.143, está previsto:
1. En el ejercicio del derecho a la autonomia reconocido en el artículo 2 de la Constitución, las províncias limítrofes con características históricas, culturales y económicas comunes, los territorios insulares y las provincias con entidad regional histórica podrán acceder a su autogobierno y constituirse en Comunidades Autónomas con arreglo a lo previsto en este Título y en los respectivos Estatutos.
A Constituição de Portugal foi muito mais explícita do que a espanhola ao tratar das Regiões Autônomas, seus direitos e limites. Assim, começa a cuidar deste tema no art. 5 (Do Território):
1. Portugal compreende o território historicamente delimitado no continente europeu e os arquipélagos dos Açores e Madeira.
Art.6 (Estado unitário):
1. O Estado é unitário, e respeita, na sua organização e funcionamento, o regime autonômico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública.
2. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autônomas dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio.
O Título VII da Constituição portuguesa versa sobre “As regiões autônomas” e, do artigo 227 ao artigo 236, detalha, minudentemente, sobre o regime político-administrativo dos arquipélagos (Açores e Madeira) – art.227; sobre os estatutos (art.228); os poderes das regiões autônomas – art.229 (com quatro incisos, o primeiro dos quais com vinte alíneas); os limites dos poderes – art.230; a cooperação entre os órgãos de soberania e os órgãos regionais – art231; a representação da soberania da República – art.232; os órgãos de governo próprios das regiões – art. 233; a competência da Assembléia Legislativa regional – art.234; assinatura e veto do Ministro da República – art.235 e sobre a dissolução dos órgãos regionais – art.236.
V – A Integração
E nesse contexto de novas situações, de organização dos espaços, de convivência com realidades impensadas, mas necessitando de solução, os processos de integração tomam corpo em várias partes do mundo. É forçoso reconhecer que, também, é uma forma de redistribuição de Poder, por centralização em órgãos criados por tratados constitutivos, num espaço antes simplesmente composto por Estados-nação, com a sua soberania plena exercida sobre um território, na forma clássica, mas que já não atendem aos reclamos de hoje.
Manuel Porto destaca que as experiências de integração não são só de agora, embora apenas em meados do século XX é que a palavra tenha começado a ser usada para se referir à associação de várias áreas ‘econômicas’. E identifica, de 1812 a 1914, dezesseis casos de constituição de uniões aduaneiras, destacando a criação do Zollverein (1833 a 1871), com a abertura de fronteiras entre dezoito Estados alemães e o estabelecimento de uma pauta comum em relação ao exterior.
Reconhece, o autor, que pouco se avançou na primeira metade do século XX, e mais, citando Haberler, para quem o período de 1914 a 1945 foi qualificado como de “desintegration”.
Tomando como exemplo o mais avançado dos processos de integração, que é o europeu, constata-se que teve os seus momentos iniciais baseados em matéria econômica, com a criação de zona de livre comércio, seguindo-se os outros patamares, a união aduaneira, mercado único (ou interno), mercado comum, moeda única e outros passos mais aprofundados.
Impossível desconhecer que o aspecto econômico é relevantíssimo na vida dos Estados, especialmente numa Europa pós a 2a Guerra, por demais conhecido, o que se torna desnecessário descrever. Como também se deve ter em mente as vertiginosas e profundas transformações do mundo de hoje, onde as suas partes são sensíveis ao que se passa em qualquer delas, e refletindo-se no todo. Vive-se um mundo só, e neste mundo, como diz Mídon:
el liderazgo económico es condición sine qua non para el ejercicio del protagonismo mundial.
Mas, deve-se ter presente que a própria opção pelo processo na área econômica é fruto de razões políticas. Não por acaso que a primeira das Comunidades Européias criada foi a CECA – Comunidade Européia do Carvão e do Aço, que trazia nos seus objetivos não só as finalidades econômicas de regular tais atividades (produção do carvão e do aço), mas a opção política de delegar a um órgão superior o seu controle, visto que, ao longo da História européia, especialmente a mais recente, tantos problemas causaram.
Assim é que vemos razões de ordem política determinando os processos de integração, que terão seu curso, velocidade, alargamento e aprofundamento efetivados, inicialmente, pela área econômica. Mas, sempre, em nítida decorrência da opção política tomada pela unanimidade ou maioria do grupo de Estados-partes em tal processo. Qualquer dificuldade política entre os parceiros reflete uma paralisação ou até um retrocesso na integração. Isto se tem assistido nos processos que nos são mais próximos, como o Mercosul, e é compreensível, porque a integração atinge o ponto nevrálgico do Estado, que é o Poder – a sua cessão, mesmo que pequena, pontual ou parcial, a um órgão substituto, gerará a sua conseqüente perda ou diminuição para o substituído.
Nessa movimentação de poderes existente no processo de integração, pode-se identificá-lo como uma forma de federalismo, não necessariamente uma federação, nem mesmo uma confederação. Mas, de acordo com o espírito do federalismo, que é o de atribuir a um órgão externo a execução de tarefas que seriam próprias dos substituídos, e que, por razões as mais diversas, poderão ser mais proficientemente executadas pelo substituto, no interesse de todos.
VI – Conclusão
O que se pode concluir é que se vive na História da Humanidade um momento novo e de transformações impensáveis até poucos anos atrás. E para atender satisfatoriamente a tal momento buscam-se modelos para ajustá-los às necessidades atuais, mesmo que partindo de experiências anteriores, posto que, apesar destas profundas mudanças, há elementos permanentes e inarredáveis, como o território e a população – sendo esta, razão primeira de toda organização político-jurídica e fundamento do próprio Poder.
O Poder não impede o conflito. O importante é que possa transmitir conteúdos em que os destinatários dos enunciados possam perceber um conjunto de elementos que lhes permita a seleção ao decidir. A possibilidade de selecionar faz da proposta de aceitação em si, um objeto de expectativas. Isto porque, um aumento de alternativas amplia a liberdade, dando aos participantes visões da vantagem para que continuem a pertencer ao sistema, aceitando meios e condições comuns, dentro do possível, ou seja, reduzindo as complexidades inerentes à multiplicidade de pertença. Esta oferta amortece eventuais turbulências erodentes ao sistema. Dito de outro modo, o Poder regula as opções contingentes, induzindo ao expurgo as opções evitáveis.
A realidade atual, com uma economia em escala global, faz com que as forças econômicas pressionem, em detrimento da visão tradicional do Estado-nação. Povos outrora longínquos e remotos, recebem o apelo comercial instantâneo e irresistível para absorver o consumo de novos bens e serviços globais. De outro lado, lutam para salvaguardar seus valores locais. Então, os governos se empenham para atender sua base populacional, ora enquanto consumidores globais, ora como cidadãos de anelos locais. A este fenômeno se criou o neologismo “glocalização”.
Disto decorre o vitorioso ressurgimento do chamado “princípio da subsidiariedade”, consignado, inclusive, na proposta de um Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa. Nesta matriz, se preconiza que o nível de organização superior e mais “distante”, só cuidará de tarefas que não possam ser adequadamente desempenhadas pelos elos inferiores ou mais próximos das comunidades. Este impulso descentralizador do princípio da subsidiariedade vem a reforçar a idéia de que o federalismo se dirija ao atendimento das demandas dos cidadãos.
Destarte, as atuais condições do momento histórico, com outros fatores além dos levantados, fazem com que o federalismo exsurja com ímpar popularidade no âmbito internacional. Sobretudo porque, dada a versatilidade com que a idéia federal se aplica, cambiando em adaptações funcionais, variando graus de centralização e descentralização, permitindo, inclusive, assimetrias nas instâncias de participação nos órgãos decisórios. Essas assimetrias se manifestam tanto dentro da pertença estatal, como nos níveis de participação em organismos supranacionais ou intergovernamentais. Veja-se o caso da Rússia, Bélgica e Espanha.
Por outro lado, as próprias unidades federativas se fazem inserir como entes constituintes de federações e organizações supranacionais, como a Alemanha, Áustria e Bélgica enquanto membros da União Européia. Ou Canadá, Estados Unidos e México através do NAFTA.
O cenário leva a concluir que o federalismo não estagna e nem se esgota em modelos fechados. Sua natureza permite que se abra às exigências do entorno. A idéia federal é dotada de versátil plasticidade, plasmável conforme respostas políticas que evitem turbulências desagregadoras. Simultaneamente, sua mobilidade institucional preserva as possibilidades de que distintas identidades culturais e étnicas possam conviver sob uma unidade política mais ampla. É um bom modelo para se alcançar a harmonia, a unidade na diversidade que também é caminho para a paz social.
Referências bibliográficas:
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