Sinto-me muito feliz pela lembrança dos que fazem a Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO, na pessoa da Professora Marlene Salgado de Oliveira, em escolher o meu nome para Núcleo de Prática Jurídica desta nova Escola que já se firma dentre os cursos jurídicos da nossa cidade.
Homenagem que credito à generosidade dos que integram essa Universidade, mas a recebo com muita alegria. Perguntei-me, então, o que, poderia lhes dizer nesta oportunidade, além dos agradecimentos de praxe. Talvez, contar um pouco da minha trajetória profissional, mesmo que brevemente já que ela é longa no tempo, para que os jovens estudantes saibam que uma carreira se faz de vários passos, muitos desafios e absoluta obstinação para alcançar os seus objetivos. Isto sem perder jamais o compromisso com o Direito, a Justiça e a ética. Não será um bom profissional aquele que direcionar a sua vida apenas para auferir vantagens, dinheiro fácil. Pode até consegui-lo, e os exemplos são muitos. Nem vim também aqui pregar voto de pobreza ou absoluto desprendimento dos bens materiais. Mas, é preciso saber dosar a remuneração justa e serviço prestado ao cliente. É ter presente os interesses da parte cujo pleito patrocina, guardar respeito à outra e ao seu patrono, além, por obvio, aos órgãos da Justiça: Juízes, serventuários, membros do Ministério Público.
Assumo assim, agora, este tom um tanto professoral porque, faço questão de ressaltar, dentre as atividades profissionais, no campo jurídico, sempre considerei o magistério na minha vida a mais permanente e gratificante, embora sempre tenha me sentido comprometida com cada experiência profissional e procurado exerce-las no seu momento com dedicação e zelo.
A nossa carreira jurídica passa por muitas moradas. Lembro-me que ao examinar os títulos do último concurso para juiz federal, todos os candidatos muito jovens, mas com vários concursos feitos e diversos cargos ou funções exercidas. E assim está se tornando a carreira, onde a seleção pública democratiza os acessos e elimina as discriminações.
A minha não fugiu à regra. Comecei como estudante estagiária na antiga Assistência Judiciária do Estado de Pernambuco, hoje denominada de Defensoria Pública. Lá foi o meu primeiro contato com o cliente e o processo. Não era fácil advogar para os pobres, como ainda não o é nos dias de hoje. Não havia Vara, Cartório, nem Juiz privativos. Os processos eram distribuídos por todas as Varas e Cartórios e ficávamos à mercê da boa vontade do escrivão, escrevente, oficial de justiça e muito mais. Encontrei nessa minha experiência pessoas excelentes que tinham o sentimento de dedicar um pedaço daquele espaço que lhes cabia e do seu tempo aos menos favorecidos. Desse tempo guardei amigos até hoje. Era um périplo diário no velho Palácio da Justiça da Praça da República, onde ser abrigavam todas as Varas da Capital.
Entendo que o trabalho de prática jurídica é indispensável à completa formação do bacharel em Direito, qualquer que venha a ser a sua preferência para o futuro. Como uma emergência o é para o estudante de medicina. Nas defensorias aparecem as mais variadas causas, são expostas as fraturas da sociedade e visíveis as misérias humanas que muitas vezes na classe social a que pertencemos sequer temos conhecimento da sua existência. Grande parte das questões não chegam a ser jurídicas, são puramente sociais. É ai que se desenvolve a sensibilidade do estudante para discerni-las e saber dar o adequado tratamento. Uma desavença entre um casal, num momento de destempero, levada alguma das partes por um eventual excesso de bebida ou pelo veneno do ciúme, não deve levar aquele que recebe as partes a tomar uma solução drástica e irreversível. A vida mostra que passado aquele momento de desacerto, outros elementos vêm a prevalecer e é preciso, para o bem dos dois e da família, que uma porta ainda esteja aberta. É evidente que não condescenderemos com a violência doméstica, reiterada e mesquinha, por isso é preciso saber distinguir o eventual do habitual. Só a experiência nos ensina. É ouvindo, ouvindo, lendo nos olhos, interpretando os gestos, ouvindo as frases não ditas mas sentidas, que o profissional passa a ser também um conselheiro, um sacerdote, um psicólogo, um amigo, ou simplesmente o ouvinte – um apóstolo da paz social.
Também como estudante de Direito tive experiência no Conselho Penitenciário, onde depois vim a ser Conselheira por muitos anos, mas então ajudava nas entrevistas aos presos da Penitenciária Agrícola de Itamaracá, necessárias para instruir os processos de Livramento Condicional. Era um tempo muito diferente do Sistema Penitenciário. Havia muitas casas onde os sentenciados podiam residir com as suas famílias. Funcionava o Engenho São João que fabricava mel de engenho e outros produtos, havia as salinas, artesanato em coco, e muitas outras atividades profissionais além da agricultura que desenvolviam para o abastecimento próprio, da PAI e de outros estabelecimentos prisionais. Podíamos andar livremente pela ilha, sem qualquer perigo de sermos molestadas, conversar com quem nos procurasse, mesmos aqueles que não eram alvo das nossas entrevistas. É preciso entender o que se passa com pessoas que estão privadas da liberdade. O tempo tem outro sentido, um dia tem mais que 24 horas. A privação da liberdade é uma mutilação no espírito, ao aplica-lo é de se considerar o ato/fato praticado. Uns desejavam intensamente retornar à vida cada de fora, outros tinham perdido ao longo do tempo todos os seus elos com a sociedade e já não tinham para onde voltar – a família rareou as visitas, depois nem mais uma carta. Eram histórias comoventes. Interessante notar ao perguntarmos a razão pela qual ali estavam, sempre nos respondiam com o artigo do Código Penal – o 121, 171, 155, 157 entre outros, sabiam de cor e salteado os artigos, mais do que nós. Jamais se reconheciam pelas expressões conhecidas: homicida, latrocida ou outra correspondente ao crime praticado. É a vergonha social. Fiz também amigos e arranjei muitas afilhadas. Há uma porção de Margaridinhas por aí que me procuram vez por outra.
Infelizmente aquele Sistema Penitenciário, mesmo com todas as suas precariedades, já não existe. Hoje temos barris de pólvora com fogo perto, esperando-se que ecloda a cada minuto. São depósitos de presos, depósitos de seres humanos que se desumanizam a cada momento que ali passam. Os que ingressam já vinculados a grupos criminosos têm os objetivos mais sórdidos, perdendo os valores mais relevantes da vida em sociedade. E o que é mais grave, pela violência que grassa por todas as cidades deste país e do mundo, há muito mais do lado de fora do que atrás das grades. Nós é que nos prendemos por todos os meios de segurança. Nós é que somos privados da nossa livre locomoção, de desfrutarmos pequenos prazeres, como andar na rua, ter um vidro de veículo aberto, ou sofremos ao enfrentarmos uma necessidade, como tomar um transporte coletivo. Como nos preocupamos com qualquer demora de um filho, vocês jovens nem sabe quantas noites indormidas à espera de ouvi-los retornar ao lar. Sempre somos atingidos por um ato do qual foi vítima um parente, um amigo ou mesmo um desconhecido. Qualquer violência contra um ser humano atinge a humanidade inteira.
Servi também em vários setores da administração pública, como assessora jurídica – da Secretaria de Justiça, da Secretaria do Trabalho, inclusive naqueles anos dolorosos das grandes enchentes que devastaram o Recife.
Resolvi fazer concurso para o Ministério Público já que naquela época não era dado às mulheres do acesso à magistratura em nosso Estado, salvo a trabalhista que não era matéria da minha preferência. Fui promotora em Paulista – que compreendia também Abreu e Lima, como seu Termo. Comarca pesada, com apenas duas Varas. Ali fiz muitos júris. Confesso, desculpem-me os professores de processo penal, que não me agradavam. Sentia-me num palco, mas que num julgamento. Embora nunca tenha optado pelo gênero teatral, dos gestos cenográficos, das palavras ásperas em relação ao réu, como se vê nas novelas, procurei ser didática, como uma professora. Discorrer sobre os fatos e os seus autores com absoluta fidelidade aos autos, preocupada com um julgamento justo e não se eu ia ganhar ou perder o júri. Não é o promotor ou o advogado quem ganha ou perde um júri – mas a sociedade. O promotor não é um mero acusador, como se tinha na visão passada, mas um defensor da sociedade. Hoje, graças aos avanços da Constituição de 88, este novo papel está bem claro.
Há episódios engraçados na minha passagem por Paulista. Lembrarei apenas um. Num júri um advogado me fez uma poesia (eu tinha acabado de disputar um cargo eletivo) e abaixando-se retirou da sua tribuna um ramalhete de rosas vermelhas. Todo mundo bateu palmas, até o réu.
Denunciei em todos os relatórios que a cada ano mandava à Procuradoria Geral a presença de grupos de extermínio, da quantidade de corpos deixados nas matas da região, sem qualquer solução nos inquéritos policiais. Vejam agora, tornou-se banal, corriqueiro.
De Paulista vim para Olinda, onde também em Vara Criminal, trabalhei com um grande juiz, hoje desembargador, Bartolomeu Bueno de Moraes. Preocupava-me muito que só chegavam processos de pessoas pobres e me doía acusa-las quando sabia que em muitos casos não era um crime, mas era a fome, a necessidade que as levava àqueles gestos alguns tresloucados. Quando não havia violência, nunca deixei de pedir absolvição e obtê-la de um juiz alerta para as durezas da vida.
Deixando o ministério público, voltei a inscrever-me na Ordem dos Advogados e reassumi o meu velho e mesmo número de inscrição: 2641. Alternava a advocacia com o exercício de muitos cargos do executivo, de natureza política – Chefia da Casa Civil do governo de Pernambuco, Chefia de Gabinete do Ministério da Educação, Secretaria de Educação do Recife, entre outros. Mas as atividades docentes sempre estavam presentes.
Até que, em 1999, ingressei na magistratura federal, exatamente no Tribunal Regional Federal, sediado no Recife, mas que congrega seis Estados do Nordeste, do Ceará a Sergipe. Estados deste nosso pobre Nordeste. Depois de um série de exigências, tais como, apresentar cinco certidões por cada ano de advocacia, em pelo menos dez anos. Ora, diziam que eu não tinha sido advogada. Enganavam-se os que não sabiam que eu fora, como lhes disse, advogada dos pobres por muitos e muitos anos. Tinha muito mais do que cinco questões por ano. Bastou dar uma volta do Palácio da justiça e aqueles antigos escrivãos riam e lá dos seus livros sacavam uma enorme lista de processos onde eu havia funcionado como advogada. Não todos, mas quase todos, de pobres.
Fui nomeada juíza do Tribunal, iniciei na 1a. Turma do Tribunal. Recebi uma quantidade processos que faria desistir quem não estivesse afeito ao trabalho. Encontrei uma equipe que continuou praticamente a mesma. Organizamo-nos e mostramos que a primeira mulher a integrar aquela Corte era também a mais produtiva em número de processos julgados. Foi um mutirão de solidariedade, de crença no Direito e, por que não dizer, de gênero.
Em dezembro de 2002, fui honrada com a escolha dos meus pares para presidir o Tribunal no biênio março de 2003 a março de 2005. Tinha sonhos e tinhas prioridades e metas. É preciso ter presente que, se administrar é eleger prioridades, também faz-se necessário cumpri-las, vence-las e escolher outras tantas. Ninguém faz nada sozinho, só com equipe coesa. E assim partimos como prioridade os aspectos jurisdicionais.
Dois setores estavam a exigir uma pronta ação – o setor de Admissibilidade de Recursos, onde eram incontáveis e assustador o número de processos aguardando despacho e o de pagamento de Precatórios, especialmente as chamadas Requisições de Pequeno valor – RPVs. Atacamos sem medo e com o máximo. Temos a alegria de dizer, que nesta gestão, já movimentamos, pasmem vocês, mais de 100.000 processos no setor de Admissibilidade de Recursos e já pagamos só em RPVs, mais de 200 milhões de reais. Hoje são dois setores absolutamente controlados, atualizados e em dia.
Passamos para outras áreas: substituição do sistema de informática de modo uniformizar toda a Região. Um sistema bem mais moderno. Como sabem, toda mudança há resistência. Hoje já implantamos no Tribunal e em mais 3 Seções Judiciárias, estando as demais já agendadas. Digitalização de acórdãos foi contratada, mudança no sistema de som para gravação das sessões e apoio às notas taquigráficas, que integram os julgados, instalação do Disk-RPV evitando o deslocamento das pessoas até o tribunal para saber o dia do seu pagamento, distribuição dos processos e muitas outras medidas salutares aos advogados e às partes.
Temos cuidado da implantação das novas Varas, nos termos da lei de novembro do ano passado. Ainda em 2003 instalamos as oito Varas destinadas aos Juizados Especiais federais, subdividindo-as em duas, num total de 16 na Região. Este ano, dentro das seis permitidas pela lei, quatro na estão instaladas: Itabaiana, Maceió, Mossoró e Caruaru. Ficando Souza e Limoeiro no norte para o mês de junho.
Mas, orgulho-me de ter dado um tratamento humano e digno àqueles que vem receber o seu dinheiro decorrentes de processos, muitos que se arrastavam há anos na Justiça.
Não vou discorrer sobre as reformas na administração, apenas às que interessam aos usuários como a substituição do ar condicionado e a modernização dos elevadores, a primeira já concluída e a segunda até o final deste ano. Além da ampliação de espaços físicos destinados a acomodar uma possível ampliação do número de desembargadores do tribunal, com a compra de um prédio na praça em frente, além da reforma num edifício próprio na Av. Dantas Barreto para ser o Fórum Social, destinado exclusivamente aos Juizados especiais, para que os pobres não precisem se deslocar para o Jiquiá e sejam atendidos com conforte e dignidade, perto dos meios de transportes e com todo apoio necessário.
Já me alonguei mais do que devia. Mas entendi que os estudantes de Direito, quer sejam nossos estagiários atuais ou futuros, mas certamente usuários quando profissionais, é importante ter uma idéia da instituição onde irão exercer a sua profissão.
Agradeço à Universo por esta homenagem que cala muito bem na alma do professor, na certeza de que neste espaço os alunos aprenderão que só vale a pena exercer a nossa profissão se a voltarmos não só para nós, mas especialmente para os que nos procuram, confiam em nós e nos entregam muitos dos seus mais preciosos valores: o destino da família, o seu destino e a sua liberdade.
Que vocês, estimados estudantes, saibam cumprir essa missão com a certeza de que estarão não fazendo favor aos carentes, mas crescendo em si próprio como seres humanos, construtores da sociedade e do futuro da nossa terra e da nossa gente.