Senhor Presidente da Câmara Municipal do Recife
Vereador Dilson Peixoto,
Prezadíssimo amigo, Vereador Paulo Roberto
Senhores vereadores,
Senhor Presidente da Assembléia Legislativa de Pernambuco, Romário Dias, Deputado Augusto Coutinho, neste ato representando o Vice-Presidente da República, Marco Maciel e demais deputados Estaduais,
Caros colegas, Ubaldo Ataíde Cavalcanti, Vice-Presidente no exercício da presidência do TRF, desembargadores e juízes federais,
Prezado desembargador Antônio Camarotti, Presidente do Tribunal Regional Eleitoral, desembargadores e juízes estaduais,
Senhora Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, amiga Ana Maria Schuler
Estimada amiga Geralda Farias, Presidente da Cruzada de Ação Social, neste ato representando o Governador Jarbas Vasconcelos,
Caro Maurício Hands, Secretário de Assuntos Jurídicos da Prefeitura da Cidade do Recife, neste ato representando o Prefeito Jo!ão Paulo
Estimados colegas do Ministério Público
Distintas autoridades civis, militares e eclesiásticas, presentes ou representadas,
Estimados professores e lideranças comunitárias do Recife,
Senhores advogados, queridos alunos,
Caríssimos familiares,
Minhas amigas e meus amigos,
Senhoras, Senhores,
Sinto-me extremamente honrada em receber a Medalha do Mérito José Mariano, que esta Casa — dos representantes do povo do Recife, generosamente, houve por bem outorgar-me, à unanimidade dos seus pares, acolhendo a indicação do meu dileto amigo, vereador Paulo Roberto.
Por tão expressiva homenagem para mim, quero iniciar agradecendo — de modo especial, ao professor Paulo Roberto, este educador por vocação e político como extensão do seu servir à nobre causa da Educação. Trabalhamos juntos nessa mesma seara, consolidando-se, pela comunhão de ideais e de realizações, uma grande e sincera amizade. Suas palavras calaram bem fundo no meu coração, pelas referências tão generosas quanto afetivas à minha pessoa.
Gostaria de estender os meus agradecimentos a todos os integrantes desta egrégia Câmara, com quem tive o privilégio de conviver mais de perto, durante o período em que exerci o cargo de Secretária de Educação do Recife, por escolha do ilustre homem público, ex-Governador e ex-Prefeito, Roberto Magalhães.
Relembro, com especial respeito, o dia em que aqui compareci, tão logo assumi o cargo de Secretária, para expor, debater e ouvir sugestões, acerca do Programa que então implantávamos no Recife – o Bolsa-Escola, e que tramitava nesta Casa como Projeto-de-Lei Municipal. Colhi valiosas sugestões. Muitas transformaram-se em emendas, outras tantas passaram a integrar o seu regulamento. Os compromissos então assumidos foram fielmente cumpridos por ambas as partes. E assim, nascia entre nós uma convivência harmoniosa, uma colaboração efetiva, que as eventuais e pequenas diferenças políticas jamais comprometeram.
Sempre nutri por esta Casa e pelos seus ilustres e dignos integrantes a maior consideração, por enxergá-los para além da representação legal do povo do Recife, que a democracia representativa consagra como órgão legislativo municipal. Mas, sobretudo, por reconhecer, em cada um, importante papel a desempenhar, sintonizados com cada bairro, cada rua, cada localidade – que são pedaços da cidade; conhecedores dos seus problemas, das suas necessidades, das suas angústias – que são pedaços da dor da cidade – e aqui formam o grande mosaico multicor e multiforme de todos os recifes.
Sim, todos os recifes, porque eles são muitos. Os visíveis e os invisíveis aos olhos dos passantes. Seguramente os últimos, talvez, nem sejam os maiores, mas, certamente, são os mais populosos. Estão escondidos por trás de fachadas ou de muros em largas avenidas – como a querida Comunidade N. Sra. do Pilar; ou enterrando-se na lama, nas palafitas à beira-rio, dos Coelhos, na Iputinga, na Madalena, numa miséria indigna da condição humana. Ou, ainda, encarapitados nos morros que circundam o Recife dos baixios, escorregando nas suas encostas e pedindo a Deus que não chova.
A esses recifes invisíveis procurei servir da melhor forma que pude, esforçando-me obstinadamente na direção de alguns objetivos. Os alcançados estão aí e falam por si, os que ficaram nos sonhos, desejo sinceramente que outros os concretizem. Desses recifes eu não esqueço, não só porque me sinto parte deles, mas porque eles ficaram dentro de mim.
Presidente Dilson Peixoto – com quem participei da Comissão Executiva do Bolsa-Escola, e com quem partilhei as angústias das grandes relações de alunos de famílias de renda “zero” – , alçado à Presidência desta Casa, por justo mérito, na pessoa de V. Exa. expresso o meu sincero e comovido agradecimento, extensivo a todos os vereadores, dentre os quais tenho grandes e pessoais amigos, albergados nas diferentes legendas partidárias. Deixo de nominá-los para não cometer o pior dos pecados, que é o da omissão.
Agradeço, desde já, muito sensibilizada, às autoridades, aos meus familiares, que estão sempre ao meu lado – neste ou em outro mundo onde se encontrem — e aos tantos colegas e amigos aqui presentes, que deixaram suas ocupações para dividir comigo a alegria deste momento. A presença de cada um confirma que, dentre as melhores coisas da vida, está sem dúvida, construir e consolidar amizades.
Meus agradecimentos aos componentes do mavioso “Coral Novo Milênio”, regido pela querida amiga Leni Amorim, essa guerreira das artes, que nos trouxe, na beleza da música, a certeza de que os seus integrantes vivem com alegria não a terceira, mas uma bela idade.
Honra-me também este galardão pelo Patrono desta Casa, que dá o seu nome à medalha – José Mariano. José Mariano Carneiro da Cunha, pernambucano de Gameleira, foi aluno da Faculdade de Direito do Recife e, ali, bacharelou-se em 1870. Dois anos depois, fundava o Jornal “A Província,” que se tornou órgão do Partido Liberal, mantendo-se na direção até 1885, e dele fazendo uma das suas trincheiras na luta pela liberdade. Eleito deputado geral em 1878, foi reeleito para diversos mandatos. Tornou-se, no Parlamento, ao lado de Joaquim Nabuco – seu correligionário e amigo – um dos mais denodados defensores da abolição da escravatura no Brasil. Todavia, não se limitou às palavras, mas empenhou-se com ações concretas nas sociedades emancipadoras e nas abolicionistas, entre as quais o célebre Clube do Cupim, de que foi fundador e um dos membros mais atuantes, sob o pseudônimo de “Espírito Santo”. Sempre recebeu, para as suas ações, o inestimável apoio da esposa, D. Olegarina, mais um exemplo de determinação da mulher pernambucana, que chegava a receber na própria casa, no Poço da Panela, escravos fugidos. Político de tão grande popularidade, que um hino abolicionista dizia, numa estrofe:
“Os dois tribunos da Pátria
No Congresso Nacional:
Mariano a nossa glória,
Nabuco nosso phanal”.
Republicano, eleito deputado constituinte, em 1890, fez oposição ao marechal Floriano, participando do movimento revolucionário de 1893. Preso e recolhido à Fortaleza de Lage, no Rio de Janeiro, venceu, não obstante, as eleições federais de 1 º de março de 1895, elegendo-se deputado a si e aos seus companheiros de chapa. Esteve afastado do Parlamento de 1899 até 1912, quando retornou, eleito deputado por Pernambuco, morrendo pouco depois, no Rio de Janeiro. Seu corpo veio para o Recife, onde foi inumado.
José Mariano – defensor da liberdade humana no tempo em que a escravidão era também física, e o escravo considerado apenas uma coisa, com um preço, e não uma pessoa. Seu pensamento, trazido para os tempos de hoje, deve ser entendido, nesta Casa, como símbolo de outras liberdades que se transformaram em direitos fundamentais do ser humano: liberdade de expressão, de locomoção, de informação, de religião; direito à educação, à saúde, à vida, à paz.
Ostentar uma Medalha José Mariano é, para mim, também um compromisso com todas as liberdades; receber a Medalha José Mariano é assumir que, da trincheira de que dispuser, manter-me-ei fiel à garantia de todos esses direitos.
Sou do Recife, embora há muito viva em Olinda, transformando meu coração numa diana do pastoril do amor pelas duas cidades irmãs.
Sou do Recife, daqui, do mesmo Recife dos versos de Carlos Pena Filho:
“No ponto onde o mar se extingue
e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros
do frio sono das pedras.
[…]
Hoje, serena, flutua,
Metade roubada ao mar,
Metade à imaginação,
Pois é do sonho dos homens
Que uma cidade se inventa”.
Sou do Recife, a Mauritiopolis. A mesma inventada do sonho do conde João Maurício de Nassau, que a transformou, de uma povoação localizada na parte extrema do istmo, nos oito anos de sua permanência no Brasil, num novo centro urbano, na primitiva Ilha de Antônio Vaz. A nova urbe veio a receber o título de Cidade Maurícia. Descreve Leonardo Dantas que, “aos melhoramentos urbanísticos, inclusive, a construção dos palácios de Friburgo e da Boa Vista, bem como uma grande ponte ligando o atual bairro do Recife à nova cidade, além de outra ligando esta ao continente, vieram juntar-se os trabalhos dos pintores, astrônomos, médicos, naturalistas, que faziam parte da comitiva. […] Estudos sobre a flora, a fauna, a medicina e os naturais da terra, bem como observações astronômicas e um detalhado levantamento cartográfico da região, bem dizem da importância da presença do conde João Maurício de Nassau à frente dos destinos do Brasil Holandês”.
Permitam-me, Sr. Presidente, autoridades e amigos presentes, que quebre um tanto o formalismo que uma solenidade como esta requer, para falar de um Recife que vivi e o quero vivo, num misto de sentimento e magia.
Sou do Recife, o mesmo cantado por Capiba,
“ Recife, Cidade Lendária
De pretos de engenho cheirando a bangüê ;
Recife – de velhos sobrados, compridos, escuros
Dá gosto de ver.
Recife – teus lindos jardins
Recebem a brisa que vem do alto-mar
Recife – teu céu tão bonito
Tem noite de lua, pra gente cantar.”
Sou do Recife, dos seus bairros de nomes românticos e atrativos, como “Encanta Moça”, “Boa Vista”, “Dois Irmãos”, “Rosarinho”, “Boa Viagem”, este tinha até uma “Casa Navio”, no trecho conhecido como “Corta Jaca” ; dos bairros abençoados pelos seus padroeiros, São José, Santo Antônio, Santo Amaro; dos que trazem nomes de fruteiras, Jaqueira, Cajueiro, Tamarineira, Coqueiral, Mangueira, Mangabeira. Dos bairros carregados de História, Casa Amarela do Arraial do Bom Jesus e da Casa Forte, ambos símbolos da resistência ao invasor. O último, referência da coragem da mulher pernambucana. Ou, ainda, aqueles de nomes um tanto estranhos para os de fora, mas que nos soam tão familiarmente, como Aflitos, Afogados, Água Fria, Linha do Tiro. Quando alguém ia ao velho centro da cidade, referindo-se ao hoje encantador “Recife Antigo”, dizia “vou lá dentro do Recife”.
Sou do Recife das muitas ruas e praças que guardam seus nomes antigos e cheios de significado, como no frevo n º 3, de Antônio Maria:
“Rua antiga da Harmonia
Da Amizade, da Saudade
E da União
São lembranças
Noite e dia”.
Ah, além dessas, quantas outras mais, como a Praça Chora Menino, ruas da Aurora e do Sol, da Glória, Pátio do Terço, Rua do Pombal, da Concórdia, Largo da Paz, Rua Imperial, sem falar nas do Imperador e da Imperatriz. Cada uma tem sua história e uma razão de ser. Embora justo o reconhecimento a pessoas beneméritas para a cidade, que esta Casa homenageia post mortem, dando os respectivos nomes às vias públicas, mas permanece o encanto de que a Avenida da Saudade leva ao Cemitério conhecido como de Santo Amaro, mas que, na realidade, se chama Bom Jesus da Redenção.
Sou mesmo do Recife, porque aqui também estavam as casas dos meus avós – só não moravam na Rua da União, como o de Manoel Bandeira : os paternos estavam na Rua do Sossego e a materna na Estrada de Belém . Também, como o poeta:
“nunca pensei que ela(s) acabasse(m),
tudo lá parecia impregnado de eternidade”.
Mas, guardo de ambas, afetuosas lembranças, desde o cheiro do jasmim e das rosas dos jardins, das brincadeiras com os primos, das guloseimas, dos chás para febre, das balinhas de guaco para tosse, de um tempo só vivo na memória do coração e nos retratos esmaecidos.
Por tantas coisas boas, “Sou do Recife com orgulho e com saudade”, não por estar longe no espaço, mas “Sou do Recife com vontade de chorar” por um tempo passado – o mesmo Recife de Antônio Maria. Nasci, cresci e me criei aqui – nasci na Rua Marquês do Paraná, me criei na Rua Alfredo de Medeiros, entre Espinheiro e Encruzilhada. Estudei o curso primário, era assim que se chamava à época, perto de casa, no “Instituto Recife”, onde fui aluna de uma das maiores educadoras do seu tempo – professora Eulália Fonseca – Lalu, a quem renderei sempre as minhas homenagens.
No Colégio de São José, das Irmãs Dorotéias, onde minha tia era a Madre Oliveira, fiz o ginásio, de lá saindo para o Colégio Vera Cruz na busca do “curso clássico”, preparação ao ingresso na Faculdade de Direito. Guardo dos dois Colégios alegres recordações, tanto das colegas – muitas, amigas até hoje, como as irmãs Schuler, que Ana Maria, nesta Mesa, representa a todas, como dos professores – religiosas e leigos, e, especialmente, agradecida, pela sólida formação moral e cristã ali recebida, imprimindo, desde cedo, os valores éticos que deveriam ser observados em todos os atos da minha vida.
Recordo-me do Curso Torres, indispensável a todos os que pretendiam chegar à “Casa de Tobias”, essa vizinha da frente – a Faculdade de Direito do Recife. Lembro-me do vestibular, adiado naquele ano por causa de uma greve dos estudantes, que exigiam ter representação nos órgãos colegiados: “a greve por 1/3”, como era chamada. Ao se realizar, na quinta-feira depois do Carnaval, fui fazer a prova de francês, tendo como examinadores o professor Palhares Moreira Reis, em gramática (que me examinou do vestibular ao doutorado) e o professor Glaucio Veiga, em literatura. Ao sortear o ponto, com este último, saiu o nome: George Sand. Com a sua voz tonitruante me perguntou: “homem ou mulher?” Mulher, respondi – Aurore Dupin. Escreveu, com pseudônimo masculino, na primeira metade do Século XIX, romances de amor como Indiana, Valentine, Lélia, onde reivindicava para as mulheres o direito à paixão e lançava reprovação dura às convenções mundanas e aos prejulgamentos sociais. Na maturidade escreveu História da minha vida e Ela e ele. Foi amante de duas figuras mundialmente conhecidas, o escritor Alfred de Musset e o compositor Frederic Chopin.
Assim, naqueles primeiros contatos, entendi logo que a mulher, para se afirmar naquele “Templo” ainda tão masculino, embora não precisasse usar pseudônimo, necessitaria de determinação obstinada para criar os seus próprios espaços.
A Faculdade de Direito do Recife, onde entrei aos dezessete anos e de onde nunca saí. Tenho orgulho de ter dela os títulos de bacharel, mestra e doutora em Direito, embora não tenha me limitado a eles, nem ao Recife, nem ao Brasil. Foi um tempo maravilhoso, de descobrimento do Direito, da Justiça, da vida. Da convivência com grandes mestres – juristas do maior nível e colegas com quem ainda conservo amizade fraterna. Vivemos os dias tumultuados do pré e pós 64, mas a Casa ultrapassou todos os percalços com a dignidade e a força que vêm do Direito e da sua própria História.
Se entrei na Escola bastante tarde para os padrões atuais, com sete anos completos, mas aos vinte e dois já dava a minha primeira aula na Faculdade de Direito da Universidade Católica, na disciplina a que me dedico até hoje, o Direito Internacional, no distante ano de 1967, como assistente do professor Marco Antônio Maciel. Desde então, sempre estivemos próximos, quer na Administração pública, quer nas lides políticas. Aprendi a admirá-lo pela honestidade, simplicidade, capacidade de trabalho, amor a Pernambuco e muitas outras grandes lições, mesmo quando silente.
O magistério sempre foi, das muitas atividades a que me dediquei na vida, a mais constante. Tenho consciência de que fui e fiz muitas coisas, senão muito bem, mas da melhor forma que pude. Mas o que mais fiz foi procurar ensinar, e o que sempre fui, foi professora. Se é por servir à Educação que ora me homenageiam, tenham a certeza de que foi no magistério onde mais me realizei. Ao longo desses trinta e quatro anos completos de sala de aula, tenho procurado transmitir aos meus alunos, já na segunda, quase terceira geração, não só o que os livros trazem. Isto eles poderiam fazer por si. Mas despertá-los para os assuntos internacionais, semear entre eles o respeito aos direitos humanos, às obrigações decorrentes dos tratados e das convenções, à palavra empenhada, à autodeterminação dos povos, à prevalência da eqüidade sobre a iniqüidade, do Direito sobre a força. Tarefa difícil, quando vivemos num tempo de estranha guerra e, como tal, em situações incompatíveis com as liberdades humanas.
Sou do Recife e fui do Recife dos tempos das grandes procissões, onde saía vestida de anjo, com uma túnica de cetim branco com bolinhas douradas na barra, asas recobertas de folhinhas de papel crepon, diadema com uma estrela na cabeça, muito apertado para não escorregar nos meus cabelos bem lisos. Meus irmãos e primos carregavam o andor do Senhor dos Passos e chegavam em casa com os ombros roxos – fazia parte do calendário religioso da família. Meu avô era da Mesa da Irmandade.
Quantas lembranças das Semanas Santas! Nas quintas-feiras, todos iam, como se dizia, “correr os Sepulcros”, cada um mais bonito, ornamentados pelas beatas e onde se faziam donativos e se trocavam moedinhas. Não se comia carne nas quartas e sextas-feiras durante toda a Quaresma, mas eram muito bons os pratos típicos da época. Embora se enfatizasse que era para fazer jejum , talvez fosse o tempo que mais e melhor se comia, tudo na base do leite de coco, até o feijão e o arroz!
E, por falar em comidas, o meu Recife sempre teve uma culinária rica. A sua doçaria é esplêndida, associando o açúcar, produto principal do Estado, ao sabor marcante das frutas tropicais. Aqui se soube acrescentar, com perfeição, à não menos deliciosa doçaria portuguesa, o coco, o milho e a mandioca, nas sobremesas que enchem os olhos e agradam aos paladares mais exigentes. Estão a comprovar o Bolo Souza Leão, o Bolo de Rolo, a Baba de Moça. Quem nunca comeu um doce em calda de goiaba , de jaca ou de mamão, feito em casa, certamente, não conhece um dos prazeres da vida.
O Recife se dava ao luxo de ter suas comidas próprias para determinadas festas do ano. O filhós, embebido em calda de açúcar, era melhor no Carnaval. Além da Quaresma, o São João sempre foi época de variadíssima e trabalhosa culinária: canjica, pamonha, bolo de milho, pé-de-moleque, manuê. No tempo em que se comprava milho verde por mão, o que, para explicar aos mais novos, quer dizer cinqüenta espigas. E depois de descascá-las, debulhava-se uma a uma. A arte estava em trançar as palhas mais tenras para despejar-se o líquido fumegante que daria forma ao manjar dos manjares, que é uma pamonha cremosa.
No Natal, o pastel é doce, recheado de carne de porco moída e uma azeitona, depois de frito, passava-se no açúcar. A massa era feita em casa e aberta com o rolo próprio, caricaturado nas charges como arma feminina contra maridos trelosos. O peru, comprava-se vivo, com certa antecedência para engordá-lo, era embriagado com cachaça e abatido na véspera para dar tempo de temperar e assá-lo para a ceia. Hoje, compra-se temperado e congelado não se sabe há quantos meses.
Embora seja da geração do fogão a gás e da geladeira, recordo-me da velha máquina de moer carne, dos filtros de barro, do raspador de coco e do pingüim de louça, em cima da geladeira.
Sou do Recife. Não fui do Recife do tempo das figuras da Evocação de Nelson Ferreira. Não conheci Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, nem Phenelon. Mas fui do Recife que cantava a Evocação nº1, de belos e saudosos carnavais.
Como Gilberto Aureliano, na canção “Recife Luz”, também
“Ó eu não sei
Se descrever tanta beleza poderia
Minha cidade, no carnaval se redescobre na alegria.
É o prazer
De se envolver nestes momentos de magia
De ser feliz
Acreditando que real é a fantasia”.
Os carnavais que reviviam as marchinhas antigas – “ Se você fosse sincera, ô, Aurora”; “Ó jardineira por que estás tão triste”, “Allah-la-ô, oh que calor”. Como também os sucessos um pouco menos antigos, “tomara que chova, três dias sem parar”(1951), “confete, pedacinhos coloridos de saudade” (1952), “você pensa que cachaça é água”(1953), “recordar é viver, eu ontem sonhei com voce”(1954), “eu vou pra Maracangalha, eu vou”(1956), “ei, você aí, me dá um dinheiro aí” (l960), “a lua é dos namorados” (1961), “olha a cabeleira do Zézé” (1964). Ou a inesquecível, “quanto riso, ah quanta alegria, mais de mil palhaços no salão, Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão”, era o sucesso de Máscara Negra, no Carnaval do ano de 1967. Ou os do grande Nelson Ferreira, além dos muitos frevos frevendo para os passistas traçarem tesoura, as canções tão cheias do mais puro sentimento: “O dia vem raiando por detrás do mar”, “Chora palhaço, grande a tua dor”, “ Oh Linda flor da madrugada”, “Gosto de te ver cantando”. Ou os do inesquecível Capiba, “Quando é noite de lua, lá no bairro onde moro, vou pra rua cantando para alguém que tanto adoro”; “Os melhores dias da minha vida, eu passei contigo, querida”, “Manda embora essa tristeza, manda por favor”, “Quando se vai um amor, deste que a gente quer bem”, “o que é que vou dizer em casa, quando chegar quarta-feira de cinzas”, “quem vai pro farol é o bonde de Olinda”. Ou as músicas saudosas de Antônio Maria e Luís Bandeira, porque também eu muitas vezes, “voltei Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço”, a vibração das de Edgar Moraes, entre tantos outros. Músicas que permaneceram no tempo porque retratam o eterno da alma humana.
Carnavais de confete e serpentina, do corso nas ruas do Centro, da Concórdia, parada obrigatória na casa do Dr. Bernardino Ramos, compadre de meu pai. Dos bailes do Clube Português e Internacional, animados pelas Orquestras de Zacarias e de Nelson Ferreira. Quando soavam os primeiros acordes do Vassourinha, estremecia o salão. “Ah quarta-feira ingrata, chega tão depressa, só pra contrariar”, dando a volta na praça já dia claro, e terminando com aquele cheiroso cachorro quente da porta do Clube. Hoje, só em pensar, o meu colesterol estremece!
Mas, como diz o Frevo da Saudade, de Nelson Ferreira e Aldemar Paiva:
“Quem tem saudade não está sozinho,
Tem o carinho da recordação
Por isso quando estou mais isolado,
Estou bem acompanhado com você no coração”.
Sou do Recife, do tempo das compras no centro da cidade: nas ruas Nova e da Imperatriz atravessando a pé a Ponte da Boa Vista – da Sloper, da Viana Leal (a primeira escada rolante da cidade), da Etam, do Louvre, da Sapataria Clark, da Phoenix, do Magazine Caxias, da Krause, da Ótica Universal; das Livrarias Cruzeiro, Acadêmica, Impetratriz e Médico-Científica; da Casa Holanda, para os mais abastados e da Movelaria Livramento, para a classe média; do Ateliê de Dulcinha Walter, para os vestidos de grande festa e de Mme. Georgina Palha, onde se alugavam chapéus para os casamentos. Compravam-se na Casa Blumenau toalhas riscadas e lãs coloridas para bordá-las com bastidor, discos da Fábrica Mocambo, na Loja Rosenblit. Tomava-se chá na Casa Matos, sorvete no Gemba – mangaba com chocolate, era o que sempre pedia. Podia-se também beber guaraná Fratelli Vita, suas gasosas de limão e de maçã, ou, ainda, o casal “Cliper”, o guaraná e a laranjada . Tirava-se retrato no “Foto Beleza”, na Camboa do Carmo, onde os irmãos Lacerda ajudavam a natureza retocando os traços das beldades.
Havia a Semana da Vitrine, com disputa e premiação. As “Lojas Paulista”, que depois vieram a se chamar “Casas Pernambucanas”, sempre ganhavam apresentando suas vitrines com lavadeiras reais, pessoas lavando roupa, em vez dos manequins inanimados.
Ao falar em moda, lembro-me quando começaram a aparecer os tecidos com fios mistos e sintéticos substituindo a seda, o linho e o algodão puros pelo nylon e assemelhados. Tinham a vantagem de não amassar e muitos nem precisavam passar a ferro. As célebres camisas “Volta ao mundo”, também conhecidas como “lava, mas não passa” ou os não menos usados conjuntos femininos “banlon”, tão incompatíveis com o nosso clima. A cintura feminina alterava a sua altura de acordo com os modelos das artistas, subindo com a “linha diretório”, depois que passou o filme “Desirée, o amor de Napoleão”. Quem não se recorda da estamparia “Mamãe Dolores”, personagem do interminável “Direito de Nascer”. As primeiras calças compridas, hoje tão popularizadas como “jeans”, chamavam-se “faroeste”, numa referência ao estilo “country” americano.
Sou do Recife da “Sociedade de Cultura Musical,” que promovia eventos mensais no Teatro Santa Izabel, do Teatro de Amadores e das temporadas das Companhias do Rio de Procópio e Bibi Ferreira; da Festa da Mocidade, no Parque 13 de Maio, já em declínio; das novelas de rádio e do início da televisão Jornal do Commercio, com os Programas locais ao vivo, a “Hora do Coquetel”, de Alex e “O Mundo das Artes”, de José Maria Marques, dos quais participava, com freqüência, tocando violão clássico.
Sou do Recife do tempo que cinema era apenas cine e não “salas multiplex” – matinées do São Luís, depois de soar o gongo anunciando o início da sessão, acendiam os dois jarões coloridos e logo o leão da Metro rugia avisando que o filme ia começar. De belos filmes românticos, como “Candelabro Italiano”, com a música “Al di lá”, “Suplício de uma Saudade”, “Um fio de esperança”, “Amor na Tarde”, da música “Fascinação”, de “Sissi”, “Luzes da Ribalta”, ainda com Charles Chaplin, das comédias italianas de fino humor. Quando foi reformado o passeio e a mureta da margem do Capibaribe, na Rua da Aurora, onde era possível sentar-se agradavelmente, logo veio o apelido de “quem me quer”. Mas também havia a opção das “Matinées dos Brotinhos” do Internacional, porque, naquele tempo, jovem, podia ser chamado de “brotinho”, mas, se era rebelde, pertencia à “juventude transviada”. Era tão bom lanchar um “sanduíche Bauru” no drive-in do barzinho do Dérbi.
Sou do Recife do tempo que os remédios tinham na bula as indicações e faziam bem à saúde e não tantas contra-indicações que se convertem mais em ameaças do que em promessas de cura. Tomava-se Salofeno, usava-se Elixir Sanativo (para tudo), Água Rabelo, Xarope Bromil, “o amigo do peito”, Elixir Paregórico, Atroveran e Calcigenol para as crianças.
Sou do Recife e fui do Recife do tempo dos “trotes dos feras”, os calouros aprovados no vestibular, ocasião para os protestos políticos da estudantada. Isto acabou em 1964. Lembro-me, também, dos chamados “serenos” dos bailes e dos casamentos, quando muita gente não convidada ficava na porta dos clubes e das igrejas fazendo comentários acres sobre os que chegavam. Eram o terror das noivas, especialmente daquelas cujo casamento deveria ter acontecido alguns meses antes!
Sou do Recife das pessoas morando em casas, onde se faziam as festas, como também, saíam os enterros da família. Onde, embora se convivesse muito com vizinhos, se tinha mais privacidade. As crianças brincavam nos quintais ou nas calçadas: de pega, academia, cabra-cega, pulando corda e não em “playgrounds” acimentados. Era possível namorar no portão sem medo de ser assaltado. As visitas se anunciavam batendo palmas e não falando em interfones sob os olhares misteriosos das câmeras de segurança.
Tenho saudade da casa dos meus pais, das mesas grandes aos domingos, do terraço aberto, das fruteiras do quintal: mangueiras, sapotizeiro e o jambeiro, que transformava o chão num tapete cor-de-rosa. Daquele entra-e-sai de gente, cada um com sua história e todos bem-vindos. Tipos pitorescos, uns, pessoas carentes, muitas, era um pólo da família, dos parentes e aderentes, dos amigos e de quem chegasse.
Mas o tempo, inexoravelmente, vai levando cada um. Uns partem para construir novas famílias, outros para o seu destino final.
Também parti para constituir a minha família, no natural multiplicar-se que enche a nossa alma de alegria, de preocupações às vezes, mas dá, sem dúvida, um sentido de continuidade à nossa vida humana e afetiva.
Sou do Recife, hoje, também no Tribunal Regional Federal, onde, com muita consciência da responsabilidade, esforço-me por oferecer a prestação jurisdicional que o cidadão tem o direito de receber.
Sou do Recife, eterna enamorada do Capibaribe, o cão sem plumas de João Cabral de Melo Neto. Contemplo-o todos os dias da minha janela do Cais do Apolo. Ah, o Cais do Apolo, já não é mais o mesmo cantado por Mauro Mota.
“[…] Cais do Apolo,
empregados da Great-Western e do Telégrafo Inglês,
marinheiros do Arsenal,
operárias da Fábrica Pilar às seis da tarde. […],
Fantasmas de pardieiros, antigos armazéns de açúcar,
Negociantes, carregadores, caixeiros de colete”.
Mudou o Cais do Apolo, sim. Já não existem a Great-Western, nem o Telégrafo Inglês e a Fábrica não é mais “Pilar”. Mas o rio continua o mesmo. Os fantasmas dos pardieiros dividiram seu espaço com os “arranha-céus” imponentes. Mas o rio continua o mesmo! Os negociantes, carregadores e caixeiros de colete abriram espaço aos bancários, funcionários públicos e servidores da Justiça. Mas o rio continua o mesmo, a enfeitiçar todos os que por ali se afiliem. E é lá do alto, no Cais do Apolo, como na música de J. Michilis, que eu também:
“Vejo o Recife prateado.
A luz da lua que surgiu;
Há um poema aos namorados
No céu, e nas águas dos rios.
Um seresteiro e um violão
Anunciando o anoitecer
Um sino ao longe a badalar
Recife inteiro vai rezar
Ave Maria ao pé do altar.
Bumba meu boi , maracatu,
Recife dos meus carnavais
[…]
És primavera dos amores
No horizonte és arrebol
Vai madrugada serena
Traz deliroso poema
Recife”, — és para mim e serás sempre,
como hoje, “manhã de Sol”.
Discurso pronunciado por:
Margarida Cantarelli
Em 22 de novembro de 2001.
Ocasião da entrega da “Medalha José Mariano”
Câmara Municipal do Recife