Comemoração dos 159 anos de sua instituição

GABINETE PORTUGUES DE LEITURA

COMEMORAÇÃO  DOS 159 ANOS DE SUA INSTITUIÇÃO

DIA: 3 DE NOVEMBRO DE 2009

PALAVRAS DE: MARGARIDA CANTARELLI

Senhor Vice Presidente do GPL, Antonio Almeida

Senhora, Senhores,

Subo pela segunda vez, com viva emoção, os degraus desta tribuna, como se fossem de um altar. Entendo que os templos e as bibliotecas se equiparam no permanente desejo de transcendência da alma humana. Num a buscamos através da contrição, da fé; noutra do saber, da cultura.

Assim, esta Casa comemora os seus 159 anos de fundação – muito tempo num país ainda jovem. 1850 – um centro cultural, uma biblioteca numa cidade com poucas Instituições similares. Aqui, naquela época, além do conhecimento dos Conventos, destacavam-se o Seminário de Olinda e a Faculdade de Direito do Recife, esta, pólo do saber jurídico, mas que ia muito além, pois, desde 1827, tornou-se o ponto de convergência cultural de toda a Região. 1850 – um longo tempo – se pensarmos quantas instituições particulares com esse mister, sobreviveram por tantos anos servindo, como esta, à cultura de dois povos, e, ao difundi-las busca torná-las una, pois, em verdade,  na cultura, tinha razão Fernando Pessoa, a nossa “pátria é a língua portuguesa”. 

Neste templo da cultura, se não nos ajoelhamos na posição de oração, certamente elevamos o nosso espírito através da leitura absorvendo o que de mais puro se pode extrair da alma de cada povo.

Tenho a convicção de que, depois que os passos humanos param de ecoar nesta sala, à noite, estes livros que parecem tão quietos aos nossos olhos, postados lado a lado nestas estantes de madeira nobre, revelam muitas coisas. Como nos versos de Sophia de Mello  Breyner Andresen:

“ É esta a hora perfeita em que se cala

O confuso murmurar das gentes

E dentro de nós finalmente fala

A voz grave dos sonhos indolentes.

……

É esta a hora das vozes misteriosas

Que os meus desejos preferiram e chamaram.

É esta a hora das longas conversas

Das folhas com as folhas unicamente.

……..

  Sim, conversam, porque os livros têm alma, bem viva a refletir o seu conteúdo – quando bons – eternos. Eles falam sobre assuntos mis, independentemente do tempo em que foram escritos, temas tão portugueses quão brasileiros. Auscultemos com a sensibilidade do nosso espírito, o que nos dirão sobre al que está bem presente no sentimento de todos nós, que diz respeito à nossa própria identidade histórica e cultural. Falarão de amor? Falarão de saudade? Hoje não, estes assuntos embora belos e tão inseridos no coração dos portugueses e que nós tão bem deles aprendemos, poderão trazer alguma névoa de tristeza ou mágoas. Hoje estes livros, certamente, olharão através das janelas, mesmo fechadas, e buscarão seu tema no céu, nas estrelas, no mar… Sim, no mar – verão um mar imenso que se descortina à sua frente, este mar que sempre nos uniu e nunca nos separou. Contarão e cantarão feitos, vitórias, mas se alguma dor vier, é porque reside na alma do poeta, não na nossa!

Do silêncio, de lá do mezanino, numa encadernação vermelha com gravações em ouro, o eterno vate, Luís de Camões, é quem eleva por primeiro a sua voz, enaltecendo como sempre fez, com engenho e arte, os feitos portugueses, naquele virar dos séculos XV/XVI, com os tão conhecidos versos que todos nós aprendemos desde cedo:   

“As armas e os Barões assinalados,

Que, da Ocidental praia lusitana,

Por mares nunca dantes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo reino que tanto sublimaram;”

E, continua o seu cantar de louvação repetindo as palavras de Júpiter:

“Agora, vedes bem que,// cometendo

O duvidoso mar num lenho leve,//

Por vias nunca usadas,// não temendo

De  Áfrico e Noto a  força,// a mais se atreve:

Que havendo tanto já que as partes vendo

Onde o dia é comprido e onde breve,

Inclinam seu propósito e porfia

A ver o berço onde nasce o dia”.   

……

E porque, como vistes, têm passado

Na viagem tão ásperos perigos,

Tantos climas e céus exp’rimentados,

Tanto furor de ventos inimigos,

Que sejam, determino, agasalhados

Nesta costa africana como amigos,

E, tendo guarnecido a lassa frota,

Tornarão a seguir sua longa rota”.

Mas, eis que Fernando Pessoa, de outra estante, numa encadernação verde escuro, em frente ao Vate, sabendo o que de muito ainda teria por dizer sobre as viagens ao Oriente, tomou-lhe, gentilmente, a palavra e continuando o tema de tanto agrado, voltou-se ao Ocidente onde nós estamos:

Com as duas mãos – o Acto e o Destino –

Desvendamos. // No mesmo gesto, ao céu

Uma ergue o facho trêmulo e divino

E a outra afasta o véu.

Fosse a hora que haver ou que havia

A mão que ao Ocidente o véu rasgou,

Foi alma a Sciencia e corpo a Ousadia

Da mão que desvendou.

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal

A mão que ergueu o facho que luziu,

Foi Deus a alma e corpo Portugal

Da ( mão que o conduziu).

             Quando, de repente, teve interrompido o último verso, por uma voz saída de um livro azul, era o “Livro Geral dos Poemas”, de Carlos Pena Filho, poeta tão recifense mas que, para surpresa de muitos, homenageou “D. Sebastião, a caminho da África”, dizendo:

“Olhai, Senhor, por estas naus e vede

a quanto obrigam reino e cristandade;

atrás de nós já se ergue esta parede

de vento e mar e tempo e soledade

e à frente nos esperam sol e sede

e mais que sede e sol, crua saudade

que pelas noites sem limites de

freqüentar// nosso abismo impuro.// Sede

pois tão piedoso e justo quanto deve

ser um Deus para um servo e um soldado

que a proeza tamanha enfim se atreve

só porque julga ser do vosso  agrado.

Mas não deixeis que volte sem vitória:

Embora perca a vida, encontre a glória

          Fernando Pessoa retoma a palavra, pois teria outras “Mensagens”, e,  enlevado, alteia a voz, com olhar distante:

“Ó Mar anterior a nós, // teus medos

Tinham coral e praias e arvoredos,

Desvendadas a noite e a cerração.//

As tormentas passadas e o mysterio,

Abria em flor o Longe, e o Sul siderio

Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa –

Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

Em árvores onde o Longe nada tinha;

Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

E, no desembarcar, há aves, flores,

Onde era só, de longe, a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveis

Da distância imprecisa, e, // com sensíveis

Movimentos da esperança e da vontade, //

Buscar na linha fria do horizonte

A arvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da Verdade”. 

Outra voz, mas moderna, sem deixar de lado a História, assume o ar de sonhos que veio do “Horizonte”. Era uma voz feminina, aqui antes já lembrada, saída, agora, de um livro de um suave verde claro – quem nos conta? Sophya de Mello Breyner Andresen, sobre os “Navegadores”:

Esses que desenharam os mapas de surpresa

Contornado os cabos e dando nome às ilhas

E por entre brilhos espelhos e distâncias

Por entre aéreas brumas irisadas

Em extáticas manhãs solenes e paradas

No breve instante surpreenderam

O arcaico sorrir do mar recém-criado”. 

E, continua:

“Navegam sem o mapa que faziam

(Atrás deixando conluios e conversas

Intrigas surdas de bordéis e paços)

Os homens sábios tinham concluído

Que só podia haver o já sabido;

Para frente era só o inavegável

Sob o clamor de um sol inabitável

Indecifrada escrita de outros astros

No silêncio das zonas nebulosas

Trémula a bússola tateava espaços.

Depois surgiram as costas luminosas

Silêncios e palmares frescor ardente

E o brilho do visível frente a frente”.

Ressoa na sala a voz forte, como se no “Cenáculo” estivesse, da figura quase lendária de Antero de Quental:

“ Junto do mar,//  que erguia gravemente

A trágica voz rouca,//  enquanto o vento

Passava como o vôo dum pensamento //

Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,

Olhando o céu pesado e nevoento,

E interroguei cismado, esse lamento

Que saía das cousas, vagamente…

Que inquieto desejo vos tortura,

Seres elementares, força obscura?//

Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão //, onde se esconde

O Inconsciente imortal, // só me responde

Um bramido, um queixume, e nada mais…

E, inesperadamente, vem da sua “Lírica” Almeida Garret tentando descrever uma sua “Longa viagem de mar”:

“E tu, Padre Netuno, nem ao menos

Lhe soubeste co maldito tridente

Pregar uma fisgada?//

Tão a salvo o deixaste

Levar ao cabo a desvairada empresa,

Que a pouco e pouco, // de teu vasto império

Ousada os mais escuros

Foi pesquisar recantos?”

Não pode ir além, pois o heterônimo Álvaro Campos, não o deixou enjoar, já que conhecia a continuação da “Viagem”:

“Lentidão dos vapores pelo mar…

Tanto que ver, tanto que abarcar.

No eterno presente da pupila

Ilhas ao longe, costas a despontar

Na imensidão oceânica e tranqüila”.

                    Alguém da terra, deste Recife, que em vida fazia destas calçadas em pedras portuguesas, o seu caminho, entre o velho Diário de Pernambuco e o Restaurante Dom Pedro aqui ao lado, o admirável Mauro Mota, falando da “Imagem das Águas”, prosseguiu o canto:

“De longe, o adeus das velas alvas e redondas,

mãos de afogados acenando a tua vinda.

Livre das águas e das suas verdes rondas,

Diante do mar, que tanto amavas,// talvez ainda

Ressurjas. // Minha voz parte rompendo a bruma

Da oceânica amplidão, enche os búzios// e, cheia

Dela, // a brisa do mar não traz respostas alguma.

Na praia, tudo pela tua volta anseia.

Tua imagem lá vem. Chega e, na branca areia,

Junto a mim se desfaz // neste floco de espuma”. 

Novamente uma voz feminina, tão nossa conhecida e querida, salta de um livro verde, em vários tons, “Sempre poesia” reunindo todas as de Maria do Carmo Barreto Campelo de Melo:

“Não te quero forte:

Só os que não compreendem amam pelejar contigo.

Os ingênuos fizeram de ti um brinquedo,

Mas tu és grave,

Grande mar primeiro e único

Que desde as origens permaneces,

Mar imutável, saturado de algas e sargaços,

Sacro mar bíblico

Que levaste a face da terra

Coberta do limo primitivo.

Mar, meu irmão e irmão da brisa,

Recebo tua tranqüila mensagem lírica,

Sinto que tu e eu somos da mesma substância,

Quando me envolvo na transparência líquida

Das tuas mansas águas

Que um dia refletiam a primeira aurora

E o grande arco-íris da paz”.

Não é que outra voz feminina ocupa o espaço? Desta feita exsurge  das páginas amareladas pelo tempo de um livro todo bege, com um retrato de uma mulher triste na capa, é Florbela  Espanca,em seus “Poemas”  com um soneto que é muito do mesmo gosto e sempre o cito:

“Quando o sol vai caindo sobre as águas

Num nervoso delíquio d’oiro intenso,

Donde vem essa voz cheia de mágoas

Com que falas à terra, ó mar imenso?

Tu falas de festins, e cavalgadas

De cavaleiros errantes ao luar?

Falas de caravelas encantadas

Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d’epopéias? // Tens anseios

D’amarguras?// Tu tens também receios,

Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo?…

… Talvez a voz de Portugal antigo,

Chamando por Camões numa saudade!”

Mas, o poeta do azul, Carlos Pena Filho, retorna do Livro Geral, fazendo do seu canto uma homenagem a Pedro Álvares Cabral:

“O enorme céu que cobre mar e mágoas

e abriga os astros,//

sustém meu claro sonho sobre as águas,

velas e mastros.//

Um dia hei de encontrar terra ignota:

É assim que sonha.

E se nenhuma houver na minha rota,

Que Deus a ponha.

Em meio ao longo mar não faço caso

Dos dias meus,//

Pois tenho a guiar-me o vento ou o puro acaso

E o acaso é Deus.  

Longe ia a noite, quando Fernando Pessoa, complementa, com a voz já embargada de saudade:

“A alma é divina e a obra é imperfeita.

Este padrão signala ao vento e aos céus

Que,// da obra ousada, é minha a parte feita:

O por-fazer é só com Deus

E ao imenso e possível oceano

Ensinam estas Quinas, que aqui vês,

Que o mar com fim será grego ou romano:

O mar sem fim é português”.  

A luz do sol entrou pelos vitrais do teto, magnificamente colorida, inundando este espaço e anunciando o nascer de um novo dia. Os livros falantes recolheram-se à quietude de suas prateleiras esperando do leitor amigo o carinho das mãos a folheá-los e o calor dos olhos a consumi-los. E assim tem sido por gerações e gerações!

No 159º ano de sua existência, há muito a agradecer ao Gabinete Português de Leitura por ter contribuído para que essas páginas  que aqui desalinhadamente reuni estejam e continuem vivas nos livros e na alma da nossa gente, pois tudo isto é sentimento, é cultura, é História; tudo isto é Brasil; tudo isto é Portugal!

Muito grata pela atenção.


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