Comemoração dos 169 anos de sua instituição

GABINETE PORTUGUES DE LEITURA

COMEMORAÇÃO  DOS 169 ANOS DE SUA INSTITUIÇÃO

DIA: 3 DE NOVEMBRO DE 2009

PALAVRAS DE: MARGARIDA CANTARELLI

Senhor Presidente do GPL

Senhora, Senhores,

Subo pela segunda vez, com viva emoção, os degraus desta tribuna, como se fossem de um altar. Entendo que os templos e as bibliotecas se equiparam no permanente desejo de transcendência da alma humana. Num a buscamos através da contrição, da fé; noutra do saber, da cultura.

Assim, esta Casa comemora os seus 159 anos de fundação – muito tempo num país ainda jovem. 1850 – um centro cultural, uma biblioteca numa cidade com poucas Instituições similares. Aqui, além do conhecimento trancado nos Conventos, destacava-se a Faculdade de Direito do Recife, pólo do saber jurídico, mas que ia muito além, pois, desde 1827, tornou-se o ponto de convergência cultural de toda a Região. 1850 – um tempo longo – se pensarmos quantas instituições particulares com esse mister, sobreviveram por tantos anos servindo, como esta, à cultura de dois povos, e, ao difundi-las busca torná-las una, pois, em verdade, na cultura a nossa “pátria é a língua portuguesa”. 

Neste templo da cultura, se não nos ajoelhamos na posição de oração, certamente elevamos o nosso espírito através da leitura absorvendo o que de mais puro se pode extrair da alma de cada povo.

E fico pensando, o que, depois que os passos humanos param de ecoar nesta sala, dizem à noite estes livros que parecem tão quietos aos nossos olhos, postados lado a lado nestas estantes de madeira nobre. Sim, conversam, porque os livros têm alma, bem viva a refletir o seu conteúdo – quando bons – eternos. Eles falam sobre assuntos mis, independentemente do tempo em que foram escritos, temas tão portugueses quão brasileiros. Perscrutemos com a sensibilidade do nosso espírito, como numa oração, o que dizem sobre al que está bem presente no sentimento de todos nós, que diz respeito à nossa própria identidade histórica e cultural. Talvez olhem através das janelas, mesmo fechadas, e vejam um mar imenso em sua frente, este que sempre nos uniu e nunca nos separou.

De lá, do mezanino, numa encadernação vermelha com gravações em ouro, é o eterno Vate, Luís de Camões, quem eleva por primeiro a sua voz, enaltecendo como sempre fez, com engenho e arte, os feitos portugueses, naquele virar dos séculos XV/XVI:   

“As armas e os Barões assinalados,

Que, da Ocidental praia lusitana,

Por mares nunca dantes navegados,

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo reino que tanto sublimaram;” – 1 Canto I

E, continua o seu cantar de louvação repetindo as palavras de Júpiter:

“Agora, vedes bem que, cometendo

O duvidoso mar num lenho leve,

Por vias nunca usadas, não temendo

De  Áfrico e Noto a  força, a mais se atreve:

Que havendo tanto já que as partes vendo

Onde o dia é comprido e onde breve,

Inclinam seu propósito e porfia

A ver o berço onde nasce o dia”      – 27 Canto I 

……

E porque, como vistes, têm passado

Na viagem tão ásperos perigos,

Tantos climas e céus exp’rimentados,

Tanto furor de ventos inimigos,

Que sejam, determino, agasalhados

Nesta costa africana como amigos,

E, tendo guarnecido a lassa frota,

Tornarão a seguir sua longa rota. 29 Canto I

Mas, Fernando Pessoa, de outra estante, numa encadernação verde e brilhante, em frente ao Vate, sabendo o que de muito ainda teria por dizer, tomou-lhe, gentilmente, a palavra e continuou o tema de tanto agrado;

“Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagrou-te, e foste desvendando a espuma.

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até o fim do mundo,

E, viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir redonda, do azul profundo

Quem te sagrou creou-te portuguez.” (O Infante, Mar Portugues p.12)

                       Mas, de repente, teve interrompida a última estrofe, por uma voz saída de um livro azul, era o “Livro Geral dos Poemas”, de Carlos Pena Filho, poeta tão recifense mas que, para surpresa de muitos, homenageou “D. Sebastião, a caminho da África”, dizendo:

“Olhai, Senhor, por estas naus e vede

a quanto obrigam reino e cristandade;

atrás de nós já se ergue esta parede

de vento e mar e tempo e soledade

e à frente nos esperam sol e sede

e mais que sede e sol, crua saudade

que pelas noites sem limites há de

freqüentar nosso abismo impuro. Sede

pois tão piedoso e justo quanto deve

ser um Deus para um servo e um soldado

que a proeza tamanha enfim se atreve

só porque julga ser do vosso  agrado.

Mas não deixeis que volte sem vitória:

Embora perca a vida, encontre a glória. (Livro Geral, p.49)

          Fernando Pessoa retoma a palavra, pois teria outras Mensagens, e,  enlevado, alteia a voz:

“Ó Mar anterior a nós, teus medos

Tinham coral e praias e arvoredos,

Desvendadas a noite e a cerração.

As tormentas passadas e o mysterio,

Abria em flor o Longe, e o Sul siderio

Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa –

Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

Em árvores onde o Longe nada tinha;

Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

E, no desembarcar, há aves, flores,

Onde era só, de longe, a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveis

Da distância imprecisa, e, com sensíveis

Movimentos da esperança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

A arvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da Verdade”. (Horizonte – 2a.Parte Mar Português – p.12)

Eis que outra voz, mas moderna, sem deixar de lado a História, assume o ar de sonhos que veio do “Horizonte”. Era uma voz feminina, quem nos conta? Sophya de Mello Breyner Andersen, sobre os “Navegadores”:

Esses que desenharam os mapas de surpresa

Contornado os cabos e dando nome às ilhas

E por entre brilhos espelhos e distâncias

Por entre aéreas brumas irisadas

Em extáticas manhãs solenes e paradas

No breve instante surpreenderam

O arcaico sorrir do mar recém-criado (MAR – Navegadores, 1987 – p.148)

E lá veio Almeida Garret, na “Lírica” tentando descrever a sua “Longa viagem de mar”:

“E tu, Padre Netuno, nem ao menos

Lhe soubeste co maldito tridente

Pregar uma fisgada?

Tão a salvo o deixaste

Levar ao cabo a desvairada empresa,

Que a pouco e pouco, de teu vasto império

Ousada os mais escuros

Foi pesquisar recantos?” (Lírica, p.155)

Não pode ir além, pois o heterônimo Álvaro Campo, não o deixou enjoar, já que conhecia a continuação da “Viagem”:

“Lentidão dos vapores pelo mar…

Tanto que ver, tanto que abarcar.

No eterno presente da pupila

Ilhas ao longe, costas a despontar

Na imensidão oceânica e tranqüila”. (Poesia – Fernando Pessoa –Alvaro Campos, p.56)

Nova voz feminina, tão nossa conhecida, salta de um  livro em cores vivas, que reúne as poesias da admirável Maria do Carmo Barreto Campelo de Melo:

“Não te quero forte:

Só os que não compreendem amam pelejar contigo.

Os ingênuos fizeram de ti um brinquedo,

Mas tu és grave,

Grande mar primeiro e único

Que desde as origens permaneces,

Mar imutável, saturado de algas e sargaços,

Sacro mar bíblico

Que levaste a face da terra

Coberta do limo primitivo.

Mar, meu irmão e irmão da brisa,

Recebo tua tranqüila mensagem lírica,

Sinto que tu e eu somos da mesma substância,

Quando me envolvo na transparência líquida

Das tuas mansas águas

Que um dia refletiam a primeira aurora

E o grande arco-íris da paz” (O Mar, p.37).

Não é que outra voz feminina ocupa o espaço desta feita salta das páginas amareladas pelo tempo de um livro bege, com um retrato de uma mulher triste na capa, é Florbela  Espanca, numa poesia que tanto me agrada e sempre relembro:

“Quando o sol vai caindo sobre as águas

Num nervoso delíquio d’oiro intenso,

Donde vem essa voz cheia de mágoas

Com que falas à terra, ó mar imenso?

Tu falas de festins, e cavalgadas

De cavaleiros errantes ao luar?

Falas de caravelas encantadas

Que dormem em teu seio a soluçar?

Tens cantos d’epopéias? Tens anseios

D’amarguras? Tu tens também receios,

Ó mar cheio de esperança e majestade?!

Donde vem essa voz, ó mar amigo?…

… Talvez a voz de Portugal antigo,

Chamando por Camões numa saudade! (Vozes do Mar, 17/6/1916 p.78)

Mas, o poeta do azul, Carlos Pena Filho, ressurge do Livro Geral, fazendo do seu canto uma homenagem a Pedro Álvares Cabral, que é ao mesmo tempo, homenagem ao Brasil e a Portugal:

“O enorme céu que cobre mar e mágoas

e abriga os astros,

sustém meu claro sonho sobre as águas,

velas e mastros.

Um dia hei de encontrar terra ignota:

É assim que sonha.

E se nenhuma houver na minha rota,

Que Deus a ponha.

Em meio ao longo mar não faço caso

Dos dias meus,

Pois tenho a guiar-me o vento ou o puro acaso

E o acaso é Deus.  (Pedro Álvares Cabral, p.51)

E complementa Fernando Pessoa, com a voz já embargada de saudade, sentimento tão português e que aprendemos a ter:

“A alma é divina e a obra é imperfeita.

Este padrão signala ao vento e aos céus

Que, da obra ousada, é minha a parte feita:

O por-fazer é só com Deus

E ao imenso e possível oceano

Ensinam estas Quinas, que aqui vês,

Que o mar com fim será grego ou romano:

O mar sem fim é português”  (Padrão, p.13).

No 159º ano de sua existência, tem-se muito a agradecer ao Gabinete Português de Leitura por ter contribuído para que estas coisas que foram ditas estejam e continuem vivas nos livros e na alma da nossa gente, pois tudo isto é sentimento, tudo isto é Brasil, tudo isto é Portugal.

“No alto mar

A luz escorre

Lisa sobre as águas

Planície infinita

Que ninguém habita.

O sol brilha enorme

Sem que ninguém forme

Gestos na sua luz.

Livre e verde a água ondula

Graça que não modula

O sonho de ninguém.

São claro e vastos os espaços

Onde baloiça o vento

E ninguém nunca de delícia ou de tormento

Abriu nele os seus braços.


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