NATAL, 9 de maio de 2008.
COOPERAÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL.
Margarida Cantarelli
Ao agradecer o convite para participar deste painel, gostaria de dizer que para mim é uma imensa satisfação ver este tema sendo tratado com tanto interesse e consciência da sua importância por setores do Poder Judiciário. Lembro-me que comecei a me dedicar ao Direito Penal Internacional nos idos de 1973/74 e tive o meu primeiro artigo publicado sobre o tema em 1975, pela Revista da Ordem dos Advogados de Pernambuco. Naquele tempo era considerado como um assunto extravagante, utópico, quase um delírio! Agora, passados mais de 30 anos, vejo que valeu a pena acreditar e sonhar!
A cooperação judiciária ou jurídica internacional em matéria penal vem despertando interesse crescente dos Estados em razão da evidente necessidade de identificação de mecanismos que sejam compatíveis com uma sociedade que se transforma numa velocidade inimaginável e da luta contra uma criminalidade que também vem adquirindo novos matizes. Quer na forma de atuação, quer na mobilidade do criminoso, é forçoso constatar que ainda não foram alcançados (especialmente em nível nacional) meios eficazes de cooperação, capazes de superar as barreiras jurídicas que as fronteiras nacionais determinam.
Convém ressaltar que a cooperação jurídica internacional em matéria penal sempre existiu, embora esporádica, sem grande freqüência, em razão do nível das relações internacionais do passado. É reiteradamente citado o Tratado firmado entre o faraó egípcio Ramsés II e o rei dos Hititas, Hatussili III, em torno do ano de 1.280 a.C. e que cuidava, entre outras matérias, da entrega de criminosos que tivessem cometido graves violações, especialmente de natureza política, contra o soberano. Vê-se, no texto citado, uma forma embrionária do instituto da extradição.
Também não é nova a norma do Direito Internacional (inicialmente costumeira) que permitia aos Estados – por meio dos seus navios públicos ou privados – capturar os piratas no mar livre (alto mar ou fora da jurisdição de qualquer outro Estado) e a castigá-los, através dos seus próprios tribunais, sem levar em conta a nacionalidade daqueles. Regras inglesas do século XVI e obras clássicas como a de Albérico Gentilli comprovam a atuação internacional no combate à pirataria, com a utilização de normas que transcendiam as fronteiras nacionais.
O combate internacional ao tráfico de escravos, qualquer que tenha sido a sua motivação, constava de cláusulas do Tratado de Viena, de 1815; a luta contra o tráfico de mulheres, chamado de maneira mais antiga de “tráfico de brancas”, como também, o das drogas (estupefacientes), hoje “narcotráfico”, são exemplos, pela própria natureza das ações, de situações que exigiam medidas que ultrapassassem os limites da soberania de cada Estado.
A busca para a localização dos criminosos de guerra, especialmente no pós Segunda Guerra Mundial, enfatizou a importância da colaboração entre Estados para não deixar impunes os autores de tão graves ofensas a toda a humanidade.
Embora identifiquemos algumas hipóteses de incidência da lei penal de um Estado fora de suas fronteiras ou vice-versa, e até mesmo uma incipiente atuação internacional em outras, a consciência da necessidade de um Direito Penal Internacional só começa a se consolidar a partir do século XIX.
Mas, desde que surgiu a expressão Direito Penal Internacional, não têm cessado as dúvidas, as discordâncias e as perplexidades em torno da disciplina que aparecia a fim de regular um conjunto de relações necessitadas de um tratamento desencapsulado do âmbito interno dos Estados soberanos.
Ensina Jimenez de Asúa que sob a clássica denominação de Direito Penal Internacional compreendem-se as regras do direito nacional referentes aos limites de aplicação da lei penal no espaço e as normas de cooperação, auxílio e assistência que os Estados acordam entre si para assegurar a execução da justiça punitiva.
Os objetivos do Direito Penal Internacional seriam a solidariedade e a cooperação entre os órgãos preventivos e repressivos de vários Estados: no campo operativo, pela adoção de medidas comuns que tornem mais eficaz a luta contra o crime; no plano jurídico, pela fixação de princípios que possibilitem tais medidas (de solidariedade e de cooperação), além da determinação da jurisdição competente para a adequada aplicação da lei penal. De tal sorte que não fique um delito fora do alcance de um juiz, nem reste um acusado perante dois sistemas jurisdicionais, ocasionando o bis in idem. Esta foi a visão inicial da nova disciplina que, sem perdê-la, avançou gradativamente noutras áreas.
No entanto, na segunda metade do século XX, as transformações tecnológicas modificaram, profundamente, os meios de comunicação, de transportes, de armamentos, permitindo uma mobilidade nunca antes vista de pessoas, de bens, de informações. Evidencia-se um drástico encurtamento do tempo e dos espaços. É o que, com muita propriedade, José Eduardo de Faria identifica como a “transformação do eixo econômico do capitalismo, saindo da cena o eixo automotriz e entrando um novo eixo eletro-eletrônico. O que se havia convencionado chamar de sociedade industrial foi substituído por uma sociedade informacional”. O acesso à informação e seu controle são características fundamentais nos nossos dias.
Se, por um lado, tais transformações trouxeram reconhecidos benefícios à humanidade, por outro, e como decorrência, permitiram novas formas de condutas ilícitas — o que eu não chamo de novos crimes, mas de velhos crimes praticados sob novas formas — como também se alargaram as facilidades de o delinqüente fugir do local do crime, esconder bens e provas, para buscar a impunidade fora do alcance da jurisdição natural.
As fronteiras como atualmente concebidas já não impedem a prática de certos atos, como por exemplo, nos casos de remessa de divisas ilegalmente para o exterior (lavagem de dinheiro) ou nos crimes cibernéticos, que têm parte do seu iter aterritorial.
Assim, os clássicos mecanismos utilizados pelo Direito Penal Internacional para a cooperação entre Estados soberanos, como: o instituto da extradição e as cartas rogatórias vêm se mostrando insuficientes e inadequados para atender às novas formas da delinqüência internacional (ou transnacional), tanto na forma e no tempo de duração.
A Extradição está regida por tantos princípios e condições que a tornam complexa e lenta, embora tenha pacífico o seu conceito como sendo “um ato pelo qual um Estado entrega um indivíduo, acusado de fato delituoso ou já condenado como criminoso, à justiça de outro Estado, competente para julgá-lo e puni-lo”. É compreensível que a observação dos mesmos seja exigida: primeiro, pela permanência de uma certa desconfiança com relação à Justiça estrangeira requerente, ou, pelo menos, em razão do pouco conhecimento das suas Instituições e funcionamento; segundo, em respeito aos reconhecidos direitos do extraditando (devido processo legal, ampla defesa, presunção de inocência, etc.); terceiro, pela necessidade de apreciação da compatibilização com as normas internas do Estado requerido, além do imensa número de feitos que correm no Supremo Tribunal Federal, entre outras.
O instituto da Extradição encorpa diversos Princípios que agrupei em gerais e especiais. Os princípios gerais são: o da especialidade (limitação de o Estado requerente processar, julgar e punir o indivíduo exclusivamente pelo delito que fundamentou o pedido de extradição); o da identidade de normas (ou a dupla criminalidade), ou seja, exige que o fato que motivou o pedido de extradição deva configurar-se infração punível pela legislação de ambos os Estados; e o da competência, sob o qual devem ser examinadas não só a competência do Estado requerente, mas também os casos de pedidos concorrentes.
Quanto aos princípios especiais, aglutinei-os em relativos ao autor, ao delito e à pena. Os primeiros, quanto ao autor, estão fundados primeiramente na sua nacionalidade, para efeito de concessão ou não do pedido formulado pelo Estado requerente; ou, ainda, em condições particulares do autor, como nos casos de imunidade de jurisdição (Chefes de Estado e agentes diplomáticos) ou no de ex-Chefe de Estado (o mais famoso caso foi o de Augusto Pinochet).
Em relação ao delito, deparamo-nos com um dos pontos mais controvertidos do Instituto que é o da determinação dos chamados crimes de extradição que tornariam o extraditando passível da concessão da medida. A análise de aspectos dos crimes políticos quando conexos ou complexos a delitos comuns, além do grande tema da atualidade que é o terrorismo, bem demonstram os cuidados que devem cercar a sua apreciação. Há, ainda, os princípios relativos à pena, tais como o critério da penalidade mínima, da comutação em relação à natureza da pena (penas corporais, prisão perpétua e a pena de morte), além do exame da extinção da punibilidade, de modo especial, da prescrição.
Como se pode depreender, embora concisamente exposto, o nível de complexidade que detém cada caso de extradição revela as dificuldades que envolvem o atendimento ou a negação dos pedidos formulados.
Na sua formulação normativa, o instituto da Extradição tem atravessado várias fases. Nasceu através de Tratados bilaterais de cooperação e, assim, tem se mantido como a forma mais largamente utilizada, embora ainda persista a “cláusula da reciprocidade”, na ausência de acordo anterior. Num segundo momento, passou a integrar o ordenamento jurídico interno dos Estados, adotado pelas leis nacionais. Entre nós, além da referência Constitucional, está regulada no Estatuto do Estrangeiro. Numa fase mais recente, esforços estão sendo despendidos para a celebração de Tratados multilaterais. Se ainda não há um texto de âmbito para-universal, contudo tem havido sucesso no contexto regional, dentro dos processos integração. Assim foi na União Européia e vem sendo no Mercosul. A Convenção Européia de Extradição, de 1957 (Paris) e seus dois Protocolos Adicionais, de 1975 (Strasburgo) e 1978 (Strasburgo) são os melhores exemplos.
No caso do Brasil, quando somos requerentes (Extradição ativa), o pedido é examinado pelo Ministério da Justiça e enviado ao das Relações Exteriores para depois seguir para o Estado requerido. Nas situações em que figuramos como Estado requerido (Extradição passiva), após cumprir os trâmites diplomáticos e administrativos, a solicitação vai ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do art.102, I, “g” da CF. Se é certo que a apreciação dos pedidos pela mais alta Corte do País, demonstra a importância que a Constituição emprestou ao Instituto, por outro lado, assoberbam mais ainda aquela Corte, já tão sobrecarregada de processos.
Examinando a Estatística do Banco de Dados do STF, observa-se que de 1990 a abril de 2008, foram distribuídos 610 pedidos de Extradição e julgados 1212 (em razão de remanescentes). Nota-se um crescimento do número de pedidos, embora não alarmante e uma curva levemente decrescente a partir de 2006: em 1990, foram 26; em 2000, em número de 30; em 2003, foram 46; em 2005, em número de 65, voltando a decrescer, em 2006, 46; em 2007, 39 e neste ano de 2008, até o mês de abril, foram distribuídos 10, embora julgados 26. O que preocupa é ter julgado o STF em 1990, 16.449 processos; em 2001 o número tenha se elevado para 109.692 ; em 2007, 159.522 e neste ano de 2008, até o mês de abril, já tenham sido julgados 28.248 processos.
Outro dado importante é que, enquanto o Brasil atendeu a cerca de 90% dos pedidos de extradição que lhe foram dirigidos, teve deferido apenas 16% dos que formulou. Algo precisa ser analisado relativamente aos nossos encaminhamentos, talvez problemas meramente formais estejam dificultando a concessão.
As Cartas Rogatórias, mais largamente usadas — posto que, além das diversas medidas passíveis de requerimento (citação, notificação, ouvida de testemunhas, perícias, etc.), podem abranger as áreas cível, trabalhista, comercial e também penal — até a EC 45 seguiam pelo disposto na Constituição, o art.102, I, “h”, o caminho do STF para receber o exequatur. Agora, com a revogação da referida alínea “h” , pela EC 45, e a introdução alínea “i” ao art.105,I, da CF, a “homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias”, passou para o Superior Tribunal de Justiça.
Pelo Banco de Dados do STF, de 1990 até o final de 2004, foram registradas 6.401 Cartas Rogatórias (sem classificar por matéria), observando-se um significativo crescimento anual. Vê-se em 1990, registrados 136 pedidos; em 1994, o número foi de 360; em 2000, foram 500; em 2004, elevou-se para 608. Pelas estatísticas do Superior Tribunal de Justiça, em 2005, foram distribuídas 1339, julgadas 890; em 2006, distribuídas 910, julgadas 1.074; em 2007, distribuídas 732, julgadas 761. Não há informações sobre os primeiros meses de 2008.
Observando os dados tenho que o decréscimo nas Rogatórias a partir de 2006 – é bem verdade que é um curto período para se tirar conclusões, para mim, é um sinal de que este caminho não está atendendo às necessidades da cooperação dos dias atuais. Há urgência no cumprimento de rogatórias, o que não ocorre, ocasionando não lograrem êxito. É preciso modificar o seu trâmite interno no Brasil.
Temos que reconhecer que a cooperação jurídica internacional tem avançado com maior velocidade e intensidade em vários outros ramos do Direito, como, por exemplo, na fixação de normas relativas ao comércio ou às finanças internacionais. Há mecanismos mais ágeis, a partir da Organização Mundial do Comércio, do Fundo Monetário Internacional (gostemos ou não de suas regras e decisões), entre outros. Todavia, o Direito Penal vem sendo o menos aberto a esse processo de cooperação. O princípio geral da territorialidade, ainda tão arraigado, embora não mais absoluto, mantém fortes amarras ao local do crime, ao juiz natural, por exemplo. Todo o processo de desterritorialização da jurisdição penal vem sendo efetivado mais lentamente do que nos demais ramos do direito.
Não basta que se reconheça a necessidade de ampliação da cooperação jurídica internacional em matéria penal sem que os mecanismos para promovê-la sejam estabelecidos: quer convencionalmente, quer pelas leis internas dos diferentes Estados. É de se admitir que, embora de inestimável valia, não se caminharia para alcançar plenamente os níveis da cooperação pretendida, se os Estados ficassem reduzidos ao instituto da extradição ou às Cartas Rogatórias.
Como vem sendo reiteradamente dito, a mobilidade crescente das pessoas através do território de diferentes Estados, não só para negócios ou turismo, mas também, em ocasiões delitivas, acarreta uma multiplicidade de situações onde a incidência da lei penal esbarra com as fronteiras de outro Estado, protegidas pela jurisdição nacional.
No campo penal, observa-se o aumento do número de estrangeiros que não têm domicílio num país, mas que compõem relações processuais penais, quer como acusados ou como vítimas, ou mesmo como testemunhas. Essas situações acarretam constantes problemas com a competência de juízo, para a defesa ou mesmo de reinserção social em casos de condenação.
Como se refere com bastante propriedade o advogado português José Carlos Rocha, mesmo sendo um fator de progresso nas relações entre os povos, a mobilidade das pessoas por entre os diversos Estados, tem sido acompanhada de alguns efeitos indesejáveis, na medida em que dela emergiu uma delinqüência comum de caráter internacional. Aproveitando a conhecida limitação dos regimes jurídicos existentes em matéria de competência extraterritorial, elide ou, pelo menos, dificulta, a aplicação da lei penal, não raro praticando atos criminosos com assegurada impunidade.
Há, também, os casos freqüentes daqueles estrangeiros que são presos em aeroportos internacionais transportando drogas e ficam no país, sem dinheiro, sem família, sem condições de promover a sua defesa (dependendo da defensoria pública) e, quando condenados, arrastando ainda mais tempo distante do convívio familiar e da própria Pátria.
Urge que novas formas de cooperação sejam implementadas e utilizadas, voltadas para essas pessoas.
Tais medidas, seguindo a mesma saga trilhada pelo Instituto da Extradição, têm sido introduzidas não só através de tratados bilaterais, como também por leis internas, ou ainda, promovidas por Organizações internacionais, tais como: a Organização das Nações Unidas, a União Européia, o Conselho da Europa, a Organização dos Estados Americanos, além dos trabalhos e estudos desenvolvidos em projetos pelas Comissões de Direito Internacional ou por Associações Científicas (como exemplo a AIDP).
Esses novos mecanismos visam à execução de sentenças penais estrangeiras, transmissão de processos penais, transferência de pessoas condenadas para cumprimento de penas e medidas de segurança, a vigilância de pessoas em liberdade condicional, além do auxílio mútuo judiciário, como notificações de atos processuais, recepção e produção de provas, traslado de pessoas para oitiva como testemunha, entrega de documentos, medidas acautelatórias de bens, entre muitas outras.
Um exemplo importante a ser referido nessa área é a Loi Fédérale sur l’entraide judiciaire en matiére pénale, de 20 de março de 1981, da Suíça, na qual aparecem reguladas as diferentes formas de cooperação, observando um conjunto de princípios gerais e comuns. Essa legislação suíça tem servido de modelo para diversos Estados.
O Código Penal italiano dedicou alguns artigos do Livro I, Titulo I (do artigo 8o ao 13º) e mais detidamente no Código de Processo Penal, para regular as relações jurisdicionais com autoridades estrangeiras, tratando da extradição, de cartas rogatórias, de execução de sentenças penais estrangeiras, da execução no estrangeiro de sentenças penais italianas e outras medidas de cooperação em matéria penal.
Na Grã-Bretanha, o Criminal Justice (International Cooperation) Act 1990 regula, no Capítulo V, algumas medidas de cooperação internacional.
Em Portugal, o Código de Processo Penal, no Livro V, trata das Relações com Autoridades Estrangeiras, no art.229 (prevalência dos acordos e convenções internacionais); art.230 (Rogatórias ao estrangeiro); art.231 (Recepção e cumprimento de rogatórias); art. 232 (recusa do cumprimento de rogatória) e art.233, que remete a extradição para lei especial.
Convém, ainda, destacar a atual Lei portuguesa n.º 144/99, de 31 de agosto, sobre Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, que entrou em vigor em 1o de outubro do mesmo ano e revogou o Decreto-Lei 43/91. É um excelente exemplo de legislação interna sobre a matéria.
Na Europa, sob os auspícios do Conselho da Europa, um expressivo número de temas relativos à cooperação penal tem sido objeto de Convenções multilaterais. Além da referente à Extradição e seus Protocolos adicionais já referidos, convém citar: a Convenção Européia para Assistência Mútua em matéria criminal (Strasburgo, 20 de abril de 1959) e seu Protocolo Adicional (17 de março de 1978); a Convenção Européia para a Vigilância de Pessoas Condenadas ou Libertadas Condicionalmente; a Convenção sobre o valor internacional das Sentenças Penais; a Convenção Internacional para a Transmissão de Processos Penais; a Convenção para a Transferência de pessoas condenadas; a Convenção para compensação às vítimas de crimes violentos; Convenção para o controle de aquisição e posse de armas de fogo por indivíduos; Convenção sobre lavagem, busca e confisco de fruto de crimes; Convenção para a punição de crimes de trânsito em rodovias, entre outras.
O Tratado de Nice fez alterações na redação de alguns incisos do Título VI do Tratado de Amsterdã, que dispõe nos artigos 29 (antigo artigo K.1., do Tratado de Maastricht) e seguintes sobre a cooperação policial e judiciária em matéria penal. Esse Título havia sido inteiramente reformulado pelo Tratado de Amsterdã, em relação às normas comunitárias anteriores.
O art.31 (antigo K.3), especificamente volta-se para a cooperação penal:
“A acção em comum no domínio da cooperação judiciária em matéria penal terá por objectivo nomeadamente:
- Facilitar e acelerar a cooperação entre os ministérios e as autoridades judiciárias ou outras equivalentes dos Estados-membros, inclusive, quando tal se revele adequado, por intermédio da Eurojust, no que respeita à tramitação dos processos e à execução das decisões;
- Facilitar a extradição entre os Estados-membros;
- Assegurar a compatibilidade das normas aplicáveis nos Estados-membros, na medida do necessário para melhorar a referida cooperação;
- Prevenir os conflitos de jurisdição entre Estados-membros;
- Adoptar gradualmente medidas que prevejam regras mínimas quanto aos elementos constitutivos das infracções penais e às sanções aplicáveis nos domínios da criminalidade organizada, do terrorismo e do tráfico ilícito de drogas”.
2. O Conselho promoverá a cooperação através da Eurojust:
- Permitindo à Eurojust facilitar a coordenação adequada entre as autoridades nacionais dos Estados-membros competentes para a investigação e o exercício da acção penal;
- Favorecendo o contributo da Eurojust para as investigações relativas aos processos referentes a formas graves de criminalidade transfronteiriça, especialmente quando se trate de criminalidade organizada, tendo em conta nomeadamente as análises da Europol;
- Promovendo a estreita cooperação entre a Eurojust e a Rede Judiciária Européia, designadamente a fim de facilitar a execução das cartas rogatórias e dos pedidos de extradição.
Art. 32: O Conselho definirá as condições e limites dentro dos quais as autoridades competentes a que se referem os artigos 30 e 31, podem intervir no território de outro Estado-membro em articulação e em acordo com as autoridades desse Estado.
Art. 33 O presente Título não prejudica o exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados-membros em matéria de manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna”.
Os quatro Estados que compõem o Mercosul, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, assinaram, em 25 de junho de 1996, em Buenos Aires, o Protocolo de Assistência Mútua em Assuntos Penais, e convieram o seguinte, conforme o seu Preâmbulo:
“Considerando que o Tratado de Assunção implica no compromisso dos Estados-Partes de harmonizar suas legislações em função dos objetivos comuns ali estabelecidos;
Conscientes de que esses objetivos devem ser fortalecidos com normas comuns que ensejem segurança jurídica no território dos Estados-Partes,
Convencidos de que a intensificação da cooperação jurídica em matéria penal contribuirá para aprofundar os interesses recíprocos dos Estados Partes no processo de integração;
Enfatizando a importância de que se reveste para o processo de integração a adoção de instrumentos que contribuam de maneira eficaz para alcançar os objetivos do Tratado de Assunção;
Reconhecendo que muitas atividades delituosas representam uma grave ameaça e se manifestam através das modalidades criminais transnacionais nas quais freqüentemente as provas se situam em diferentes Estados;
Resolveram concluir um Protocolo de Assistência Jurídica Mútua”
O Protocolo é composto por quatro capítulos, com trinta e um artigos. Não se trata de um documento ambicioso, poder-se-ia até considerá-lo como bidimensional, pelo seu caráter interestatal onde a preocupação com os direitos humanos é discreta, não aparecendo tão explícita como na preconizada trilateralidade.
No art. 1º, do capítulo relativo às disposições gerais, há dois pontos que deixam claro o seu caráter mais conservador. O primeiro, quando exclui os particulares de utilizar os seus mecanismos; o segundo, praticamente eliminando o princípio da dupla criminalidade.
“1. […]
2. As disposições do presente Protocolo não conferem direitos aos particulares para a obtenção, supressão ou exclusão de provas, ou para se oporem ao cumprimento de uma solicitação de assistência.
3. […]
4. A assistência será prestada mesmo quando as condutas não constituam delitos no Estado requerido, sem prejuízo do previsto nos artigos 22 e 23”.
Quanto à limitada preocupação com os direitos humanos, identificamos alguns dispositivos, além dos que tradicionalmente aparecem nos tratados de extradição, que receberam um novo enfoque. Assim, a alínea “a” do art. 5o, cuida de uma proteção aos indivíduos acusados de delitos puramente militares; a alínea “b”, dos autores de crimes políticos puros ou conexos. A inclusão dos crimes políticos conexos sem a excludente da prevalência do delito mais grave, é uma novidade no direito brasileiro, estando em choque com o art. 77, § 1º, da Lei 6.815/80.
O elenco de medidas incluídas no Protocolo, no seu art.2o, é extenso, compreendendo a assistência:
- notificação de atos processuais;
- recepção e produção de provas, tais como testemunhos e declarações, realização de perícias e exames de pessoas, bens e lugares;
- localização ou identificação de pessoas;
- notificação de testemunhas ou peritos para o comparecimento voluntário a fim de prestar testemunho no Estado requerente;
- traslado de pessoas sujeitas a um processo penal para comparecimento como testemunhas no Estado requerente ou com outros propósitos expressamente indicados na solicitação, conforme o presente Protocolo;
- cumprimento de outras solicitações a respeito de bens, como por exemplo o seqüestro;
- entrega de documentos e outros elementos de prova;
- apreensão, transferência de bens confiscados e outras medidas de natureza similar;
- retenção de bens para efeitos de cumprimento de sentenças judiciais; e
- qualquer outra forma de assistência em conformidade com os fins destes Protocolo que não seja incompatível com as leis do Estado requerido.
A criação do sistema de autoridades centrais encarregadas de receber e transmitir os pedidos, é da máxima importância, um avanço no sentido da rapidez no atendimento e cumprimento das medidas. Deve ser admitido, valorizado e apoiado. É preciso difundir a cultura da cooperação que é desconhecida, muitas vezes, até dos próprios magistrados naturalmente mais voltados a outras áreas do Direito.
Com relação ao Brasil, temos alguns Acordos bilaterais vigentes como, por exemplo, com Portugal, Colômbia, Uruguai, Estados Unidos, Itália e França; outros em tramitação no Congresso Nacional, alguns já negociados aguardando o trâmite necessário, além do amplo espaço a negociar.
O Acordo de Cooperação com a França mantém, no art.2o, o princípio da dupla criminalidade quando estabelece: “A cooperação poderá ser recusada: a) se o pedido referir-se a infração que não seja punível, tanto pela legislação do Estado requerente, como pela do Estado requerido”.
No vigente Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América, importante notar, que a cláusula relativa à dupla criminalidade desaparece por completo, na forma do art. I, 3 – “a assistência será prestada ainda que o fato sujeito a investigação, inquérito ou ação penal não seja punível na legislação de ambos os Estados”. Tem por alcance prestar assistência mútua em matéria de investigação, inquérito, ação penal e prevenção de crimes e processos relacionados a delitos.
A assistência incluirá: tomada de depoimentos ou declarações de pessoas; fornecimento de documentos, registros e bens; localização ou identificação de pessoas ou bens; entrega de documentos; transferência de pessoas sob custódia para prestar depoimento; execução de pedidos de busca e apreensão.
As Partes (Brasil e EUA) reconhecem especial importância em combater graves atividades criminais, inclusive lavagem de dinheiro e tráfico ilícito de armas de fogo, munições e explosivos, sem limitar o alcance da assistência prevista no artigo do Acordo.
Tive a excelente oportunidade de participar ao lado do Dr. Márcio Garcia, do grupo brasileiro para negociação de um Tratado de Cooperação sobre Auxílio Jurídico Mútuo em Matéria Penal, entre México e Brasil (MLAT – Mutual Legal Assistance Treaty), com 34 artigos, contendo matéria: art. 1°: obrigação de conceder Auxílio Jurídico; art 2°: Autoridade Centrais; art.3°: alcance do auxílio jurídico; art.4° Limitações no alcance do auxílio; art.5°: medidas cautelares; art.6°: forma e conteúdo do pedido; art.7°: idiomas; art.8°: denegação ou adiamento de auxílio jurídico; art.9°: validade dos documentos; art.10: confidencialidade e limitações ao emprego da informação; art.11: Execução dos pedidos de auxílio; art.12: participação de representantes da parte requerente na execução do pedido de auxílio; art.13: notificação e entrega de documentos; art.14: imunidades, direitos e incapacidades; art.15: obtenção de provas na parte requerida; art.16: localização e identificação de pessoas e objetos; art.17: comparecimento de pessoas na parte requerente; art.18: traslado provisório de pessoas detidas; art.19: proteção de pessoas intimadas ou trasladada à parte requerente; art.20: audiência por videoconferência; art. 21: casos especiais de auxílio jurídico; art.22: transmissão espontânea de meios de provas e informações; art.23: medidas sobre ativos ou bens; art.24: perdimento de ativos ou bens; art.25: devolução de ativos ou bens; art.26: devolução de recursos públicos apropriados indevidamente e indisponibilizados (confiscados/ apreendidos/ perdidos/ objeto de perdimento); art. 27: pedidos para divisão de ativos ou bens indisponibilizados; art.28: pagamento de ativos ou bens divididos; art.29: imposição de condições; art. 30: mecanismos para facilitar a cooperação jurídica em matéria penal; art.31: despesas; art.32: outros acordos ou instrumentos jurídicos; art.33: consultas e soluções de controvérsias; art.34 – disposições finais: modificações, vigência, denúncia, extinção, local, data, número de exemplares. Assinaturas.
Encontramos ainda, normas relativas à cooperação penal internacional em Tratados que versam sobre assuntos diversos, mas que mantêm estreita correlação com a cooperação, como a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, de Viena, de 1991, e na Convenção sobre a prevenção e punição de crimes contra pessoas que gozam de proteção internacional, de Nova York, 1973, ambas vigentes no Brasil.
Aparecem, igualmente, em leis internas, não específicas, mas que dedicam algumas normas sobre a matéria, como: a Lei 9.605/98, que dispõe sobre sanções relativas a atividades lesivas ao meio ambiente (a Lei de crimes ambientais – artigos 77 e 78) e a Lei 9.613/98 sobre lavagem de dinheiro, ocultação de bens e valores, onde há regras estabelecidas no art.8o.
Recentemente, neste Estado do Rio Grande do Norte, graças a uma intensa cooperação em matéria penal, foi possível desbaratar um grupo composto por estrangeiros e brasileiros que atuava na atividade criminosa internacional de lavagem de dinheiro – a chamada Operação Paraíso. As investigações feitas em vários países, a atuação conjunta de órgãos policiais nacionais e estrangeiros, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal permitiram a propositura da ação penal, distribuída para Vara cujo titular o juiz federal Mário Jambo, aqui presente, e vem conduzindo com competência, equilíbrio e rapidez. Solicitei ao Dr. Jambo que aqui estivesse para atender a eventuais perguntas sobre este caso concreto.
Merece destaque uma das formas de cooperação que vem sendo muito utilizada na Europa, que surgiu no Brasil com uma aparência de pressão externa para resolver uma situação concreta, em vez de ser mais uma modalidade na cooperação penal. Trata-se da questão da transferência de presos. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, o Brasil tem Tratados bilaterais com o Canadá (foi o primeiro), Argentina, Chile, Bolívia, Espanha, Paraguai e Reino Unido. Embora sejam textos claros, há algumas questões que merecem reflexão, como a necessidade ou não da homologação da sentença estrangeira; a possibilidade de modificação do regime prisional, a decisão quanto aos incidentes da execução, entre outros problemas.
Há de se levar em conta a importância dessa possibilidade de transferência de presos. A Justiça Federal está às voltas com situações delicadas, onde se percebe que a pena aplicada não está recuperando ou reinserindo o condenado na sociedade, mas, ao contrário, agrava ainda mais a situação do mesmo por sua inadaptação ao país (idioma, costumes, etc.), distância da família, falta de recursos financeiros, muitas vezes criando focos de tensões nos estabelecimentos prisionais já tão cheios de dificuldades.
Falta-nos uma legislação interna, como as vigentes em outros países, dentre as quais invoco a já mencionada lei portuguesa 144/99, de 31 de agosto, que, inclusive aperfeiçoou o anterior Decreto-Lei n. 43/91, este foi um paradigma para o estudo da cooperação penal internacional em diversas dissertações e teses no Brasil.
A professora. Ada Grinover, conforme já mencionado, aborda importantíssimo aspecto da cooperação internacional penal, que é a sua correlação com os direitos humanos fundamentais. Diz ela:
“Dois valores relevantes, de certo modo antagônicos, ou pelo menos dialeticamente opostos, têm emergido recentemente em sede de cooperação internacional em matéria penal: de um lado, a necessidade de intensificar a referida cooperação na luta contra o crime; de outro, a consciência cada vez mais profunda de que os direitos fundamentais devem colocar-se como termo de referência nessa matéria e, consequentemente, como limite à cooperação internacional em matéria penal”.
Essa aguda colocação é um dos diferenciais do Direito Internacional da comunidade de Estados, para o Direito Internacional da sociedade de Estados. Nesta, os tratados, com os de extradição estavam voltados para os Estados signatários, figurando os indivíduos apenas como sujeitos passivos, formando o que a professora Grinover chamou de plano bidimensional. No Direito Internacional da comunidade de Estados, “ passa-se ao esforço de construção da cooperação internacional numa dimensão trilateral, em que o indivíduo é sujeito de direitos, tutelado pelas normas internacionais e pelas garantias constitucionais e legais do seu próprio país”·.
Se por um lado, nos defrontamos com a luta contra a criminalidade e a impunidade, inclusive, dos grandes criminosos que violam os direitos humanos fundamentais nas mais diversas partes do mundo, não se pode, por outro, deixar de subordinar a cooperação penal às garantias aos direitos do próprio acusado, tais como: direito de não ser submetido à tortura, a execuções e seqüestro arbitrário, gozar do direito à ampla defesa, etc.
Não se deve afastar a cooperação penal internacional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos (Convenção Européia de Direitos Humanos, Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional dos Direitos Políticos e Civis, etc.), como também as legislações internas devem ter presentes tais princípios.
E mais uma vez trago como exemplo a legislação de Portugal (assim era no Decreto Lei 43/91 e continua expresso na Lei 144/99) que ao cuidar de fixar os princípios gerais concessivos e negativos das medidas, estabelece os pressupostos da trilateralidade da cooperação, apresentando um elenco de observâncias, como: a presença do acusado durante o processo, evitando que corresse à revelia; a execução da sentença em Portugal fosse justificada pelo interesse de uma melhor reinserção social do condenado; que haja consentimento do acusado; que o condenado seja português, apátrida ou estrangeiro habitualmente residente em Portugal; que o Estado estrangeiro oferecesse a garantia de que cumprida a pena considerará extinta a punibilidade, entre outras determinações.
O balanço hoje é positivo no sentido de que vários países europeus e não europeus adeririam à Convenção européia sobre transferência de pessoas condenadas ou celebraram tratados bilaterais com essa finalidade.
Na mesma linha da execução de sentença condenatória, abre-se, também, outra forma de cooperação que é a vigilância de pessoas condenadas ou libertadas condicionalmente que residam habitualmente no território de outro Estado. Trata-se de aspecto da executoriedade da sentença especificamente relativa à suspensão condicional da pena e ao livramento condicional.
É de se ressaltarem mais alguns pontos relevantes para a cooperação penal internacional, em razão da censura ou supressão de algumas práticas e que podem ser considerados como uma evolução. A primeira observação diz respeito ao repúdio a qualquer método que implique no uso da força ou da “justiça com as próprias mãos”, para a busca e apreensão de supostos criminosos, pelas autoridades de um Estado em território de outro. São os casos de abdução (forceable abduction) – male captus, bene retentus.
Considera-se, também, entre as formas reprováveis, a utilização da expulsão sumária, em vez de instaurar o processo de extradição – desguised extradition.
Até a década de sessenta, essas práticas eram mais utilizadas sob o argumento de que não importava ao Estado requerente a maneira como o acusado era apresentado perante os Tribunais do Estado Requerido: male captus, bene iudicatus. O direito internacional tem procurado dar prevalência ao princípio: ex iniuria ius non oritur.
Mas, ainda hoje, Estados da Europa Ocidental, os Estados Unidos da América e a Austrália admitem o male captus bene retentus. O Japão usa com freqüência a desguised extradition.
Tais práticas são atentatórias tanto aos direitos do indivíduo, como à soberania do Estado que venha a ter o seu território violado. Os próprios Tribunais deveriam reagir contra essas práticas fazendo prevalecer o princípio ex iniuria ius non oritur.
Ainda haveria muitos outros aspectos a examinar, a matéria é longa e desafiadora. Temos a consciência do muito que ainda há por fazer em nosso país devendo, cada um de nós, recolher as suas experiências e reflexões, e procurar contribuir para que avancemos na cooperação penal internacional, lutando contra a criminalidade, nova ou antiga, mas, sem perder o respeito aos direitos humanos fundamentais.