Direito á paz

24 de outubro de 2001

Hoje, 24 de outubro de 2001 – exatamente há 56 anos – 24 de outubro de 1945, entrava em vigor a CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, que tem por preâmbulo, uma verdadeira oração à paz: 

“NÓS OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS,

RESOLVIDOS

A preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço das nossas vidas trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como  das Nações grandes e pequenas, e

A estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e 

A promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla

E PARA TAIS FINS

Praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum,

A empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos.

Art. 1 º Os propósitos das Nações Unidas são:

  1. Manter a paz e a segurança internacionais[…]
  2. Desenvolver relações amistosas entre as nações […]
  3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico […]”

                            Paz,  Paz,  Paz – esta é a palavra que perpassa todo o texto do Tratado que criou a Organização das Nações Unidas, conhecido como a Carta de São Francisco, adotando o nome da cidade onde foi assinada, em   26  de junho de 1945, por Delegados de 50 Estados soberanos presentes à solenidade de conclusão dos trabalhos de  criação da ONU – Organização das Nações Unidas. 

Ainda no curso da Guerra, o Presidente dos Estados Unidos, F.D. Roosevelt e o 1 º Ministro inglês, Winston Churchill, encontraram-se a bordo de um navio no Atlântico Norte e assinaram, em 14 de agosto de 1941, um documento de conteúdo programático sobre a reorganização da sociedade internacional, após o término daquele grande conflito. Esse texto  passou à  História como a “Carta do Atlântico”. 

Já em 1 º de janeiro de 1942 foi constituída uma aliança,  em Washington, integrada pelos países que lutavam contra o Eixo, tendo o documento sido denominado “Declaração das Nações Unidas”. Mas, foi na Conferência de Moscou, em 1º de novembro de 1943, onde, pela primeira vez, é posta a necessidade de se estabelecer o mais depressa possível  “uma organização internacional geral, para a manutenção da paz e da segurança internacionais”. Vieram, em seguida, as Conferências de Dumbarton Oaks (agosto/setembro de 1944), Yalta (3 a 11 de fevereiro de 1945), onde os acordos iam ser selados e os pontos para a constituição da organização acordados, até chegar a São Francisco (25/abril a 26/junho de 1945).

Muitos e acirrados foram os debates que se desenvolveram até aquela noite de 26 de junho, quando a Delegação Chinesa subiu ao palco do Teatro da Ópera de São Francisco, ornado  com sua grande cortina de veludo (uns dizem vermelha, outros, azul), mas todos confirmam que havia uma mesa redonda  e  quatro colunas douradas representando as quatro liberdades. A Chinesa veio a ser a primeira Delegação  a assinar o texto do Tratado  numa reverência por ter sido o primeiro país atacado quando da invasão da Mandchúria pelos japoneses.

Resolvi procurar nos meus velhos livros algumas referências à expectativa da época sobre a organização nascente. Reli de Herbert Hoover, que foi o 31 º Presidente dos Estados Unidos da América, no período de 1929/33, e publicado em abril de 1945, quando se instalava a Conferência, um opúsculo sobre: As bases de uma paz duradoura. Dizia o ex-Presidente: 

“A tarefa da Conferência de São Francisco é transformar os propósitos formulados em Dumbarton Oaks numa Carta mundial para a manutenção da paz.

O trabalho desta Conferência pode determinar o destino, a sorte da humanidade para o século que vem.

Vamos a essa Conferência sem espírito egoísta, não reivindicamos benefícios materiais; mas isto não minimiza nosso interesse e nossos direitos no estabelecimento da paz. Temos, na verdade, um profundo e fundamental interesse em assegurar o único benefício que pode resultar para nós – uma paz justa e duradoura. Se a Conferência elaborar uma Carta que ofereça uma razoável esperança de tal paz nós devemos dar-lhe todo o apoio, ambos material e espiritual.

[…] a falência neste momento em manter segura a paz do mundo pode abrir uma larga porta para outra guerra mundial. Agora é tempo de encarar o fato de que a terceira guerra mundial fará a humanidade retroceder  ao barbarismo e à idade da pedra.

É tempo para cooperação e não para controvérsias[…]”.

Essa missão precípua – de manter a paz e a segurança internacionais, coube ao Conselho de Segurança. Inicialmente composto por onze, posteriormente aumentado para quinze membros, dos quais dez são eleitos pela Assembléia Geral para mandatos certos e cinco têm assento permanente e direito de veto. São eles: USA, França, Reino Unido, China e Rússia. Creio que aí reside um dos grandes obstáculos ao desempenho da ONU nas graves questões de natureza política, já que se exige  a concordância dos cinco membros permanentes, ou, pelo menos, que nenhum seja contrário, o que é muito difícil de ocorrer pela geo-política mundial, para a adoção de determinadas medidas pelo Conselho.

O esforço das Nações Unidas para a preservação da paz, nos termos da Carta, pode implicar três tipos diferentes de ação: a preventiva – tentativa de eliminação da causa do conflito; a solução pacífica – tentativa de resolver por meios pacíficos os dissídios que não puderam ser evitados e que constituam um perigo para a paz mundial e a coação – pela utilização de medidas coercitivas, no caso de ameaça imediata à paz.

Mas, cinqüenta e seis  anos  são passados desde então, entre dificuldades, acertos e desacertos,  as Nações Unidas têm  recebido críticas por suas falhas, aplausos por suas ações humanitárias. Se não conseguiu os objetivos no campo político, não sendo suficientemente forte para impedir as muitas violações da paz e da segurança internacionais, que ocorreram e estão ocorrendo neste momento, contudo, no campo do desenvolvimento econômico, dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário, da elaboração de projetos e promoção de conferências para celebração de tratados internacionais sobre as mais diferentes matérias, deixam um saldo apreciável.  

                             Este saldo vale para si e para todos os organismos especializados que compõem o Sistema ou a Família das Nações Unidas, como a OIT, FAO, OMS, UNESCO, UNICEF, UPU, UNU, OMU, ACNUR, Banco Mundial, etc., etc., e alguns menos estimados pela opinião pública, como o FMI (em determinados momentos) e suas agências. Se a ONU tem feito  menos do que dela se esperava naquela já distante noite de 26 de junho de 1945, mas os seus 56 anos de existência – dessa madura senhora – dão-lhe  reconhecimento ao seu esforço, como se constata  com a concessão, neste ano de 2001, do Prêmio Nobel da Paz, extensivo ao seu Secretário Geral, o sr. Kofi Annam.

Embora não pudesse deixar de fazer estas considerações iniciais, em razão da data hoje celebrada e em atenção à Instituição anfitriã, o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, creio que agora deva voltar-me para o tema que aflige a todos nós, mais agudamente depois daquele fatídico 11 de setembro de 2001.

Realmente não se pode falar sobre o Direito à Paz, sem  antagonicamente referir-se  à própria Guerra.

A guerra, como conflito armado e organizado, é uma prática antiga e constante na vida dos povos.  Das quatro bestas do Apocalipse: guerra, morte, peste e fome, as três últimas, embora não eliminadas, mas a humanidade vem evoluindo no sentido de minimizá-las. Reconhecidamente tem se elevado em índices expressivos a expectativa de vida em muitos países; igualmente, os medicamentos vêm minorando  as enfermidades, permitindo a cura de moléstias antes letais, como também a produção de alimentos pode diminuir e até erradicar a fome do mundo, se entre as nações a solidariedade prevalecer sobre o egoísmo.  Mas, das quatro bestas, a guerra, ao contrário, continua, apesar de todos os esforços para contê-la, cada vez mais cruel.

Na obra clássica “Sobre a Guerra” (Vom Kriege), de   Karl von Clausewitz,  escrita em 1831 e publicada após a sua morte, o autor via a guerra como um instrumento racional da política nacional. As três palavras “racional”, “instrumento” e “nacional” são os conceitos chaves do seu paradigma. Em seu prisma, a decisão de fazer a guerra ‘deve’ ser racional, no sentido  de  basear-se na estimativa de suas perdas e ganhos. A guerra ‘deve’ ser instrumental no sentido de que se destina a um determinado objetivo a alcançar, nunca por si própria , e na sua estratégia ou táticas,  buscar um fim, nomeadamente a vitória. E, ainda, a guerra ‘deve’ ser nacional, no sentido de que seus objetivos favoreçam os interesses nacionais e os esforços da nação sejam mobilizados a serviço dos objetivos militares. Embora a guerra tenha mudado desde o já remoto início do século XIX, especialmente no âmbito espacial de sua atuação, vale a  definição de Clauzewitz, numa forma muito objetiva: “a guerra é um ato de violência promovido para compelir nosso opositor a fazer a nossa vontade”.

O Direito Internacional, costumava ser dividido pelos autores  mais antigos em Direito da Paz e Direito da Guerra. Até porque o Direito Internacional clássico se voltava para a sociedade de Estados e a guerra se operava entre Estados soberanos. O jus belli et pacis – o Direito de fazer a guerra e a paz era prerrogativa do Estado soberano. O Estado vassalo não poderia promovê-la por si, mas aderia à guerra do suserano. 

Voltei aos meus velhos livros e no clássico Traité de  Droit International Public, de Paul Fauchille, ed. Paris, 1921, há três volumes dedicados à PAIX – Paz, o 4º volume, à Guerre et Neutralité. Interessante observar que naquela época a guerra era sobretudo terrestre e marítima, e das 1095 páginas que compõem o livro, apenas seis (06) são dedicadas à guerra aérea. Como os tempos mudaram!

                              Hoje há duas ciências voltadas para  o estudo da Guerra e da Paz: a Polemologia (ciência da Guerra) – polemos, palavra grega que significa guerra  e a Irenologia (ciência da paz), vem da mitologia grega Irene (Eirene), deusa da paz, filha de Zeus (deus supremo dos gregos)  e Themis (deusa da justiça). Pela sabedoria grega que a mitologia expressa, portanto, A PAZ É FILHA DA JUSTIÇA!

A Polemologia sempre foi objeto de atenções e estudos. Se no passado se falava na arte da guerra, hoje, mais que nunca ela é ciência, tecnologia, estratégia militar. O desenvolvimento armamentístico exige pesquisa científica, experimentos, movendo uma biolionária indústria bélica.  Mas a polemologia, enquanto parte da ciência política, volta-se ao estudo das causas da guerra, dos fatores políticos, sociais e econômicos que desencadeiam os  conflitos armados.

O Direito, que não dispunha no passado de mecanismos para eliminar de forma efetiva os conflitos (a bem da verdade, nem no presente,  embora se reconheça as três formas previstas  na Carta das  Nações Unidas), voltou-se à  regulamentação da guerra,  como meio de diminuir os seus efeitos maléficos. Isto ocorreu desde sempre através dos costumes da guerra  (normas costumeiras formadas ao longo do tempo pela prática reiterada),  depois consolidados em várias Convenções Internacionais formando as chamadas “Leis da Guerra”, hoje integrantes do novo ramo do Direito Internacional – o Direito Humanitário. 

                                   Na Antigüidade, em várias partes do mundo, como por exemplo, no Código de Manu, na Índia, já era proibido o uso de armas pérfidas, flechas envenenadas, destruição de campos cultivados, ataques a mulheres e crianças. Por influência da Igreja, na Idade Média, vários institutos foram criados, como a Paz de Deus e  a Trégua de Deus, que era a proibição de combate em determinados locais,  dias da semana ou durante a celebração de festas religiosas. Alguns Concílios chegaram a proibir, sob pena de excomunhão, a venda de armas e barcos para a guerra, e o desrespeito era considerado – contra bannum (contra o proibido); daí a palavra contrabando. 

No dizer de Celso de Albuquerque Melo, “a maior contribuição da Igreja talvez tenha sido o conceito de guerra justa, desenvolvido por Santo Ambrósio, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino; este, dedica à guerra uma parte da “Summa Theologica: Secunda Secundae – De Bello”.            

Alberico Gentili emancipa o jus belli da vinculação teológica, vendo  o fundamento do direito das gentes não  na lei divina, mas na lei natural. Isto não o afastou dos usos de benignidade aconselhados pelos teólogos, como:  o respeito à vida dos prisioneiros e das crianças, à  honra das mulheres, à segurança dos agricultores, mercantes, forasteiros e demais pessoas inofensivas.  É o que nos mostra o jovem bacharel Barbosa Lima Sobrinho, num opúsculo, talvez a menos conhecida das suas obras, vez que publicada em 1922, sob o título, “A ilusão do direito de guerra”.

Das muitas Convenções Internacionais sobre o Direito da Guerra, ou sobre a humanização da guerra, convém lembrar, entre tantas, inclusive anteriores, a 1ª Conferência da Haia de 1899, quando foi criada a Corte Permanente de Arbitragem,  assinadas várias Convenções sobre leis e costumes de guerra terrestre, Convenção para adaptação da guerra marítima à Convenção de Genebra de 1864 ( ocasião em que foi criada a Cruz Vermelha Internacional), além de outras proibindo o uso de gases asfixiantes, lançamento de explosivos e de projéteis que se espalhem ao atingir o corpo humano. A 2ª Conferência da Haia realizou-se em 1907, inclusive com representação latino-americana, estando Ruy Barbosa na Delegação brasileira. Esta Conferência teve um âmbito mais expressivo na regulamentação das leis de guerra. Da época, vale lembrar, ainda, a Conferência Naval de Londres, de 1909, que tratou da guerra marítima. 

                               Com o advento da 1ª Guerra Mundial, o curso da codificação das leis de guerra foi interrompido, e  novos esforços só vieram a ser empreendidos, todavia sem grande êxito, sob os auspícios da Liga das Nações, organização internacional de caráter geral  criada com o término daquele conflito.

                               Depois da 2ª Guerra Mundial, as Convenções de Genebra, de 1949 e tantas outras foram firmadas, já sob a égide das Nações Unidas, quer direta ou indiretamente ligadas à guerra, às suas causas e aos meios de minorar seus efeitos devastadores.

Mas os estudos sistemáticos sobre a paz são bem mais recentes. A irenologia, ciência da paz e os irenistas confundem-se, muitas vezes,  com o pacifismo e os pacifistas, levados mais pelos contextos políticos – o tempo da guerra fria, dos conflitos leste-oeste, norte-sul, sem a interdisciplinariedade necessária a uma mais profunda compreensão dos problemas que quebram a paz ou que impedem que ela seja alcançada e mantida.

                           A História nos mostra na antigüidade (e para sermos verdadeiros, não só durante esse período), que os tratados de paz quase sempre eram impostos aos vencidos. Ai dos vencidos! A Pax Romana era uma paz imposta.

O primeiro  Tratado de Paz negociado, vamos encontrar com a celebração da Paz de Westfália, 1648, depois de três anos de negociações e que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos. A Paz de Westfalia é considerada o marco inicial do Direito Internacional Moderno, representando o momento em que os Estados soberanos discutiram, deliberaram e acordaram em torno dos problemas da época e   do porvir.

Não podemos esquecer, entretanto, que o Tratado de Versailles, um dos celebrados no fim da 1ª Guerra Mundial, foi considerado por muitos, como uma das sementes que fez germinar a própria 2ª Guerra.

Os projetos de paz – paz perpétua – nasciam das obras doutrinárias e estão, com freqüência, associados a modelos de criação de órgãos superiores que viessem a garantir-lhes a efetividade. Por tal razão, encontramos referências aos mesmos ao estudarmos os antecedentes das organizações internacionais.

Vale mencionar, apenas, os mais destacados: DANTE, mais conhecido como autor da Divina Comédia, escreveu “Da Monarchia” (1315), onde propõe uma monarquia universal, a fim de que a paz seja assegurada, com a hegemonia do Imperador.

ERASMO, celebrizado pela sua obra “Elogio da Loucura”, em “Querela Pacis” (1517), lembrava a fraternidade dos cristãos, sugeria a arbitragem como forma de solução de litígios e que a guerra só fosse deliberada por toda a nação e não apenas pelo príncipe.

WILLIAM PENN escreveu “Ensaio sobre a presente e a  futura  paz da Europa pelo estabelecimento de uma Dieta Européia, parlamento de entendimento ou acordo”( 1693), propunha que fosse composto um Parlamento, com noventa membros, onde cada Estado teria sua representação de acordo com a importância econômica e demográfica. Solução semelhante à que vem sendo adotada hoje pelos órgãos da União Européia. 

JEREMIAS BENTHAM ficou bastante conhecido por ter sido o primeiro a usar a expressão International Law, no sentido de Direito Internacional e que deu o nome à nossa disciplina, deixou uma obra  sobre  “Um plano para uma paz universal e perpétua”, escrita em 1786 e publicada após a sua morte.

KANT, cujo pensamento influenciou a filosofia moderna e contemporânea, no ensaio “Sobre a paz perpétua” (1795) propõe uma federação de Estados livres, com a soberania do Direito.

Muitos outros projetos foram apresentados, mas nenhum deles conseguiu atingir os seus objetivos concretamente.

Os primeiros movimentos pacifistas começaram a surgir no século XIX na Inglaterra e Estados Unidos,  e os primeiros Congressos Pacifistas teriam ocorrido em Londres, em 1843 e nos Estados Unidos, onde cerca de 50 Associações Pacifistas reuniram-se na American Peace Society, sendo o primeiro presidente William Ladd que lutava pela criação de um Tribunal Internacional,  sucedido pelo Presidente da Suprema Corte, William Jay. 

Mas, o Direito à Paz só veio a aparecer em documento internacional, na sua formulação negativa, e no contexto do final da 2ª Guerra Mundial, ao considerar crimes certos atos atentatórios à paz, constando do art. 6º do Estatuto do Tribunal Militar Internacional para a Europa, instituído pelo Acordo de Londres, de 8 de agosto de 1945, a fim de processar e julgar os grandes criminosos de guerra das Potências Européias do Eixo, cujos delitos não tenham localização geográfica precisa. Ou seja, pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg:

Art.6º: omissis

Os atos seguintes, ou qualquer um dentre eles, são crimes submetidos à jurisdição do Tribunal e acarreta uma responsabilidade individual:

  1. Os crimes contra a paz: quais sejam, a direção, preparação, desencadeamento ou a perpetração de uma guerra de agressão, ou de uma guerra em violação aos tratados, compromissos ou acordos internacionais, ou participação num plano combinado ou num complot para a realização de qualquer dos atos precedentes;
  2. Crimes de guerra, isto é, a violação às leis e aos costumes de guerra […];
  3. Crimes contra a humanidade, isto é, assassinato, extermínio, redução à escravidão, deportação e todos os outros atos inumanos  cometidos contra população civil […]

                            O art.5º do Estatuto do Tribunal de Tóquio contém o mesmo dispositivo – crimes contra a paz – todavia, numa redação bem mais objetiva.

Nos textos dos dois Estatutos  não aprece o tipo  penal denominado genocídio, porque ainda não entrara em voga, no jargão do Direito Internacional Penal, tal denominação, utilizada primeiramente pela doutrina.

O Tribunal Internacional “ad hoc” para os crimes cometidos no território da ex-Iuguslávia, não elenca entre os delitos previstos para a jurisdição da Corte, os crimes contra a paz. Refere-se às violações às Convenções de Genebra de 1949; violações às leis e aos costumes de guerra; genocídio e crimes contra a humanidade. Todavia, o próprio Tribunal teve como fundamento jurídico para sua criação o Capítulo VII da Carta da ONU, que diz respeito a “ação relativa a ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão” e foi estabelecido como um meio para a restauração e manutenção da paz naquele território.

O Tratado de Roma de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional, também não tipifica os crimes contra a paz, mas estarão submetidos àquela jurisdição: o crime de genocídio; os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão. E que são esses  senão crimes contra a paz?

Na realidade, todos esses crimes são violações aos Direitos Humanos fundamentais. Estes, ou Direitos da Pessoa, como preferem alguns denominá-los, receberam a sua formulação positiva – e podemos considerá-las como as primeiras – através das duas famosas Declarações, a americana e a francesa, ambas do final do século XVIII e impregnadas  do espírito iluminista da época. De tal forma transbordaram as fronteiras nacionais que se transformaram, sobretudo a francesa que se tornou mais conhecida, como símbolo e referência aos movimentos políticos liberais que se sucediam, especialmente na Europa.

Mas, foi depois da 2ª Guerra Mundial com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, promovida pelas Nações Unidas, que se começou a laborar no alargamento daqueles direitos que compunham o texto inicial como também na promoção das respectivas garantias.

Os doutrinadores costumam classificar os Direitos Humanos em três categorias, ou três gerações, relacionadas com muita felicidade por Karel Vasak, aos ideais expressos pela Revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.

Os direitos de 1ª geração, os políticos e civis, correspondem ao ideal de liberdade preconizado pela Revolução francesa “têm a  base constituída dos valores fundamentais e invioláveis do individualismo que a pessoa encarna, aos quais devem se subordinar os interesses do poder, em obediência à barreira caracterizada como espaço sagrado da liberdade”: liberdade de expressão, liberdade de locomoção, liberdade de consciência; sigilo de correspondência, respeito ao domicílio e à intimidade. Nessa geração de Direitos o Estado deve se abster, tendo como papel apenas garantir ao indivíduo o  pleno exercício dos seus direitos.

A segunda geração(de direitos)  reporta-se ao ideal de igualdade, compõe-se de “direitos derivados  que se erguem da contínua intervenção do Estado para a promoção de serviços ou auxílios consideráveis, no campo dos direitos econômicos e sociais que incluem: direito à educação, à saúde, ao trabalho, à segurança, à qualidade de vida decente”. Assim, o Estado passa da função de proteger o cidadão, dentro da noção de estado mínimo, para a noção de Estado de Providência, que objetiva proporcionar o bem-estar do cidadão.

Os direitos humanos de primeira e de segunda geração hoje praticamente integram os textos constitucionais modernos dos Estados democráticos de Direito.

A terceira geração dos Direitos Humanos diz respeito ao ideal de fraternidade preconizado pela Revolução francesa. “Essa categoria foi concebida nos últimos anos, para se referir aos chamados direitos globais, ou transindividuais, que incluem: direito à paz, à solidariedade, ao desenvolvimento e à integração das culturas” .

Esses direitos, pelo aspecto novo que introduzem na concepção dos Direitos Humanos, recebem algumas críticas por não se enquadrarem nos quatro elementos considerados por alguns juristas proeminentes, como imprescindíveis à prevalência dos Direitos Humanos: a existência de um titular, objeto que dê conteúdo ao direito, uma oposição que reaja à violação dos direitos e uma norma, com preceito e sanção, que garanta a  sua eficácia.  

Já se fala nos direitos da 4ª geração, como o direito à vida das gerações futuras, o dom de viver com a liberdade para usufruir dos bens inerentes ao patrimônio comum da humanidade, como os fundos dos mares ou o espaço sideral, a bio-ética e a manipulação genética, direitos advindos da realidade virtual, entre outros.

Ouso discordar dos que não aceitam os Direitos de 3ª Geração, entre os quais o Direito à Paz como um dos direitos humanos. O que acontece é que o Direito à Paz  traspassa  por muitos dos direitos de 1ª e de 2ª geração, como que os amalgamando. E vamos sentir isto muito claro quando refletirmos sobre o momento atual. Com a violação do Direito à Paz, foram-se e estão indo vidas, foi-se também, e a cada hora mais, em muitos dos seus aspectos, a própria liberdade: de informação verdadeira sobre os fatos que estão acontecendo; de locomoção, restringida a milhares de pessoas em razão da raça ou da religião; do sigilo da correspondência, basta que falte o remetente e pode ser alvo de exames; das contas bancárias, das comunicações, tudo pode ser visto, de repente, como algo suspeito. 

Não estou negando as razões que levam às medidas preventivas ou de segurança, porém é de se constatar mais uma conseqüência do 11 de setembro que não foi sentida concomitantemente  aos fatos. Depois que milhares de pessoas perderam e outras tantas estão perdendo a vida, todos nós perdemos, em parte, a nossa liberdade.

Por isso entendo que não precisamos buscar quem é o titular do direito à paz – somos todos os seres humanos; o objeto é poder continuar usufruindo dos direitos de 1ª e 2ª gerações que são negados quando a paz é quebrada; quanto à oposição, ou quem pode reagir, embora sem grandes forças para mudar o quadro, mas a voz de cada um clamando pelo seu restabelecimento. E, ainda, quanto à norma, a máquina judiciária para garanti-lo, esperemos que a sociedade internacional se conscientize de que é preciso dar prevalência ao Direito, força a organizações internacionais ou supranacionais, para fazer valer as normas emanadas, que se instale o Tribunal Penal Internacional para processar e punir os autores daqueles crimes: de guerra, contra a humanidade, de agressão e genocídio, que, como disse, nada mais são do que violações ao direito à paz.

Mas tudo isto ainda seria insuficiente. Se os meios mencionados até agora pudessem restabelecer a paz, não a alcançaríamos de forma duradoura, só por eles. Teríamos apenas uma ausência de violência ou uma “não guerra”,  que é  a chamada paz negativa.

É preciso ter em conta duas formas de violência, como ensina há muito Johoan Galtung: “a violência pessoal, medida através de vítimas causadas pelos conflitos entre grupos antagônicos em geral e pela guerra em particular, e que revela enormes flutuações no decurso do tempo”, embora sempre presente na História da Humanidade, e a violência estrutural, que está ínsita na sociedade, pela falência ou insuficiência de seus órgãos, inscrita na estrutura social. 

                             “Um conceito lato de violência conduz a um conceito lato de paz. Da mesma maneira que uma moeda de duas faces – a paz também tem duas faces: a ausência de violência pessoal e a ausência de violência estrutural. Referimo-nos aqui a estas duas faces falando, respectivamente, de paz negativa e de paz positiva”.

Galtung preferiu adotar as expressões “ausência de violência” e “justiça social”, contrapondo, assim, uma expressão negativa a outra positiva. A razão do recurso aos temos “negativo” e “positivo” é fácil de compreender: a ausência de violência pessoal não conduz a uma condição definida positivamente, enquanto a ausência de violência estrutural é o que se denomina justiça social . A paz concebida desta maneira chama-se, também, desenvolvimento vertical, estando a teoria da paz intimamente ligada não só à teoria dos conflitos, mas igualmente à teoria do desenvolvimento.

Lembro trecho da Carta enviada ao Secretário Geral da O N.U., então U-Than, pelo Papa Paulo VI, por ocasião da reunião do Conselho de Administração do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, em 26 de maio de 1966, quando escreveu:

“[…] o desenvolvimento tem por objetivo a promoção harmoniosa do homem em sua integridade. É, portanto, tríplice a fome que deve ser satisfeita: fome física, intelectual e espiritual. […] É preciso que o mundo inteiro tenha consciência de que a miséria não é apenas um mal insuportável para os que a sofrem, mas o é também para todos os homens dignos deste nome […] Não se trata apenas de uma ajuda facultativa ou de um socorro urgente. Deve-se lançar mão de todos os recursos humanos. Não é suficiente dar dos próprios bens. É preciso dar do melhor do próprio ser. A paz a que o mundo aspira não poderá ser construída senão a esse preço, pois como disse alguém com muita razão ‘o desenvolvimento é o novo nome da paz” .

Hoje constatamos uma duríssima realidade. Nas raízes dos conflitos, além da violência estrutural, aprofundam-se outras causas de rivalidades, de fricção que levam ao confronto. Se as guerras perderam algumas das suas características, as soluções precisam atentar à modificação de tais raízes.  Nos dias atuais, também já  não se resolvem apenas com a promoção do desenvolvimento, através da cooperação que muitas vezes é fruto de um  paternalismo falso. Precisa, sim, mas de uma cooperação verdadeira, que vá mais além, que exige  respeito mútuo e   consciência de que somos apenas parte de um todo, que é o gênero humano – qualquer que seja o nosso sexo, a cor da nossa pele, o lugar onde nascemos, a religião que professamos ou a escolha  política que fizemos . 

O ensaísta e  Professor  Sérgio Paulo Rouanet fez uma das mais agudas análises sobre o conflito que estamos vivendo, e deu como título ao seu artigo: “Os três fundamentalismos” – analisando o islâmico, o judaico e o cristão. 

                                 Na realidade, a ação dessas três forças  torna esta guerra diferente, tanto na sua condução – porque os atores não se movem  dentro do modelo clássico Estado versus  Estado, mais a maior potência do mundo atual (Estado) versus uma Organização não Governamental Internacional – ONGI, que, territorialmente, tem seu principal ponto de apoio num dos mais pobres Estados do mundo atual (Afeganistão). Todavia, a localização não  decorreu apenas da pobreza do país, mas de identidades de princípios (assim chamemos) entre o Al-Qaeda – que é uma ONGI e governo afegão, chefiados pelo Talibã. E, em conseqüência, os métodos  heterodoxos destes dificultam encontrar a porta de saída para o conflito, cuja raiz está fora do  local do teatro das operações. Se não houver maturidade dos que detêm o poder (ali e fora) para as concessões na sua exata dosagem, e chegar a um tratado de Paz justo, sob a égide do Direito, este conflito terá dimensões imprevisíveis, no tempo e no espaço.

  Vimos  aquilo que aparentava solidez ruir como um castelo de cartas – as duas torres, o que parecia inespugnável – o Pentágono,  foi atingido com a facilidade de um vôo de pássaro, mesmo metálico. O terror, que veio em dose impactantemente gigantesca, e agora,  salpicando aqui e ali, com a imprevizibilidade que marca esses tipo de ação, está implantando, com sucesso, o que os italianos chamam de  “strategia de la paura” – ou seja, a estratégia do medo.    

E veio o revide  da parte ofendida, muito menos em decorrência das vidas perdidas e dos danos materiais sofridos – embora seja isso o que se diz – mas, especialmente, por ter sido a maior humilhação internacional, muito maior que Pearl Harbour,  que um Estado Soberano   sofreu em tempo de paz, em toda a História moderna.

Relembro as quatro colunas douradas do palco da Ópera de São Francisco representando as quatro liberdades que descrevi no início, e que foram exaltadas na célebre mensagem do Presidente Roosevelt ao Congresso americano, em 6 de agosto de 1941:  

“No futuro, que procuramos tornar seguro, esperamos que surja um mundo baseado nas quatro liberdades essenciais do homem: a primeira é a liberdade de expressão, em todas as partes do mundo; a segunda é a liberdade de cada pessoa prestar culto ao seu Deus da maneira que lhe aprouver, em todas as partes do mundo; a terceira é a liberdade das necessidades, que traduzidas em termos universais, significa entendimentos comerciais que possam assegurar para cada nação uma vida sadia em tempo de paz, em todas as partes do mundo; a quarta  é a liberdade do medo – que traduzido em termos universais, significa uma redução de armamentos em todo o mundo a tal ponto e de modo tão completo que nenhuma nação fique em condições de perpetrar um ato de agressão física contra qualquer vizinho – em qualquer parte do mundo.

Não é utopia para o próximo milênio. É um alicerce definido para o mundo dos nossos dias e da nossa geração” .

Foi isso o que disse o Presidente americano naquele momento. É, portanto, nelas que precisamos pensar, são elas que precisamos buscar para que não continuem meras utopias.

Na sala do Conselho de Segurança, no prédio da sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York, há um  grande painel ao fundo, de autoria de um pintor norueguês, e está dividido em três partes: na inferior, pintada em cores bastante escuras, há figuras  humanas acorrentadas, contorcidas,  expressando sofrimento e cercadas por serpentes e estranhos animais  – representavam, na visão do artista, a época anterior à criação da Organização . A parte do meio é clara, cores vivas, com casais aparentando bodas em festa, guirlandas de flores e harmonia   – seria a representação do tempo que, se esperava, viesse com a Organização. A parte superior está esboçada, tem traços que mostram a natureza, mas está inacabada –  na razão do pintor, por não saber qual seria o futuro da humanidade.

Os fatos que vêm acontecendo  mostram que o artista tinha razão. A utopia continuou utopia. Já não podemos afirmar qual será o futuro da humanidade. 

Esperemos que a Organização das Nações Unidas venha a assumir um papel mais importante neste conflito, pois há milhares de pessoas nas fronteiras dos países vizinhos do Afeganistão, implorando por asilo, que é uma garantia  do cidadão ao direito mais fundamental do ser humano:  à vida e à integridade física.  

                              Esperemos que a ONU consiga agir antes que o inverno chegue naquela região, e a comida levada no lombo dos burros   possa alcançar  milhares de crianças, que não são vistass nos braços  daquelas pobres mulheres de azul (burca), de quem não se pode ver sequer a tristeza do olhar. Mas para que aqueles seres humanos, como nós, tenham ao menos o direito a não morrer de fome.

Como será o mundo de amanhã, não sei. Apenas sei  que para continuarmos a existir – nós mesmos – com dignidade, temos que voltar à sabedoria dos gregos, reconhecer e fazer prevalecer que Eirene é filha de Themis – A PAZ É FILHA DA JUSTIÇA! 

OBSERVAÇÕES DA AUTORA: Este texto foi apresentado em 24 de outubro de 2001. Ao longo deste ano de 2002, vimos muitas coisas acontecerem no Afeganistão: bombardeios  em larga escala devastando regiões, atingindo alvo civis, ao mesmo tempo afastando os Talebãs e constituindo um  governo dito provisório para o país. As lideranças tribais queixaram-se da interferência americana nos seus assuntos internos e algumas chegaram a deixar a reunião onde estava prevista a escolha de um governo pelos próprios representantes das diversos grupos. Hoje vê-se as faces das mulheres e algumas manifestações de abrandamento nos costumes impostas pelo antigo regime. Mas, tudo leva a crer que o alvo principal, encontrar Hosama bin Laden, não foi alcançado. Isto significa que há mais solidariedade e organização entre os simpatizantes da sua atuação do que supunham algumas potências ocidentais sempre levadas a minimizar a capacidade dos demais povos.

O futuro da região ainda está por definir, a opinião pública internacional cansou de ouvir as notícias manipuladas pelos órgãos de divulgação.  Outros temas passaram a interessar mais, até mesmo ao povo americano, como os escândalos financeiros nas grandes empresas que afetam diretamente os seus investimentos e suas reservas pessoais em ações.

Está difícil sair da teia sem que se resolvam outros problemas, fora da região, como por exemplo, o caso do Oriente Médio com a criação do Estado Palestino e outras medidas visando à PAZ. A Paz, sempre ela, e sem ela o mundo continuará vivendo os horrores da violência, do terrorismo e outros males que afligem a sociedade internacional.

Recife, 16 de julho de 2002.

Mesa Redonda: A BUSCA DA PAZ

Promoção do PNUD/ONU

            Tema: O DIREITO À PAZ

Participação de: MARGARIDA CANTARELLI

Doutora em Direito pela UFPE

            Professora de Direito Internacional UNICAP/UFPE

Data: 24 de outubro de 2001.


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