Seção Judiciária do Estado da Paraíba
Abertura do Ano Judiciário 2003
Tema: Direitos da Personalidade e o novo Código Civil
Palestrante: Margarida Cantarelli
1. Gostaria de agradecer a gentileza do convite para participar desta solenidade, inicio do ano judiciário de 2003 e transmissão da Diretoria do Foro do Juiz Jose Fernandes para o Juiz Rogério Fialho.
2. Jose Fernandes e Rogério Fialho são dois amigos muito estimados, colegas que merecem todo o meu respeito e a minha admiração. A Jose Fernandes – amigo de longas datas, em nome do Presidente Geraldo Apoliano, os mais sinceros agradecimentos pela dedicação e eficiente administração no exercício da Diretoria do Foro desta Seção Judiciária. O lançamento hoje desta Revista, já no seu 2O numero, bem demonstra a preocupação do Diretor, que indo alem da administração material da Seção Judiciária, cuidou também de difundir o trabalho dos colegas buscando o aperfeiçoamento de todos os operadores do Direito que tiverem acesso aos textos publicados.
A Rogério Fialho, a certeza de igual eficiência na Diretoria do Foro e a convicção de que também haverá uma completa integração e ampla cooperação na missão que nos espera.
3. Pensei, inicialmente – ao receber o amável convite para participar desta solenidade, em tratar de algum tema relacionado com o Direito Internacional – todavia, vivemos um momento de perplexidade nas relações internacionais, onde temores, violações ou iminência de violações de normas que supúnhamos consolidadas, como as leis de Guerra/relativas ao tratamento de prisioneiros, se contrapõem `a alegria com que saudávamos recentemente, por exemplo, o avanço relativo `a criação do Tribunal Penal Internacional, passo importante na internacionalização dos Direitos Humanos. Na verdade a hegemonia na política internacional e` antípoda da paz. E` o que assistimos nesses dias.
4. Assim, abandonei parcialmente a idéia do Direito Internacional, por desejar que este momento seja para nos de entendimento, de renovação de esperanças, de se pensar um futuro de construção de relações eficientes, mas sempre amistosas. Um futuro em que buscaremos a compreensão, a conciliação, ao lado do trabalho dedicado e tenaz, em nome da sociedade e da Justiça, nossa causa primeira.
5. Então optei por trazer para nossa reflexão um tema do novo Código Civil que entrara’ em vigor em poucos dias. Pensei numa breve apreciação sobre o Capitulo relativo aos Direitos da Personalidade, que tem tudo a ver com Direitos Humanos e estes com o Direito Internacional. Embora na nossa pratica diária utilizemos mais as normas do Direito Publico, vejo este tema como um exemplo fundamental de superação da summa divisio, a clássica distinção entre Direito Publico e Direito Privado, e a expressão de um novo pensar do sistema jurídico. Nos Direitos da Personalidade praticamente fundem-se – Direito Publico e Direito Privado, ante o objetivo maior de valorização e proteção da pessoa humana que deve embasar todo o ordenamento jurídico.
6. Todavia, e` oportuno antes de entrarmos especificamente no tema, fazermos duas rápidas observações:
a) a primeira, permitam-me, e` uma homenagem devida ao Código Civil Brasileiro de 1916, a Clovis Bevilaqua e de certo modo também `a Faculdade de Direito do Recife, que foi a sua Casa; Código que correspondeu ao espírito do seu tempo e ultrapassou, com as modificações que sobrevieram, as transformações do século XX; Código fruto da época das grandes codificações – século XIX, com influencias do Código de Napoleão, do Código Civil alemão –BGB e do italiano; Código que serviu de modelo e foi referencia na América Latina. Devo dizer que sinto tristeza, um certo sentimento de perda, ao despedir-me do Código de 1916.
Com relação ao Código que chega, muitos apontam que nasceu envelhecido pelo longo período de tramitação ante a velocidade das transformações ocorridas coetaneamente. São praticamente três décadas, num tempo impar de transformações na tecnologia e no pensamento da humanidade. Mas, agora que esta entrando em vigor, só nos cabe procurar contribuir para o seu aperfeiçoamento. O Código adotou a técnica das clausulas gerais “que revelam atualização em termos de técnica legislativa, mas exigem cuidado especial do interprete. O relator do Projeto no Senado Federal, o eminente jurista Josaphat Marinho afirmou que o Código deveria traduzir-se em “ formulas genéricas e flexíveis, em condições de resistir ao embate de novas idéias”. O próprio Reale igualmente destacou que o Código permitiria “soluções que deixam margem ao juiz e `a doutrina, com freqüentes apelos a conceitos integradores da compreensão ética, tais como o da boa-fe, equidade, probidade, finalidade social do direito, equivalência de prestações”. Portanto, caberá um importantíssimo papel aos magistrados, de interpretação e, através dos seus julgados, contribuir para a integração do novo Código.
b) a segunda observação, na esteira de Miguel Reale, também entendo que duas leis são fundamentais no sistema jurídico de um país: a Constituição e o Código Civil. A Constituição determinando a estrutura da sociedade política (a estrutura do Estado, a divisão dos poderes com suas respectivas atribuições, suas instituições e os direitos fundamentais dos cidadãos), o Código Civil estabelecendo a estrutura da sociedade civil (refere-se à pessoa humana e à sociedade enquanto tais) abrangendo suas atividades essenciais. O Código Civil cuida de todos os atos da nossa vida, até mesmo antes do nascimento (quando protege os direitos do nascituro) e também depois da morte quando cuida da sucessão, herança,etc. E` como chamou o Prof. Reale “ a Constituição do homem comum”.
Mas, e` de se constatar um fenômeno que vem ocorrendo nos ordenamentos jurídicos (não só no brasileiro) que e` a perda da centralidade do Código Civil no sistema de fontes normativas, atingido pelo movimento de descodificação , assumindo a Constituição o papel reunificador do sistema, como ápice da pirâmide das normas. A Constituição brasileira de 1988 e`um exemplo claríssimo. E isto tem, como veremos, uma grande importância no nosso tema.
7. OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Antes de tudo, considero oportuno que o novo Código tenha introduzido o Capítulo “Dos Direitos da Personalidade”, embora reconheça que contempla apenas alguns dos direitos da personalidade, pois se sabe que eles são bem mais numerosos do que comportam os dez artigos (do art.11 ao art.21) que lhes foram consagrados. O legislador ficou adstrito ao Projeto do mestre Orlando Gomes, mas que datava de 1963. Alem do que, com diz Tepedino “foi engenheiro de obras feitas, ao consagrar direitos que, na verdade, estão tutelados em nossa cultura jurídica pelo menos desde o Pacto político de outubro de 1988” , ou dito pelo mesmo autor numa forma mais amena, vê-se “ocasiões perdidas por parte do codificador brasileiro” ao não aprofundar tais direitos `a luz dos princípios constitucionais fundantes.
Mas, a maior importância do Capitulo não esta na relação de direitos apresentada, já que não e` exaustiva. E sim na sua posição na Parte Geral do novo Código, o que “ reflete uma mudança paradigmática do Direito Civil, que se reconhece como parte de um ordenamento cujo valor maximo e` a proteção da pessoa humana. Esta constatação aponta para uma reelaboração da dogmática civilistica, na qual os direitos da personalidade desempenham importantíssimo papel. Ou no dizer de Diez-Picazo e Gullon: “ A pessoa não e` exclusivamente para o Direito Civil o titular de direitos e obrigações ou o sujeito de relações jurídicas. Este a deve contemplar e proteger, sobretudo a pessoa considerada em si mesma, seus atributos físicos e morais, e tudo que signifique o desenvolvimento da mesma”.
E, este novo paradigma civilistico e` de construção recente. Esse processo rompe o conteúdo etimológico do vocábulo pessoa, que desde o inicio do nosso curso jurídico aprendemos como sendo derivado de persona, a mascara utilizada pelos atores no teatro grego. “ A pessoa seria a representação jurídica de cada homem; porem a posição central assumida pelo próprio homem no ordenamento o traz, em toda sua realidade e complexidade, para o epicentro do ordenamento, que a ele deve adaptar-se e não o contrario – e a mascara cai”.
Gustavo Tepedino, no seu livro “Tema de Direito Civil”, no capítulo sobre “A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro”, lembra muito bem, que “poucos temas jurídicos revelam maiores dificuldades conceituais quanto os direitos da personalidade. De um lado, os avanços da tecnologia e dos agrupamentos urbanos expõem a pessoa humana a novas situações que desafiam o ordenamento jurídico, reclamando disciplina; de outro lado, a doutrina parece buscar em paradigmas do passado as bases para as soluções das controvérsias que, geradas na sociedade contemporânea, não se ajustam aos modelos nos quais se pretende enquadrá-las.”
O direito romano não tratou dos direitos da pesonalidade aos moldes hoje conhecidos. Concebeu apenas a actio injuriarum, a ação contra a injuria que, no espírito pratico dos romanos, abrangia “ qualquer atentado `a pessoa física ou moral do cidadão” . Nem poderia ter ido muito alem num período em que havia escravidão e o estrangeiro era tratado de forma discrimada.
A categoria dos direitos da personalidade e` fruto da elaboração doutrinaria germânica e francesa da segunda metade do século XIX. Todavia, perduraram hesitações na doutrina quanto `a sua existência conceitual , sua natureza e seu conteúdo.
Tiveram grande importância as chamadas teorias negativistas, que afirmavam que a personalidade, identificando-se com a titularidade de direitos, não poderia, ao mesmo tempo, ser considerada como objeto deles. Tratar-se-ia de uma contradição lógica. Tais teorias ganharam prestigio, especialmente pelos nomes dos seus defensores – Unger, Dabin, Savigny (e` famosa a construção de Savigny – a admissão dos direitos da personalidade levaria `a legitimação do suicídio ou da auto mutilação), ou a opinião de Iellinek (para quem a vida, a saúde, a honra não se enquadrariam na categoria do ter, mas do ser, o que tornaria incompatíveis com a noção de direito subjetivo, predisposto `a tutela das relações patrimoniais e, em particular, do domínio).
Em sentido oposto, estavam os que defendiam que a personalidade como sujeito de direito não podia ser dele objeto. Considerada ao reves como valor, tendo em vista que o conjunto de atributos inerentes e indispensáveis ao ser humano constituem bem jurídicos em si mesmos, dignos de tutela privilegiada.
A distinção entre os conceitos de personalidade como objeto e como sujeito de direitos esta clarificado no art.70, I do Código Civil Português, que estabelece a tutela geral da personalidade física ou moral dos indivíduos assim considerados, como “os bens inerentes `a própria materialidade e espiritualidade de cada homem”.
O Código Civil Português, no art. 70 , que trago à guisa de exemplo, protege todos os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral através, nomeadamente, da cominação de responsabilidade civil e da concessão de providências cíveis adequadas às circunstâncias do caso e destinadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa já cometidas.
Sobre o mencionado artigo, o jurista português Capelo de Souza faz comentários perfeitamente cabíveis à nossa situação brasileira, quando diz: “esse tipo de tutela geral da personalidade, embora com características peculiares na nossa ordem jurídica (portuguesa), insere-se na longa e acidentada evolução das relações sociais, econômicas e jurídicas entre os homens e entre estes e os ditames da sociedade no seu conjunto, particularmente, no que respeita ao reconhecimento igualitário da personalidade e da capacidade jurídica de todos os homens, ao âmbito da permissibilidade jurídica das formas ou dos modos de expressão da personalidade humana individualizada e à adoção de mecanismos jurídicos-processuais garantidores dos direitos da personalidade. Evolução essa que não se encerrou, que se encontra numa fase de maturação e de transformação e que importa projetar no futuro, face, v. g., às conseqüências no plano jurídico da utilização pelas sociedades contemporâneas de sofisticada e ambivalente aparelhagem tecnológica, que cada vez mais planetariza a sociedade humana a nível quase de uma aldeia global e lhe introduz ritmos e rupturas diversas, questionando inclusivemente o perfil biológico do homem e a sua inserção ecológica. Por tudo isso a análise da dinâmica e do sentido de tal evolução, nomeadamente ao nível das instituições jurídicas, ajudar-nos-á a situar e a perspectivar melhor os problemas emergentes da tutela geral da personalidade no nosso actual ordenamento jurídico”.
Assim, compreende-se sob a denominação de direitos da personalidade, os direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade
E` sabido que a preocupação com o status jurídico da pessoa humana e`, na sua origem, decorrência de duas tradições: a do cristianismo (ao exaltar o individuo criado `a imagem e semelhança de Deus, dotado de livre-arbitrio); e a das Declarações de Direitos, especialmente as surgidas em fins do século XVIII (Declaração de Direitos do Homem e do cidadão, de 1789 e a Declaração de Virginia, 1776). E` bem verdade que as duas tradições não andaram inicialmente paralelas. A Igreja não foi a principio entusiasta das declarações de Direitos que ao secularizarem/laicizarem o poder, diminuíam a sua influencia nos espaços públicos. O dogma da soberania popular enfraquecia grandemente o poder da Igreja. O poder não tinha mais origem divina, mas residia no povo e em seu nome deveria ser exercido. Basta que lembremos a reação, numa referencia histórica, da Santa Aliança, do inicio do século XIX, um dos movimentos mais conservadores da Historia moderna. Os sinais de mudanças só vieram em 1894, quando Papa Leão XIII lançou a Encíclica Rerum Novarum, pedra fundamental da doutrina social da Igreja que iniciou o caminho ate o Concilio Vaticano II e a tomada de posição em favor dos Direitos Humanos.
Devemos reconhecer, também, que as Declarações de Direito vieram a lume a partir da necessidade de proteger o cidadão, num matiz individualista, contra o arbítrio do Estado totalitário; limitava-se, por isso mesmo, à tutela conferida pelo direito público à integridade física, e a outras garantias políticas, especialmente perante o Estado. Mas, e` preciso também lembrar um outro aspecto da sociedade pos Revolução Francesa, sob o comando da classe burguesa. A liberdade era garantida, de expressão do pensamento, de religião, de ensino, de publicação, de reunião, todas as liberdades, mas também a liberdade econômica, o direito `a propriedade privada, a liberdade de contratar, cuja regulação seria uma das grandes missões do código civil oitocentesco. Uma estrutura normativa foi criada para estruturar esse modelo sócio-economico nas relações inter-pessoais, que foi o Código de Napoleão. Este panorama deixava viva a summa divisio. O Código de Napoleão era estatuto, contrato social, estrutura da sociedade, em suma, o documento fundamental. Na verdade, a ordem jurídica que seguiu `as Declarações de Direitos, ao ressaltar a summa divisio, tornou diversos os ambientes da proteção da pessoa: uma, era estabelecido pelas próprias Declarações e Cartas Constitucionais que conferiam ao homem determinadas liberdade em relação ao Estado. Havia, porem, outro campo, o das relações privadas, onde o homem não poderia se valer de uma proteção especifica e individualizada do ordenamento jurídico, onde imperava a autonomia privada. Não existia nas relações de direito privado um sistema mais aperfeiçoado ou detalhado de proteção fora dos limites dos tipos penais. Assim, a lesão à integridade das pessoas era matéria do direito público, que asseguraria, com o direito penal, a repressão aos delitos – contra a pessoa (vida, integridade física) contra a honra, contra os costumes, etc. Isto refletia no direito civil a cultura jurídica da época e a fase de desenvolvimento em que se encontrava o sistema econômico.
Durante o século XX, observam-se as mudanças que resultaram, na ordem jurídica, no desenvolvimento dos Direitos da Personalidade. Contudo, nas primeiras décadas isto ainda não estavam muito claro. O Código Civil alemão – o BGB, que entrou em vigor em 1900, já rompia com a tradição do Código Napoleão, sem no entanto fazer acenos diretos aos Direitos da Personalidade, embora já tutelasse o direito ao nome; e destacado a vida, o corpo, a saúde e a liberdade como bens pessoais cuja lesão obriga ao ressarcimento, como lembra o Prof. Oliveira Ascensão. Nesse ambiente, o Código Civil brasileiro de 1916, concebido no espírito de século XIX, ainda não incluía os direitos da personalidade.
Só com a Constituição de Weimar, de 1919, pos 1a. Guerra Mundial, consta-se a decisiva mudança de perspectiva. Foi a primeira das chamadas “longas Constituições”, consciente de sua posição no vértice normativo e forjada neste espírito, nela eram referidos os institutos-chaves do direito civil, como a família, a propriedade e o contrato. “ E` impossível deixar de notar um ‘ofuscamento de fronteiras’ entre o direito publico e o direito privado”, na feliz expressão do Prof. Giorgianni.
A Constituição de Weimar, que serviu de modelo `a Constituição brasileira de 1934, foi o marco de transformação da democria liberal, individualista, para a democracia social ou o chamado “ socialismo democrático”. Esta Constituição traria o grande impacto na tutela de pessoa humana: “os direitos pessoais deveriam ser efetivamente aplicados nas situações concretas em que estivesse em jogo a personalidade”.
Em especial no pos-guerra, os direitos da personalidade começaram a exibir seu perfil atual, a tutela de um mínimo essencial, a salvaguarda de um espaço privado que proporcionasse condições de pleno desenvolvimento da pessoa.
8. CARACTERISTICAS E CLASSIFICACAO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Muitas são as características dos Direitos da Personalidade. O art.11 do novo Código Civil identifica três delas: intransmissibilidade, irrenunciabilidade e a indisponibilidade (ou seja, a impossibilidade de sofrer limitações voluntárias). Todavia a doutrina tem reconhecido varias outras características, tais como: generalidade, extrapatrimonialidade, inatos, caráter absoluto, inalienabilidade, imprescritibilidade, impenhorabilidade, entre outros.
A generalidade significando que esses direitos são naturalmente concedidos a todos. Inatos, expressão que embora possa ter um significado dúbio, posto que suscita uma conotação jusnaturalista, mas são considerados inatos pelo fato de ser conseqüência tão só de nascer. A extrapatrimonialidade consistiria na insuscetibilidade de uma avaliação econômica destes direitos; são absolutos já que oponíveis erga omnes; a indisponibilidade retira do seu titular a possibilidade de deles dispor, tornando-se também irrenunciáveis e impenhoráveis. E` preciso ter cautela com relação `a imprecritibilidade, para não confundir com a decadência do direito de ação de caráter ressarcitorio, como também quanto `a intransmissibilidade ao considerar que se extinguiria com a morte do titular, quando os interesses mantem-se tutelados mesmo apos a morte do titular.
A meu sentir, embora o novo Código não traga todas as características desses direitos, nem por isso elas deixam de existir e continuam presentes porque são da essência do próprio direito que visa a proteger.
Da mesma forma, com relação à classificação, muitos foram os doutrinadores – grandes juristas, como Pontes de Miranda, Ferrara, Antonio Chaves, Limogi França, Orlando Gomes, que procuraram agrupa-los, procurando dar-lhes um cunho lógico, didático, torna-los mais compreensíveis, até porque, pela natureza desses direitos, eles se voltam para TODAS AS PESSOAS, e, por conseqüência, devem ser bem claros e conhecidos.
Dentre tantas classificações disponíveis, Tepedino, toma por empréstimo, a proposta por Orlando Gomes, distinguindo os Direitos da Personalidade em dois grandes grupos: os direitos à integridade física, nesse grupo compreendendo-se o direito à vida, o direito ao próprio corpo ( que se subdivide em direito ao corpo inteiro, direito a partes do corpo e o direito ao próprio cadáver) e os direitos à integridade moral, quais sejam, direito à honra, à liberdade, ao recato, à imagem, ao nome e direito moral do autor.
Convém, mais uma vez lembrar, que o Projeto do Código Civil e` anterior `a Constituição de 88 e `as diversas leis especiais que versam sobre alguns dos Direitos, como por exemplo, o caso relativo `a possibilidade de doação de órgãos para fins de transplante que naquela época poderia parecer ate uma ficção cientifica (art. 199 § 4º , CF, quando estabelece: “a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”).
Do primeiro grupo, o novo Código Civil destaca três artigos que tratam do direito à integridade física:
Na disposição do próprio corpo: Art.13: Salvo exigência médica, os atos de disposição do próprio corpo são defesos quando importarem diminuição permanente de integridade física, ou contrariarem os bons costumes.
Parágrafo único: Admitir-se-ão, porém, tais atos para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
Deixa ao largo o legislador um dos temas polêmicos de nossa época – as cirurgias de mudanças de sexo. Talvez ate, já que concebidos em 1963, na referencia aos “bons costumes” esteja uma forma de proibição.
Na disposição do próprio cadáver: Art.14: É válida, como objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
Parágrafo único: o ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
Um outro tema que poderá acarretar grandes problemas medico diz respeito a autonomia do paciente, ou direito de recusa de alguns tratamentos médicos.
Art.15: Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
No segundo grupo trata dos direitos à integridade moral, quais sejam, direito à honra, à liberdade, ao recato, à imagem, ao nome e direito moral do autor.
Direito ao nome (nome e pseudônimo): artigos 16,17, 18 e 19:
Art. 16:Todas as pessoas têm direito ao nome, nele compreendido o prenome e o nome patronímico;
Art. 17: o nome da pessoa não pode ser empregado pôr outrem em publicações ou representações que a exponha ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.
Art. 18: Sem autorização, não se pode usar o nome alheio, em propaganda comercial;
Art.19: O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome;
Direito `a honra objetiva, autoral e `a imagem:
Art.20 Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão de palavra, ou a publicação, exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único: Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Direito `a inviolabilidade da vida privada:
Art.21: A vida privada da pessoa física é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
A Constituição Federal contempla diretamente a inviolabilidade da vida privada, quando diz no art. 5º, X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”; ou no inciso XI: a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, pôr determinação judicial; ou, ainda, no inciso XII: é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Na Declaração de Direitos Humanos da ONU, o art.12, estabelece:
“Ninguém sofrerá intromissão arbitrária na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem o direito a proteção da lei”
Sabemos que todos os direitos inscritos no novo Código, são da maior importância para a pessoa. Embora, alguns possam até parecer supérfluos nos dias de hoje, como – todo pessoa tem direito a um nome (prenome e patronímico). Mas, na realidade brasileira, ainda ha grande numero de crianças, nas periferias das cidades que atinge a idade escolar, sem registro civil e sequer tem um prenome.
Quase diariamente decidimos sobre pedidos de indenização por danos materiais e/ou morais causados a particulares por medidas ou atitudes tomadas, abusiva ou erroneamente, por Órgãos Públicos Federais, em alguns casos impondo o restabelecimento de situações anteriores (como a determinação de exclusão do nome do autor dos órgãos de restrição ao crédito, por exemplo); ou determinando o estorno de importâncias indevidamente cobradas, ou, ainda, de caráter ressarcitorio, fixando o pagamento de indenização (casos, por exemplo de cheques devolvidos quando havia provisão de fundos e que levaram o emitente a situações vexatórias, constrangedoras). E as partes invocam como fundamento do pedido a própria Constituição Federal.
Os desafios aparecem mais fortes nas situações que advêm do desenvolvimento científico e tecnológico, quando nos deparamos de um dia para outro com uma possibilidade científica que não tinha sido sequer imaginada. O mundo surpreendeu-se com o anúncio internacional – que o desenvolvimento nos meios de comunicações permite chegar imediatamente a todas as partes – da clonagem de uma ovelha e agora, talvez, de um ser humano. Daí, todos os desdobramentos bioéticos e biojurídicos (biodireito) que advirão estão bem longe de se ter uma resposta.
Ou ainda, em hipóteses em que aparecem em choque invocados os Direitos da Personalidade por ambas as partes em um mesmo processo. Qual prevalecer? Isto lembra-me o caso da obrigatoriedade ou não do exame de DNA em processo de investigação de paternidade. De um lado o direito do filho de ter sua paternidade reconhecida, de ter um nome; do outro o do Réu, alegando direito `a intimidade.
Vê-se, com freqüência, pela mídia, pessoas famosas se submetendo a tais exames, alguns com resultados positivos, o caso Pelé e sua filha; outros têm resultados negativos, como o relativo a uma possível filha Ayrton Sena. Artistas, políticos, pessoas famosas ou pessoas comuns, poderão defrontar-se como uma situação similar, vir a ser compelido a fazer o exame de DNA.
Trouxe, apenas, à guisa de reflexão, dois julgamentos, que foram submetidos ao Supremo Tribunal Federal: o Habeas Corpus – HC 71373-4-RS, julgado em 10 de novembro de 1994 (DJU 22.11.96, p.45.686) e o Habeas Corpus – HC 76060/SC, julgado em 31 de março de 1998 (DJ 15/05/1998).
No primeiro caso, tendo em vista decisão do Juiz monocrático do RS, que determinou a realização do exame, decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça daquele Estado, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, manifestou-se pela concessão da ordem, portanto, contrariamente à obrigatoriedade do exame contra vontade do réu.
O Relator para o Acórdão foi o Ministro Marco Aurélio , vencido o relator do Processo, Ministro Francisco Resek, cuja Ementa transcrevo:
“INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE – EXAME DNA – CONDUÇÃO DO RÉU “DEBAIXO DE VARA”. Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, “debaixo de vara”, para a coleta do material indispensável à feitura do exame de DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos”.
Ficaram vencidos os Ministros, Relator Francisco Resek, Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence, vencedores, os Ministros Marco Aurélio, Moreira Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches e Celso de Mello.
Em que pese ter sido vencido, o voto do em. Ministro Francisco Resek, traz colocações que merecem reflexão sobre o confronto entre o direito à intimidade do investigado e o direito à filiação verdadeira do investigante. É de se destacar alguns trechos do seu voto que contem uma exata visão jurídica, um especial sentimento humano e, pelo estilo, também, uma bela peça literária. Diz ele:
“Observo, de início, ser de inteira lógica, embora não cotidiano, que do foro cível promane constrangimento ilegal corrigível mediante habeas corpus. No caso em exame, cuida-se de saber se o investigado, na ação de verificação de paternidade, pode ser forçado, à vista de sua recusa, a se submeter a certa prova pericial, o exame hematológico. O tema ganha relevo seja por causa do advento, no campo da medicina legal, do exame de determinação de paternidade pelo método do DNA ( ácido desoxirribonucléico), seja à conta da crescente preocupação do legislador e dos tribunais com os direitos da criança e do adolescente.
[…]
O peso desse novo instrumento pericial revela-se em sua insignificante margem de erro, o que leva alguns especialistas a afirmar que os teste de paternidade pelo exame do DNA […] ostenta confiabilidade superior a 99,99%. A certeza científica proporcionada pela nova técnica oferece ao julgador um elemento sólido para a construção da verdade.
Do outro lado, observa-se uma superlativa atenção do legislador, a partir da Carta de 1988, para com os direitos da criança e do adolescente. As inovações constitucionais no capítulo da família, da criança, do adolescente e do idoso deram nova conformação ao direito da criança, de que é exemplo o artigo 227 da Carta Política. A legislação infraconstitucional tem acompanhado, por igual, os avanços verificados neste exato domínio. Assim, a Lei 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto de Criança e do Adolescente; a Lei 8.560/92, que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, entre outras.
O que temos agora em mesa é a questão de saber qual o direito que deve preponderar nas demandas de verificação de paternidade: o da criança à sua real (e não apenas presumida) identidade, ou o do indigitado pai à sua intangibilidade física.
[…]
É certo ainda, como ponderou o Ministério Público Federal, que a recusa do investigado implica descumprimento de um “dever processual de colaboração normativamente posto no artigo 339 do CPC, verbis:
Art.339: Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descumprimento da verdade”.
[…]
Se, todavia, o conflito põe-se entre o filho investigante e o pai investigado a que se estabeleça, ou não, o Vínculo Familiar – perspectiva típica do processo civil – ninguém pode furtar-se à colaboração na definição deste vínculo’.
Nesta trilha, vale destacar que o direito ao próprio corpo não é absoluto ou ilimitado. Por vezes a incolumidade corporal deve ceder espaço a um interesse preponderante, como no caso da vacinação, em nome da saúde pública. Na disciplina civil da família o corpo é, por vezes, objeto de direitos. Estou em que o princípio da intangibilidade do corpo humano, que protege um interesse privado, deve dar lugar ao direito à identidade, que salvaguarda, em última análise, um interesse também público.
[…]
A Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do adolescente -, por seu turno, é categórica ao afirmar que:
‘Art.27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça’.
[…]
Lembra o impetrante que não existe lei que o obrigue a realizar o exame. Haveria, assim, uma afronta ao artigo 5 º-II da CF. Chega a afirmar que sua recusa pode ser interpretada, conforme dispõe o artigo 343 § 2O do CPC, como uma confissão. Mas, não me parece, ante a ordem jurídica da República neste final de século, que isso frustre a legítima vontade do juízo de apurar a verdade real. A Lei 8.069/90 veda qualquer restrição ao reconhecimento do estado de filiação, e é certo que a recusa significará uma restrição a tal reconhecimento. O sacrifício imposto à integridade física do paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigante, bem assim com a certeza que a prova pericial pode proporcionar a decisão do magistrado.
Em último dispositivo constitucional pertinente que o investigado diz ter sido objeto de afronta é o que tutela a intimidade, no inciso X do art. 5º . A propósito, observou o parecer do Ministério Público: ‘a afirmação, ou não, do vínculo familiar não se pode opor ao direito ao próprio recato. Assim, a dita intimidade de um não pode escudá-lo à pretensão do outro de tê-lo como gerado pelo primeiro’, e mais a Constituição impõe como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à dignidade, ao respeito, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência. Como bem ponderou o Parquet federal, no desfecho de sua manifestação, ‘não há forma mais grave de negligência para com uma pessoa do que deixar de assumir a responsabilidade de tê-la fecundado no ventre materno’.
Estas as circunstâncias, parece-me que o Tribunal a quo conduziu-se com acerto que não merece censura. Indefiro o pedido”.
Interessante notar que em 1998, o Ministro Sepúlveda Pertence, que havia acompanhado o Ministro Resek, inclusive como vencido no supra mencionado HC 71373-4/RS, também foi relator de um outro Habeas Corpus, de n º HC 76060/SC., versando igualmente sobre a obrigatoriedade do exame de DNA.
Este segundo caso tratava-se de uma situação atípica, pois um terceiro, que pretende ser considerado pai biológico de uma criança nascida na constância do casamento do paciente, quer obrigá-lo ao exame do DNA a fim de obter a prova de que o indigitado marido não seria o pai do seu filho presumido. Veja-se da Ementa do Acórdão:
“EMENTA: DNA: submissão compulsória ao fornecimento de sangue para a pesquisa do DNA: estado da questão no direito comparado: precedente do STF que libera do constrangimento o réu em ação de investigação de paternidade (HC 71.373) e o dissenso dos votos vencidos: deferimento, não obstante, do HC na espécie, em que se cuida de situação atípica na qual se pretende – de resto, apenas para obter prova de reforço – submeter ao exame do pai presumido, em processo que tem por objeto a pretensão de terceiro de ver-se declarado o pai biológico da criança nascida na constância do casamento do paciente: hipótese na qual, à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoal que, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria”.
O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, deferiu a ordem de modo a que o paciente não fosse constrangido ao exame de DNA. Mas, no seu voto, o em. Relator Sepúlveda Pertence, embora mantendo-se firme na opinião manifestada no voto do HC 71373-4/RS, observa a atipicidade deste caso, além de fazer um grande estudo de Direito Comparado.
Afirma o Relator, que é de reconhecer que, no campo da investigação da paternidade, nos ordenamentos europeus de maior trânsito entre nós – com a exceção da Alemanha – prevalece a tese que, no Tribunal reuniu a maioria. “A França, a Itália e a Espanha consideram que a recusa de submeter-se ao exame biológico não tem conseqüências senão na apreciação das provas pelo Juiz; ao passo que o direito inglês considera que a recusa a sujeitar-se à ordem judicial que ordena o exame corporal vale por obstruir a busca da prova e deve conduzir necessariamente à perda do processo”.
Continua o voto do Ministro Sepúlveda Pertence:
“A exceção mais notável na Europa ocidental é assim a Alemanha, onde vige, desde a reforma de 1938 a regra da submissão coativa das partes e das testemunhas à colheita do sangue, desde que essa medida seja necessária ao exame de filiação de uma criança.
“A inovação data do auge do nacional socialismo quando, por força da política racial do regime totalitário as pesquisas sobre as origens raciais e genéticas conheceram importância crescente[…]
O interessante, no entanto, segundo atesta jurista germânico, é que a regra da compulsoriedade do exame, não foi estigmatizada, no após-guerra, como vinculada ao pensamento nazista: ao contrário, subsistiu à democratização e até à reforma processual de 1950, justificada como decorrência do princípio inquisitório que domina, no direito alemão, os procedimentos relativos à filiação; finalmente, a legitimidade do sistema veio a reforçar-se com a afirmação pelo Tribunal Constitucional Federal, entre os direitos gerais da personalidade, do ‘direito ao conhecimento da origem genética”, do qual extraiu o imperativo constitucional da criação de uma ação autônoma declaratória da filiação genética, não sujeita à limitações da contestação da legitimidade presumida, contra o que não se pode antepor o direito à integridade corporal, em relação ao qual, já na década de 50, a Corte assentara que manifestamente não agride a colheita de uma pequena quantidade de sangue.
Similar, no ponto, ao direito alemão, é o direito norte-americano e o dos países nórdicos.
De minha parte (continua o Ministro Pertence), não obstante o respeito à maioria, formada no julgamento do HC 71.313 e o domínio do seu entendimento no direito comparado, ainda não me animo a abandonar a corrente minoritária no sentido – explícito no meu voto vencido – de que não se pode opor o mínimo ou – para usar da expressão do eminente Ministro Relator – o risível sacrifício à inviolabilidade corporal (decorrente da simples espetadela, a que alude o voto condutor do em. Ministro Marco Aurélio) – à eminência dos interesses constitucionalmente tutelados à investigação da própria paternidade.
Cuida-se aqui, como visto, de hipótese atípica, em que o processo tem por objeto a pretensão de um terceiro de ver-se declarado pai da criança gerada na constância do casamento do paciente, que assim tem por si a presunção legal da paternidade e contra quem por isso, se dirige a ação.
Não discuto aqui a questão civil da admissibilidade da demanda.
O que, entretanto, não parece resistir, que mais não seja, ao confronto do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade – de fundamental importância para o deslinde constitucional da colisão de direitos fundamentais – é que se pretenda constranger fisicamente o pai presumido ao fornecimento de uma prova de reforço contra a presunção de que é titular.
[…]
Com efeito. A revolução, na área da investigação da paternidade, da descoberta do código genético individual, em relação ao velho cotejo dos tipos sangüíneos dos envolvidos, está em que o resultado deste, se prestava apenas e eventualmente à exclusão da filiação questionada, ao passo que o DNA leva sabidamente a resultados positivos de índices probalísticos tendentes à certeza.
Segue-se daí a prescindibilidade, em regra, de ordenada coação do paciente ao exame hematológico, à busca de exclusão da sua paternidade presumida, quando a evidência positiva da alegada paternidade genética do autor da demanda pode ser investigada sem a participação do réu (é expressivo, aliás, que os autos já contenham laudo particular de análise do DNA do autor, do menor e de sua mãe.
Esse quadro, o primeiro e mais alto obstáculo constitucional à subjugação do paciente a tornar-se objeto da prova do DNA não é certamente a ofensa da colheita de material, minimamente invasiva, à sua integridade física, mas sim a afronta a sua dignidade pessoal, que, nas circunstâncias, a participação na perícia substantivaria.
Por tudo, defiro a ordem para vedar definitivamente a produção da prova questionada: é o meu voto”
Caso diferente: situação atípica:
Cuida-se de uma situação atípica na qual se pretende – de resto, apenas para obter prova de reforço – submeter a exame o pai presumido, em processo que tem por objeto a pretensão de terceiro de ver-se declarado o pai biológico de criança nascida na constância do casamento do paciente: hipótese na qual, à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoal que, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria.
A beleza do Direito, e de modo especial dos Direitos da Personalidade está em que numa mesma hipótese jurídica, como a que acabamos de descrever, a incidência de circunstâncias particulares, personalíssimas podem levar a julgamentos diferentes, embora cada julgador mantenha a sua tese genérica. Ai esta também a crescente responsabilidade do julgador em discernir nas situações mais diversas onde esta a justiça.
Ao agradecer a atenção e a paciência que me dispensaram, gostaria de afirmar que: “A tutela da personalidade não pode se conter em setores estanques, de um lado os direitos humanos ou direitos fundamentais e do outro as chamadas situações jurídicas de direito privado. A pessoa, à luz do sistema constitucional, requer proteção integrada, que supere a dicotomia direito público e direito privado e atenda à cláusula geral fixada pelo texto maior, de promoção da dignidade humana”.
Margarida Cantarelli
Desembargadora Federal – TRF 5a. Região
Professora de Direito Internacional e Direito Humanos da UFPE
Doutora em Direito