FACULDADE DE DIREITO DA CARUARU
III SIMPÓSIO DE DIREITO CONSTITUCIONAL E FILOSOFIA DO DIREITO
TEMÁRIO DO SIMPÓSIO: A ATUALIDADE DOS DIREITOS . HUMANOS FUNDAMENTAIS
TEMA DA PALESTRA: DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS
DIREITOS DA PERSONALIDADE NO NOVO CÓDIGO CIVIL
CAMPUS DA FACULDADE DE DIREITO DE CARUARU
25 DE OUTUBRO DE 2001 -ÀS 20:00
EXPOSITORA: PROFESSORA MARGARIDA CANTARELLI
Sr. Presidente da Mesa de Trabalhos, Senhor Professor Paulo Muniz Lopes, Coordenador Geral do Simpósio, caros colegas professores,
Prezados participantes
Senhoras e Senhores,
Gostaria, inicialmente, de parabenizar e agradecer aos Coordenadores deste Evento, pelo honroso convite que me foi formulado, para participar deste Simpósio, o III realizado sobre Direito Constitucional e Filosofia do Direito. Venho com muita satisfação a esta Faculdade onde o esforço de tantos tem mantido o ensino do Direito nesta acolhedora cidade de Caruaru, como chama irradiadora para toda a Região. O papel da Faculdade de Direito de Caruaru é de importância remarcável na formação de gerações, jovens profissionais, que farão do Direito e da Justiça as verdadeiras colunas para a construção de um mundo melhor.
Quero também parabenizá-los pela justa homenagem que prestam ao Professor Glaucio Veiga, mestre de tantas gerações na Faculdade de Direito do Recife, na graduação e na pós- graduação. Doutor em Direito e Livre Docente, dedicando-se de modo especial ao Direito Econômico e ao Direito Empresarial. Advogado de renomada banca e grandes clientes. Autor de vasta o bra jurídica, como
também da História da Faculdade de Direito do Recife que as suas próprias expensas vem publicando e já está no oitavo volume. Por estas e muitas outras razões o Prof. Glaucio Veiga é digno da homenagem aqui prestada. .
Louvável iniciativa de escolher como temário para
este Simpósio: “os Direitos Humanos e Fundamentais”. Nunca este assunto esteve tão atual, especialmente neste dramático momento que atravessa a humanidade, cheio de perplexidade, de preocupação, de medo mesmo; onde as idéias e os conceitos se confundem, fazendo-se mais do que nunca necessário que a voz do Direito se faça ouvir. Pois só através dele, se abrirá o caminho para o reencontro da P AZ, que é o anseio de todos os justos.
O tema que me coube, nesta noite, “Direitos Fundamentais e os Direitos da Personalidade no novo Código Civil” mescla enfoques de uma mesma realidade, qual seja, os direitos humanos, da pessoa, como tal: o Constitucional, o Civil, o Internacional, o Penal, sem falar, por óbvio, nos aspectos éticos que devem traspassar todo o universo do Direito. E essas visões ora complementam-se, ora superpõem-se, mas somadas, constroem o grande momento da humanidade que é o da valorização do ser humano.
Os direitos da personalidade que agora aparecem como um Capítulo do novo Código Civil estão mais que umbilicalmente ligados aos Direitos Humanos fundamentais, porque são, eles próprios, parte destes Direitos.
Na esteira de Miguel Reale, também entendo que duas leis são fundamentais no sistema jurídico de um país: a Constituição e o Código Civil. A Constituição estabelece a estrutura da sociedade política ( as atribuições do Estado que devem estar voltadas em função do ser humano e da sociedade ), o Código Civil estabelece a estrutura da sociedade civil (refere-se à pessoa humana e ]à sociedade enquanto tais) abrangendo suas atividades essenciais. O Código Civil cuida de todos os atos da nossa vida, até mesmo antes dela (quando protege os direitos do nascituro) e também depois dela ( quando regulamenta a sucessão, herança, etc. ).
A inclusão de um capítulo relativo aos Direitos da Personalidade no novo Código Civil foi por demais oportuno,. vendo como mais uma conquista no campo dos direitos fundamentais. Todavia, devo ressalvar que o Código traz alguns dos Direitos da Personalidade, pois eles são muito mais numerosos do que comportam os dez artigos ( do art. 11 ao art. 21 ) que lhe foram consagrados.
Mas voltemo-nos aos aspectos históricos ou aos movimentos e documentos que calçaram a caminhada dos Direitos Humanos Fundamentais ao longo do tempo. Deve-se mencionar que, mesmo antes das grandes Declarações de Direitos das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), já eram reconhecidos alguns dos direitos naturais e inalienáveis do homem.
Vejo na fala da personagem Antígona, de Sófocles, o reconhecimento de direitos naturais, imanentes à pessoa – o direito a sepultar os seus mortos. Quando, enfrentando a ira de Creonte, por ter dado sepultura ao seu irmão contrariando édito que proibia tal ação, arrostou-lhe: “Essa [lei] não foi Zeus que a promulgou, nem a Justiça, . estabeleceu tais leis para os homens. E entendi que teus éditos não tinham tal poder que um mortal pudesse sobrelevar os preceitos não escritos, mas imutáveis dos deuses. Porque esses não são de agora, nem de ontem, mas vigoram sempre, e ninguém sabe quando surgiram” 1
Muitas seriam as obras literárias onde poderíamos identificar através da ficção, princípios e direitos que estavam insertos no âmago da sociedade e de cada pessoa.
Mas, fiquemos nos textos jurídicos. Alguns vêem a nascente dos Direitos Humanos já na Magna Carta, do rei João sem Terra, de 1215, na Inglaterra. Realmente há vários dispositivos que podem integrar qualquer texto moderno. Citarei apenas um, o art. 40, que diz:
“A ninguém venderemos, a ninguém negaremos ou retardaremos direito ou justiça”
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1Sófocles, Antígona. Versão do grego de Maria Helena Rocha Pereira Fialho. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1997 P45
Ainda podem ser vistos como antecedentes das duas
Declarações: A Petição de Direitos (1627), O Ato de Habeas Corpus (1640), Declaração de Direitos (1689 – Bill of Rights) todos na Inglaterra.
Mas, na realidade foram os dois textos de Declarações – americana e francesa – que deram a forma mais consolidada dos ideais iluministas, e, de modo particular a Segunda que serviu como ideário a vários movimentos liberais, especialmente na Europa.
A “Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão”, de 26 de agosto de 1789, é um texto de apenas dezessete artigos, inicia estabelecendo no art. 1º, que “os homens nascem livre e iguais em direitos”. Reconheceu a soberania popular, secularizando o poder, quando afirmou que “ toda soberania baseia-se na nação. Nenhum grupo, nem indivíduo pode exercer autoridade que não emane da Nação” Dá a definição de liberdade: “a liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudica o outro; assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outro limite senão os que garantam aos demais membros da sociedade os mesmos direitos. Esses limites só podem ser determinados pela lei”. Proíbe a prisão arbitrária, estabelece os princípios da legalidade e da presunção da inocência; assegura a liberdade de pensamento, de expressão, de religião e o direito de propriedade. Reconhece o sistema de controle popular dos atos da administração pública.
O Século XIX alcançou algumas conquistas, como as Convenções relativas ao tráfico de escravos e a proibição da escravidão; foi criada a Cruz Vermelha Internacional e Convenções sobre leis de guerra.
Mas, somente terminada a 2ª Guerra Mundial com a celebração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, resposta ao clamor da sociedade internacional após as atrocidades cometidas durante aquele conflito, é que foi acelerado, no âmbito internacional o processo para a celebração de inúmeros documentos relativos aos Direitos Humanos, quer sob a égide das Nações Unidas, quer promovido pelos Organismos especializados ou regionais, como a
OIT , o Conselho da Europa e a Organização dos Estados Americanos, entre outros.
Promovidos pelas Nações Unidas -que ontem celebrou seus 56 anos de existência, podemos contabilizar como saldo positivo do seu trabalho: Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966); Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); Convenção contra a Tortura (1984); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); Convenção sobre a eliminação de discriminação racial (1965) ; Convenção contra a eliminação das discriminações contra as mulheres (1979); Convenção sobre refugiados. No âmbito do Trabalho, sob os auspícios da OIT, temos a Convenção Liberdade Sindical (1948); Convenção sobre igualdade de remuneração (1951) entre muitas outras.
O continente europeu é o que mais tem avançado, o com a Convenção Européia já no seu 11º Protocolo sempre ampliando direitos e garantias. O continente americano tem o Pacto de San José, 1969, com a Corte lnteramericana de Direitos Humanos, presidida pelo brasileiro A A Cançado Trindade.
Os doutrinadores costumam classificar os Direitos Humanos em três categorias, ou três gerações, relacionadas com muita felicidade por Karel Vasak2 aos ideais expressos pela Revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
Os direitos de 1ª geração, são os direitos políticos e civis, correspondem ao ideal de liberdade preconizado pela Revolução francesa “têm a base constituída dos valores fundamentais e invioláveis do individualismo que a pessoa encama, aos quais devem se subordinar os interesses do poder, em obediência à barreira caracterizada como espaço sagrado da liberdade”3: liberdade de expressão, liberdade de religião, liberdade de locomoção, liberdade de consciência; sigilo de correspondência, respeito ao domicílio e à intimidade. Nessa geração de Direitos, o Estado deve se abster tendo como papel apenas garantir ao indivíduo o pleno exercício dos seus direitos.
2 Apud Oliveira Edmundo.
3 Oliveira, Edmundo.Direitos Humanos. Ver. Consulex, ano V, vol. 100, março de 2001,
p.25.
Eles aparecem com clareza no Pacto de Direitos Civis de Políticos das Nações Unidas, de 1966, a que já me referi.
A segunda geração( de direitos) reporta-se ao ideal de igualdade, são os direitos econômicos e sociais. São “direitos derivados que se erguem da contínua intervenção do Estado para a promoção de serviços ou auxílios consideráveis, no campo dos direitos econômicos e sociais que incluem: direito à educação, à saúde, ao trabalho, à segurança, à qualidade de vida decente”4. Assim, o Estado passa da função de proteger o cidadão, dentro da noção de estado mínimo, para a noção de Estado de Providência, ~ objetivando i, proporcionar-lhe também o bem-estar.
Esses estão claramente presentes no Pacto de Direitos Sociais, Econômicos e culturais das Nações Unidas, igualmente de 1966.
A terceira geração dos Direitos Humanos diz respeito ao ideal de fraternidade preconizado pela Revolução – francesa. “Essa categoria foi concebida nos últimos anos, para se referir aos chamados direitos globais, que incluem: direito à paz, à solidariedade, ao desenvolvimento e à integração das culturas “s.
Já se começa a falar nos direitos da 4ª geração, como o dom de viver com a liberdade de usufruir dos bens inerentes ao patrimônio comum da humanidade, como os fundos dos mares ou o espaço sideral, entre outros.
Os direitos humanos de primeira e de segunda geração hoje praticamente integram os textos constitucionais modernos dos Estados democráticos de Direito. Igualmente, muitos dos tratados e convenções, antes citados e celebrados sob os auspícios das Nações Unidas e outras organizações internacionais, foram ratificados pelos seus Estados membros e integram os respectivos ordenamentos jurídicos. É bem verdade que alguns Estados levaram muitos anos para ratificá-los, como o Brasil que só mais recentemente (década de noventa) veio a faze-Io por motivos de natureza política.
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4 Oliveira, Edmundo. Op. cit.p.26
5 Oliveira Edmundo. Op. cit. p.26
Nas Constituições Brasileiras, em todos elas, desde a Monárquica até a Constituição Cidadã, há um título, um capítulo ou alguns artigos, dedicados aos direitos do cidadão. Assim, na Constituição de 1824, o Título 8 o, trata: “Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros”, especificamente no art. 179. O “caput” do referido artigo, diz: ” A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império”. Em trinta e cinco incisos estão especificados os direitos garantidos, bem semelhantes, faça-se justiça a uma Constituição outorgada, à Declaração francesa de 1789.
Na Constituição Republicana de 1891, o Título IV, Seção II, denomina-se “Declaração de Direitos”, a partir do art. 72 e seguintes, tratando basicamente dos direitos civis e políticos, bem de acordo com o pensamento individualista da época.
A Constituição de 1934, aos moldes da Constituição de Weimar , além do Capítulo “Dos Direitos e das Garantias – Individuais”, introduz os direitos os econômicos e sociais, no Título: Da Ordem Econômica e Social. Aí aparecem os preceitos que a legislação do trabalho deverá seguir, além de outros que visem a melhorar as condições do trabalhador, trata de: igualdade de salário, salário mínimo, jornada de trabalho de oito horas; repouso semanal, férias anuais remuneradas, indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa; licença gestante; reconhecimento das convenções coletivas de trabalho, entre várias regras relativas à educação, saúde, assistência às famílias, de cunho eminentemente social.
Já que estamos numa Casa de Ensino, a Constituição de 1934, no art. 155, consagrava: é garantida a liberdade de cátedra.
A Constituição de 1937, conhecida com Polaca, também tem suas normas relativas aos Direitos e Garantias Individuais, ordem econômica e social. Todavia, as exceções, põe por terra as conquistas formalmente mantidas e oriundas na Constituição de 34. Admite a pena de morte (art. 132, 13), controle à manifestação de pensamento, com censura à imprensa e, entre outros, a exclusão do dispositivo relativo à liberdade de cátedra. O art. 139 rezava, ” a greve
e O lock-out são declarados recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatíveis com os superiores interesses da produção nacional”.
Com a Constituição de 1946, consolidou-se a
redemocratização do Brasil, e no modelo das Constituições européias do após guerra, restabeleceu os direitos e garantias do cidadão, de 1ª e 2ª gerações (inclusive a liberdade de cátedra), retirando as restrições da Polaca.
Após 1964, com o rompimento da ordem constitucional, fez-se necessário uma nova Constituição, veio a de 1967 e logo a Emenda Constitucional n. 1/69. Ambas mantiveram os capítulos relativos aos direitos individuais, todavia muitos dos direitos sociais foram remetidos a normas infraconstitucionais, sem falar que os Atos Institucionais afetaram do modo profundo especialmente os direitos políticos.
A Constituição de 1988, cognominada de Constituição cidadã, demonstrou o relevo que os constituintes desejaram dar aos Direitos Humanos, até na colocação dentro do texto. Já no Título II, logo em seguida aos Princípios Fundamentais, trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. O Capítulo I -“Dos Direitos e Deveres Individuais e coletivos”, no art. 5 e seus setenta e sete incisos, mais dois parágrafos, encontramos com bastante argueza, os direitos políticos e civis –lª geração. Inclusive, o § 2º, cuida: “Os direitos e garantias, expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Estou entre os que dão interpretação a este artigo no sentido de, em razão dele, estão colocados em nível constitucional, todos os Tratados, Convenções, Pactos, Acordos que o Brasil tenha ratificado em matéria de Direitos Humanos. Em que pese o entendimento de que os Tratados Internacionais se equiparam hierarquicamente à lei, em se tratando de Direitos Humanos, repito, dou a interpretação mais abrangente, considerando-os no mesmo nível das normas constitucionais.
O Capítulo 11, do mesmo Título, reservou-o o constituinte aos “Direitos Sociais”, do art. 6 ° ao art. 11. Cuida no art.7 ° e seus trinta e quatro incisos dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de ter reservado Capítulos especiais para educação, saúde, moradia, previdência social, entre outros direitos sociais.
Agora vem o novo Código Civil destinando um Capítulo aos Direitos da Personalidade. Vejo positivamente que a lei civil venha reger algumas situações que os cidadãos já levavam aos Tribunais invocando diretamente os dispositivos da própria Constituição, como é o caso do dano moral. Repito que, se alguma ressalva faço é a de que contempla apenas alguns dos direitos da personalidade, pois sabemos que eles são bem mais numerosos do que comportam os dez artigos ( do art.11 ao art.21 ) que lhes foram consagrados.
Mas, é necessário que comecemos com uma breve
visão sobre a própria personalidade, ou o direito à personalidade. Como está no Código atual, no art. 2º -Todo homem é capaz de direitos e obrigações na vida civil.
No Projeto de Lei 634-D, de 1975, aparecia o artigo – numa versão, quase idêntica ao Código atual – “todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”.
Dentre as Emendas apresentadas, parece-me que a de n.367, propôs a substituição da expressão ” homem, e oferecia a seguinte redação: “ art. 1º Todo ser humano é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”. Em vez da palavra homem, utilizaria a expressão: ser humano.
Finalmente veio a prevalecer a Emenda com alteração ao art. 1º : TODA PESSOA é capaz de direitos e deveres na ordem civil. E, diz o art. 2 º: A personalidade civil DA PESSOA começa com o nascimento com vida…
Faço esta observação inicial, aparentemente supérflua, para explicar a este jovem auditório, que existe todo um movimento internacional no sentido de mudar a expressão Direitos do Homem, Direitos Humanos, Direitos do ser humano para Direitos da Pessoa. Assim, o novo Código Civil já viria com a terminologia que os
referidos movimentos têm, internacionalmente, procurado usar. É evidente que as denominações anteriores espelhavam a sociedade de cada época.
E por falar em internacional, quero também lembrar o que está consagrado no art. 6 o, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, das Nações Unidas, de 1948:
“Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica “.
Contestado o caráter obrigatório da Declaração Universal, por alguns dos Estados Membros da ONU, foi negociado o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1966, que, no seu art. 16, mais ou menos repete o dispositivo, dizendo:
“Toda e qualquer pessoa tem direito ao reconhecimento, em qualquer lugar, da sua personalidade jurídica “.
Qual seria o significado desse artigo – dizer que as pessoas não eram coisas? Torna-se mais compreensível se colocarmos no tempo, final da 2″ Guerra Mundial, onde as atrocidades praticadas quase negavam a condição de pessoa a determinados seres humanos, além da persistência da escravidão em várias partes do mundo.
Como se não bastasse o dispositivo mencionado, a Declaração Universal de 1948, reforça-o com o art. 4°:
” Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão: a escravatura e o tráfego dos escravos, sob todas as formas, são proibidos “.
No Pacto Internacional de Direitos Civis, da ONU de 1966, aparece no art. 8 º , bem mais detalhado – a proibição da escravidão, o tráfico de escravos e uma melhor definição de trabalhos forçados.
Era preciso que se afirmasse, repito, o que pode hoje parecer óbvio – o ser humano não é coisa, mas é gente, é pessoa, e, por ser PESSOA tem direitos e obrigações. Entenda-se, que não se
tem direito a ser PESSOA, SE É PESSOA, tem-se personalidade. E, em
decorrência dessa realidade, é que são reconhecidos os direitos e as
obrigações.
Gustavo Tepedino, no seu livro “Temas de Direito Civil”, no capítulo sobre ” A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro”, lembra muito bem, que “poucos temas jurídicos revelam maiores dificuldades conceituais quanto os direitos da personalidade. De um lado, os avanços da tecnologia e dos agrupamentos urbanos expõem a pessoa humana a novas situações que desafiam o ordenamento jurídico, reclamando disciplina; de outro lado, a doutrina parece buscar em paradigmas do passado as bases para as soluções das controvérsias que, geradas na sociedade contemporânea, não se ajustam aos modelos nos quais se pretende enquadrá-las .”6
Portanto, compreende-se sob a denominação de direitos da personalidade, os direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade 7
O Código Civil Português, no art. 70 , que trago à guisa de exemplo, protege todos os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral através, nomeadamente, da cominação de responsabilidade civil e da concessão de providências cíveis adequadas às circunstâncias do caso e destinadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa já cometidas. Todavia os “direitos previstos são afinal direitos de certo modo marginais: direito ao nome; a cartas – missivas; direito à imagem; direito à reserva sobre a intimidade da vida privada. Não estão compreendidas as figuras mais significativas, como o direito à vida, à honra ou à liberdade”, afirma o Prof. Oliveira Ascensão8
Sobre o mencionado artigo Capelo de Souza faz comentários perfeitamente cabíveis à nossa situação brasileira, quando diz: “esse tipo de tutela geral da personalidade, embora com características peculiares na nossa ordem jurídica (portuguesa), insere-
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6 Tepedino, Gustavo. Temas de Direito Civil.Rio de Janeiro: Renovar. 1999,p.23/24
7 Tepedino. Op. cit. mesma página.
8 Ascensão, J. Oliveira. Os Direitos de Personalidade no Código Civil Brasileiro, Revista Forense, volume 342, p 124.
se na longa e acidentada evolução das relações sociais, econômicas e jurídicas entre os homens e entre estes e os ditames da sociedade no seu conjunto, particularmente, no que respeita ao reconhecimento igualitário da personalidade e da capacidade jurídica de todos os homens, ao âmbito da permissibilidade jurídica das formas ou dos modos de expressão da personalidade humana individualizada e à adoção de mecanismos jurídicos-processuais garantidores dos direitos da personalidade. Evolução essa que não se encerrou, que se encontra numa fase de maturação e de transformação e que importa projetar no futuro, face, v. g., às consequências no plano jurídico da utilização pelas sociedades contemporâneas de sofisticada e ambivalente aparelhagem tecnológica, que cada vez mais planetariza a sociedade humana a nível quase de uma aldeia global e lhe introduz ritmos e rupturas diversas, questionando inclusivemente o perfil biológico do homem e a sua inserção ecológica. Por tudo isso a análise da dinâmica e do sentido de tal evolução, nomeadamente ao nível das instituições jurídicas, ajudar-nos-á a situar e a perspectivar melhor os problemas emergentes da tutela geral da personalidade no nosso actual ordenamento jurídico”9
Reconheçamos que a preocupação com a pessoa humana, como já me referi – e não vou fazer digressões pela história política nem das idéias, surgida com as declarações de direitos, se deu a partir da necessidade de proteger o cidadão contra o arbítrio do Estado totalitário; limitava-se, por isso mesmo, à tutela conferida pelo direito público à integridade física, e a outras garantias políticas. Não existia nas relações de direito privado um sistema mais aperfeiçoado ou detalhado de proteção fora dos limites dos tipos penais. Assim, a lesão à integridade das pessoas era matéria do direito público, que asseguraria, com o direito penal, a repressão aos delitos – contra a pessoas (vida, integridade física) contra a honra, contra, os costumes, etc.
“Na medida em que a pessoa humana torna-se objeto de tutela também nas relações de direito de direito privado, com o estabelecimento de direitos subjetivos para a tutela de valores atinentes à personalidade, trataram os civilistas de definir a sua configuração dogmática […] cogita-se,nesta esteira, que tais direitos
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9 Capelo de Sousa, Rabindranath V .3 O Direito Geral da Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora,
1995., p. 27.
pertencem à categoria dos direitos privados, exatamente porque “a vida, a integridade física, a honra, a liberdade, satisfazem aspirações e necessidade própria do indivíduo em si mesmo considerado, e, inserem-se, portanto, na esfera da utilitas privada”10.
Portanto, ao lado de tais direitos subjetivos privados, convivem os direitos subjetivos públicos, os aqui já chamados direitos civis (Direitos Humanos de I” Geração ), os quais atentariam às aspirações do indivíduo em face do Estado, para protegê-lo das opressões oriundas da coletividade estatal 11.
Daí considerar-se que “os direitos humanos são, em princípio, os mesmos da personalidade; mas, deve-se entender que quando se fala dos direitos humanos ( enquanto direitos civis – 1 ” geração ), referimo-nos aos direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando desejamos protegê-los contra as arbitrariedades do Estado. Quando examinamos o direito da personalidade, sem dúvidas, nos encontramos diante dos mesmos direitos, porém sob o ângulo do direito privado, ou seja, relações entre. particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados por outras pessoasl2, até mesmo pessoas de Direito Público.
Assim, iremos encontrar sob a égide de direitos humanos dispersos e difundidos nos vários ramos do Direito, os direitos da personalidade. Pois nem pensem que eles se limitam aos dez artigos do novo Código Civil.
Os Direitos da Personalidade possuem como características: a generalidade (ou seja, são concedidos a todos ), a extrapatrimonialidade (insuscetibilidade de uma avaliação econômica, ainda que sua lesão gere efeitos econômicos ), o caráter absoluto ( oponíveis erga omnes, impondo-se à coletividade respeitá-los), a indisponibilidade (irrenunciáveis e impenhoráveis ), a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a intransmissibilidade (gera sentido ambíguo, porque personalíssimo, mesmo extinguindo-se com a morte do titular
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10Tepedino, op.cit.p.32
11Adriano de Cupis. Idiritti della personalità,cit.p.27
12”Fábio de Mattia “Direitos da Personalidade II” in Enciclopédia Saraiva, vol. 28
São Paulo: Saraiva, 1979, p. 150 (invoca em seu favor Orlando Gomes)
muitos dos seus interesses mentem-se tutelados mesmo depois
dela.
O art. 11 do novo Código Civil estabeleceu:”com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitações voluntárias.
A meu sentir, embora o novo Projeto não traga todas as características desses direitos, nem por isso elas deixam de existir e continuam presentes porque são da essência do próprio direito que visam a proteger .
Da mesma forma, com relação à classificação, muitos foram os doutrinadores – grandes juristas, como Pontes de Miranda, Ferrara, Antonio Chaves, Limogi França, Orlando Gomes, que procuraram agrupa-los, procurando dar-Ihes um cunho lógico, didático, toma-los mais compreensíveis, até porque, pela natureza desses direitos, eles se voltam para TODAS AS PESSOAS, e, por conseqüência, devem ser bem claros e conhecidos.
Dentre tantas classificações disponíveis, Tepedino, toma por empréstimo, a proposta por Orlando Gomes, distinguindo os Direitos da Personalidade em dois grandes grupos: os direitos à integridade física, nesse grupo compreendendo-se o direito à vida, o direito ao próprio corpo (que se subdivide em direito ao corpo inteiro, direito a partes do corpo e o direito ao próprio cadáver).
O novo Código Civil destaca três artigos que tratam do direito à integridade física:
Art.13: Salvo exigência médica, os atos de disposição do próprio corpo são defeso quando importarem diminuição permanente de integridade física, ou contrariarem os bons costumes..
Parágrafo único: Admitir-se-ão portais atos para fins de estabelecida em lei especial.
Art.14: É válida, como objetivo científico ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo no todo ou em parte para depois da morte.
Parágrafo único: o ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
Art. 15:Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos
estabelece no art. 3º: Todo indivíduo tem direito à vida, a liberdade e à segurança pessoal.
A Constituição Federal, no art. 5º “caput”, protege o
direito à vida e, de modo indireto à integridade física, quando afirma no art. 5º, III, ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante.
Protege, também, quando o Código Penal pune como crime contra a pessoa, o homicídio, as lesões corporais, entre outros tipos penais que estão contidos em leis especiais.
Ou o comando do art. 199 § 4º, CF, quando estabelece: “ a lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para
fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”.
No segundo grupo trata dos direitos à integridade moral, quais sejam, direito à honra, à liberdade, ao recato, à imagem, ao nome e direito moral do autor.
No novo Código os art. 16: Todas as pessoas têm direito ao nome, nele compreendido o prenome e o nome patronímico.
Art. 17: o nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou represent6açõies que a exponha ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.
Art. 18: Sem autorização, não se pode usar o nome alheio, em propaganda comercial:
Art.19: O Peseudônimo adotado vara atividades licitas goza da Proteção que se dá ao nome;
Art.20: Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão de palavra. ou a publicação, exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra. A boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais
Parágrafo único: Em se tratando de morto ou de ausente são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21: A vida privada da pessoa física é inviolável e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
A Constituição Federal contempla muitos desses
direitos, direta ou indiretamente. E direta, quando diz no art. 5º,X : “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”; ou no inciso XI: a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, pôr determinação judicial; ou, ainda, no inciso XII: é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
Na Declaração de Direitos Humanos da ONU, o
Art. 12, estabelece:
“Ninguém sofrerá intromissão arbitrária na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda l pessoa tem o direito a proteção da lei ”
Art.19: O Peseudônimo adotado vara atividades lic JJroteção gue se dá ao nome:
Art.20 Salvo se autorizadas. ou se necessárias à admii iustiça ou à manutenção da ordem eública. a divulf!açã
transmissão de valavra. ou avublicação. exposiçu da imagem de uma eessoa Qoderão ser proibidas. a s
e sem er~juizo da indenização que couber. se lhe atingir
boa ama ou a res eitabilidade ou se destinarem a ms comerciais Pará a o único: Em se tratando de morto ou de ausente são arte~ le.R”itimas Qara reguerer essa proteção o côt!iu1!e. os asce descendentes.
Art. 21: A vida rivada da essoa lsica é inviolável e o .uiz í requerimento do interessado. adotará asprovidênc
ara im edir ou azer cessar ato contrário a esta norma.
A Constituição Federal contempla muitos desse~ , l)
direitos, direta ou indiretamente. E direta, quando diz no art. 5 , X
“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem da~ pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material 01 moral decorrente de sua violação”; ou no inciso XI: a casa é asil( inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar se” consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito oz desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, pôr determinaçã( judicial; ou, ainda, no inciso XII: é inviolável o sigilo dí correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e da~ comunicações, salvo no último caso, por ordem judicial, nas hipótese~ e naforma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal Ol instrução processual penal”.
Na Declaração de Direitos Humanos da ONU, ( art.12, estabelece:
“Ninguém sofrerá intromissão arbitrária na sua vida privada, na SUl família, no seu domicílio ou na sua correspondência, J’1em ataques c sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda l pessoa tem o direito a proteção da lei ”
deparamos de um dia para outro com uma possibilidade científica que não tinha sido sequer imaginada. Daí, todos os esdobramentos bioéticos e biojurídicos (biodireito) quando ainda não temos uma resposta para as situações que venham a surgir. É preciso estudar, refletir, socorrer-se de outras ciências.
Assim, na impossibilidade de examinarmos cada um dos direitos da personalidade inseridos no novo Código – isso seria conversa para muitas outras oportunidades -, escolhi alguns casos referenciais, que, a meu sentir, têm relevante interesse, para uma reflexão e envolve, ao mesmo tempo, o direito à integridade fisica, o direito à intimidade, e alguns aspectos conexos :
Trata-se da obrigatoriedade ou não de ser um indivíduo submetido a teste de DNA, isto é, a possibilidade de se exigir do réu, na ação de investigação de paternidade, que se submeta ao exame de DNA, mesmo contra a sua vontade.
Vê-se, com freqüência, pela mídia, pessoas famosas se submetendo a tais exames, alguns com resultados positivos, o caso Pelé e sua filha; outros têm resultados negativos, como o relativo a uma possível filha Ayrton Sena. Artistas, políticos, pessoas famosas ou pessoas comuns, poderão defrontarem-se como uma situação similar, vir a ser compelido a fazer o exame de DNA .O tema é relevante porque do outro lado da causa está a busca da identificação da verdadeira paternidade que também é um direito do pessoa, e está expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente.
É claro que a grande maioria dos casos é resolvida no âmbito da Justiça dos Estados, mas trouxe, à guisa de reflexão, dois julgamento, que foram submetidos ao Supremo Tribunal Federal: o Habeas Corpus -HC 71373-4-RS, julgado em 10 de novembro de 1994 (DJU 22.11.96, p.45.686) e o Habeas Corpus -HC 76060/SC, julgado em 31 de março de 1998 (DJ 15/05/1998).
No primeiro caso, tendo em vista decisão do Juiz monocrático do RS, que determinou a realização do exame, confirmada pelo Tribunal de Justiça daquele Estado, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, manifestou-se pela
concessão da ordem, portanto, contrariamente à obrigatoriedade do exame contra vontade do réu.
O Relator para o Acórdão foi o Ministro Marco Aurélio, vencido o relator do Processo, Ministro Francisco Resek, cuja Ementa transcrevo:
“INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE -EXAME DNA -CONDUÇÃO DO RÉU “DEBAIXO DE VARA “. Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explicitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução especifica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, ” debaixo de vara “, para a coleta do material indispensável à feitura do exame de DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico -instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos “.
Ficaram vencidos os Ministros, Relator Francisco Resek, Ilmar Galvão, Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence, vencedores, os Ministros Marco Aurélio, Moreira Alves, Néri da Silveira, Sydney Sanches e Celso de Mello.
Em que pese ter sido vencido, o voto do em. Ministro Francisco Resek, traz colocações que merecem reflexões sobre o confronto entre o direito à intimidade do investigado e o direito à filiação verdadeira do investigante. É de se destacar vários trechos do seu voto que contêm uma exata visão jurídica, um especial sentimento humano e, pelo estilo, também, uma bela peça literária. Diz ele:
“Observo, de inicio, ser de inteira lógica, embora nãc cotidiano, que do foro civel promane constrangimento ilegal corrigivel mediante habeas corpus. No caso em exame, cuida-se de saber se o investigado, na ação de verificação de paternidade, pode ser forçado, à vista de sua recusa,a se submeter a certa prova pericial, o exame hematológico. O tema ganha relevo seja por causa do advento, no campo da medicina legal, do exame de determinação de paternidade
pelo método do DNA ( ácido desoxirribonucléico}, seja à contada da crescente preocupação do legislador e dos tribunais com os direitos da criança e do adolescente.
[…]
O peso desse novo instrumento pericial ,”revela-se em sua insignificante margem de erro, o que leva alguns especialistas a afirmar que os teste de paternidade pelo exame do DNA […] ostenta confiabilidade superior a 99,99%. A certeza cientifica proporcionada pela nova técnica oferece ao julgador um elemento sólido para a construção da verdade.
Do outro lado, observa-se uma superlativa atenção do legislador, a partir da Carta de 1988, para com os direitos da criança e do adolescente. As inovações constitucionais no capítulo da família, da criança, do adolescente e do idoso deram nova conformação ao direito da criança, de que é exemplo o artigo 227 da Carta Política. A legislação infraconstitucional tem acompanhado, por igual, os avanços verificados neste exato domínio. Assim, a Lei 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto de Criança e do Adolescente,. a Lei 8.560/92, que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, entre outras.
O que temos agora em mesa é a questão de saber qual o direito que deve preponderar nas demandas de verificação de paternidade: o da criança à sua real (e não apenas presumida} identidade, ou o do indigitado pai à sua intangibilidade física.
[…]
É certo ainda, como ponderou o Ministério Público Federal, que a recusa do investigado implica descumprimento de um ” dever processual de colaboração normativamente posto no artigo 339 do CPC, verbis:
Art. 339: Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descumprimento da verdade “.
Sustenta, mais, o Subprocurador-Geral Cláudio Fonteles:
‘Nem se queira argumentar, em paralelo com o Direito Processual Penal que, neste, o direito de calar tem previsão
constitucional (art. 5º, LXIII), porque é repudiada a auto incriminação
cogente.
[…]
Se, todavia, o conflito põe-se entre o filho investigante e o pai investigado a que se estabeleça, ou não, o Vínculo Familiar – perspectiva típica do processo civil – ninguém pode furtar-se à colaboração na definição deste vínculo’.
Nesta trilha, vale destacar que o direito ao próprio corpo não é absoluto ou ilimitado. Por vezes a incolumidade corporal deve ceder espaço a um interesse preponderante como no caso da vacinação, em nome da saúde pública. Na disciplina civil da família o corpo é, por vezes, objeto de direitos. Estou em que o princípio da intangibilidade do corpo humano, que protege um interesse privado, deve dar lugar ao direito à identidade, que salvaguarda, em última análise, um interesse também público.
[…]
A Lei 8.069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente -, por seu turno, é categórica ao afirmar que:
Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação e direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça’.
[…]
Lembra o impetrante que não existe lei que o obrigue a realizar o exame. Haveria, assim, uma afronta ao artigo 5º II da CF. Chega a afirmar que sua recusa pode ser interpretada, conforme dispõe o artigo 343 § 2º do CPC, como uma confissão. Mas, não me parece, ante a ordem jurídica da República neste final de século, que Isso fruste a legítima vontade do juízo de apurar a verdade real. A Lei 8.069/90 veda qualquer restrição ao reconhecimento do estado de filiação, e é certo que a recusa significará uma restrição a tal reconhecimento. O sacrifício imposto à integridade física do paciente é risível quando confrontado com o interesse do investigantte, bem assim com a certeza que a prova pericial pode proporcionar a decisão do magistrado.
Em último dispositivo constitucional pertinente que o investigado diz ter sido objeto de afronta é o que tutela a intimidade, no inciso X do art. 5 . A propósito, observou o parecer do Ministério Público: ‘a afirmação, ou não, do vínculo familiar não se pode opor ao direito ao próprio recato. Assim, a dita intimidade de um não pode escudá-Io à pretensão do outro de tê-lo como gerado pelo primeiro’, e mais a Constituição impõe como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o direito à dignidade, ao respeito, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência. Como bem ponderou o Parquet federal, no desfecho de sua manifestação, ‘não há forma mais grave de negligência para com uma pessoa do que deixar de assumir a responsabilidade de tê-la fecundado no ventre materno ‘.
Estas as circunstâncias, parece-me que o Tribunal a quo conduziu-se com acerto que não merece censura. Indefiro o pedido “.
Interessante notar que em 1998, o Ministro Sepúlveda Pertence, que havia acompanhado o Ministro Resek inclusive como vencido no supra mencionado HC 71373-4/RS, também foi relator de um outro Habeas Corpus, de n o HC 76060/SC., versando igualmente sobre a obrigatoriedade do exame de DNA.
Este segundo caso tratava-se de uma situação atípica, pois um terceiro, que pretende ser considerado pai biológico de uma criança nascida na constância do casamento do paciente, que obrigá-lo ao exame do DNA a fim de obter a prova de que o indigitado marido não seria o pai do seu filho presumido. Veja-se da Ementa do Acórdão:
“EMENTA: DNA: submissão compulsória ao fornecimento dé sangue para a pesquisa do DNA: estado da questão no direito comparado: precedente do STF que libera do constrangimento o réu em ação de investigação de paternidade (HC 71.373) e o dissenso dos votos vencidos: deferimento, não obstante, do HC na espécie, em que se cuida de situação atípica na qual se pretende – de resto, apenas para obter prova de reforço – submeter ao exame do pai presumido em processo que tem por objeto a pretensão de terceiro de ver-se declarado o pai biológico da criança nascida na constância do casamento do paciente: hipótese na qual, à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à
dignidade pessoal que, nas circunstânclas, a sua participação na perícia substantivaria “.
O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, deferiu a ordem de modo a que o paciente não fosse constrangido ao exame de DNA. Mas, no seu voto, o em. Relator Sepúlveda Pertence, embora mantendo-se firme na opinião manifestada no voto do HC 71373-4/RS, observa a atipicidade deste caso, além de fazer um grande estudo de Direito Comparado.
Afirma o Relator, que é de reconhecer que, no campo da investigação da paternidade, nos ordenamentos europeus de maior trânsito entre nós – com a exceção da Alemanha – prevalece a tese que, no Tribunal reuniu a maioria. ” A França, a Itália e a Espanha consideram que a recusa de submeter-se ao exame biológico não tem conseqüências senão na apreciação das provas pelo Juiz; ao passo que o direito inglês considera que a recusa a sujeitar-se à ordem judicial que ordena o exame corporal vale por obstruir a busca da prova e deve conduzir necessariamente à perda do processo”.
Continua o voto do Ministro Sepúlveda Pertence:
“A exceção mais notável na Europa ocidental é assim a Alemanha, onde vige, desde a reforma de 1938 a regra da submissão coativa das partes e das testemunhas à colheita do sangue, desde que essa medida seja necessária ao exame de filiação de uma criança.
“A inovação data do auge do nacional socialismo quando, por força da política racial do regime totalitário as pesquisas sobre as origens raciais e genéticas conheceram importância crescente [..]
O interessante, no entanto, segundo atesta jurista germânico, é que a regra da compulsoriedade do exame, não foi estigmatizada, no após-guerra, como vinculada ao pensamento nazista: ao contrário, subsistiu à democratização e até à reforma processual de 1950, justificada como decorrência do principio inquisitório que domina, no direito alemão, os procedimentos relativos à filiação; finalmente, a legitimidade do sistema veio a reforçar-se com a afirmação pelo Tribunal Constitucional Federal, entre os direitos gerais da personalidade, do ‘direito ao conhecimento da origem genética “, do
qual extraiu o imperativo constitucional da criação de uma ação autônoma declaratória da filiação genética, não sujeita à limitações da contestação da legitimidade presumida, contra o que não se pode antepor o direito à integridade corporal, em relação ao qual, já na década de 50, a Corte assentara que manifestamente não agride a colheita de uma pequena quantidade de sangue.
Similar, no ponto, ao direito alemão, é o direito norte-
Americano e o dos países nórdicos.
De minha parte (continua o Ministro Pertence), não obstante o respeito à maioria, formada no julgamento do HC 71.313 e
o domínio do seu entendimento no direito comparado, ainda não me animo a abandonar a corrente minoritária no sentido – explícito no meu voto vencido – de que não se pode opor o mínimo ou – para usar da expressão do eminente Ministro Relator – o risível sacrifício à inviolabilidade corporal (decorrente da simples espetadela, a que alude o voto condutor do em. Ministro Marco Aurélio) – à eminência dos interesses constitucionalmente tutelados à investigação da própria paternidade.
Cuida-se aqui, como visto, de hipótese atípica, em que o processo tem por objeto a pretensão de um terceiro de ver-se declarado pai da criança gerada na constância do casamento do paciente, que assim tem por si a presunção legal da paternidade e contra quem isso, se dirige a ação.
Não discuto aqui a questão civil da admissibilidade da demanda.
O que, entretanto, não parece resistir, que mais não seja, ao confronto do princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade – de fundamental importância para o deslinde constitucional da colisão de direitos fundamentais – é que se pretenda constranger fisicamente o pai presumido ao fornecimento de uma prova de reforço contra a presunção de que é titular.
[…]
com efeito. A revolução, na área da investigação da paternidade, da descoberta do código genético individual, em relação ao velho cotejo dos tipos sangüíneos dos envolvidos, está em que o
Resultado deste, se prestava apenas e eventualmente à exclusão da filiação questionada, ao passo que o DNA leva sabidamente a resultados positivos de índices probabilisticos tendentes à certeza.
Segue-se daí a prescindibilidade, em regra, de ordenada coação do paciente ao exame hematológico, à busca de exclusão da sua paternidade presumida, quando a evidência positiva da alegada paternidade genética do autor da demanda pode ser investigada sem a participação do réu (é expressivo, aliás, que os autos já contenham laudo particular de análise do DNA do autor, do menor e de sua mãe.
Esse quadro, o primeiro e mais alto obstáculo constitucional à subjugação do paciente a tornar-se objeto da prova do DNA não é certamente a ofensa da colheita de material, minimamente invasiva, à sua integridade física, mas sim a afronta a sua dignidade pessoal, que, nas circunstâncias, a participação na perícia substantivaria.
Por tudo, defiro a ordem para vedar definitivamente a produção da prova questionada: é o meu voto ”
Cuida-se de uma situação atípica na qual se pretende – de resto, apenas para obter prova de reforço – submeter a exame o pai presumido, em processo que tem por objeto a pretensão de terceiro de ver-se declarado o pai biológico de criança nascida na constância do casamento do paciente: hipótese na qual, à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoal que, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria.
A beleza do Direito, e de modo especial dos Direitos da Personalidade está em que numa mesma hipótese jurídica, como a que acabamos de descrever, a incidência de circunstâncias particulares, personalíssimas podem levar a julgamentos diferentes, embora cada julgador mantenha a sua tese, genérica.
Finalizando, quero, ainda, destacar que apesar de todos os esforços para tomar cada vez mais uma realidade esses
direitos da personalidade, não podemos perder de vista que na democracia capitalista globalizada, muitas vezes mesmo os mais refinados instrumentos de proteção dos direitos humanos, restam de pouca serventia se as políticas públicas e atividade econômica privada escaparem dos mecanismos de controle jurídico, incrementando a exclusão social e o desrespeito à dignidade da pessoa humana. Na era dos contratos de massa, da sociedade tecnológica temos que repensar tais mecanismos para tomar eficazes e efetivos os direitos que acreditamos, respeitamos e procuramos concretizá-lo na medida que couber a cada um de nós.
Ao agradecer a atenção e a paciência que me dispensaram, gostaria de afirmar que: ” A tutela da personalidade não pode se conter em setores estanques, de um lado os direitos humanos e do outro as chamadas situações jurídicas de direito privado. A pessoa, à luz do sistema constitucional, requer proteção integrada, que supere a dicotomia direito público e direito privado e atenda à cláusula geral fixada pelo texto maior, de promoção da dignidade humana”13.
______________________
13 Tepedino, op cit.p.30
Art. 8º – Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesmo ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.
Art. 9º Serão inscritos em registros públicos:
I – os nascimentos, casamentos e óbitos;
II – a emancipação por outorga dos pais ou por sentença do Juiz;
III – a interdição por incapacidade absoluta ou relativa;
IV – a sentença declaratória de ausência e de morte presumida.
*Art 10 – Far-se-á averbação em, registro público:
I – das sentenças que decretarem a nulidade ou anulação do casamento, o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal;
II – dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação;
III – dos atos judiciais ou extrajudiciais de adoção
CAPÍTULO II
DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Art. 11 – com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são
Intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Art. 12 – Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão , a direito da personalidade e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único: Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Art. 13 – Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único: O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
Art. 14 – É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
Parágrafo único: O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
Art. 15 – Ninguém pode ser constrangido a submete-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica