Margarida Cantarelli
Creio que a questão inicial que passa pela mente de todos é: o poderá dizer uma juíza sobre Dom Helder Câmara, especialmente depois que tantos escreveram com profundidade sobre o seu pensamento no Brasil e no exterior? A resposta mais simples é a de que sempre me ative na vida e obra de Dom Helder à sua luta pela Justiça Social. Assim, a Justiça Social seria o primeiro elo que poderia identificar-me com ele. Todavia, devo afirmar, que esta é apenas uma parte da resposta.
A Justiça, de um modo geral, e a Justiça Social, de modo específico, são aspectos que me ligaram profundamente a Dom Helder, como um ícone da obstinada e incessante luta pela Justiça Social e pelos menos favorecidos. Dedicar-se determinadamente à causa da Justiça Social é a primeira lição que podemos tirar do seu exemplo de vida que deve ser seguido por todos, sobretudo para nós juízes que, por ofício ou missão, temos nas nossas mãos o dever e a oportunidade de dirimir litígios e demandas. E, ao decidi-los, muitas vezes enfrentamos, uma parte revestida de poder — quer seja político ou econômico, público ou privado. Essa lição se torna mais importante pelas constatações de que o poder público, não raro, coloca-se distante ou contrário aos interesses dos menos favorecidos.
Como decorrência, poderemos extrair uma segunda lição do exemplo de Dom Helder — o destemor, a coragem. Assim, para quem julga, que as decisões tomadas, quer agradem ou desagradem, estejam apenas e tão só de acordo com a convicção e a consciência de quem as prolata, sem nunca temer ou ceder aos poderosos do momento porque eles passam enquanto a causa da Justiça é permanente.
Observei, em diversos textos que tenho lido sobre Dom Helder, que muitos dos que conviveram pessoal e proximamente com ele retiram de episódios, frutos dessa convivência, marcos da sua personalidade ou exemplos a serem seguidos.
Devo dizer, de logo, que a minha admiração e respeito por Dom Helder são muito antigos. Deu o seu nome à minha turma de bacharéis da Faculdade de Direito do Recife e celebrou a missa da formatura na Matriz de Santo Antônio, ressalto que em dezembro de 1966. Dois anos, portanto, após a sua chegada ao Recife e em pleno período de exceção em que viveu o País. Hoje pode ser fácil escrever sobre Dom Helder, exaltando o seu exemplo, porém naquela época, não!
Mas a nossa convivência, que selou uma grande amizade, se deu em razão da visita do Papa João Paulo II ao Recife, quando, então, exercia eu a Chefia da Casa Civil do Governo de Pernambuco e — por questões protocolares, uma vez que o Papa também é Chefe de Estado — coube ao Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) a coordenação geral da visita, ficando nos Estados à cargo da Casa Civil.
Foram meses e meses de conversas, visitas, reuniões. Participavam delas não só representantes do Governo do Estado e da Arquidiocese , como também da Prefeitura do Recife e dos Comandos militares. Nas reuniões tudo era discutido e as decisões negociadas, desde o roteiro pela cidade aos detalhes da missa. Dom Helder sempre com a preocupação de que não se gastasse muito, sendo a simplicidade a marca da sua conduta e das suas decisões (nem sempre fáceis).
Uma terceira lição que ele permanentemente nos dava era a da simplicidade em qualquer situação ou perante qualquer autoridade, por mais importante que ela fosse.
Por essa amizade, fruto da admiração e do respeito — e por tantos outros fatos que ainda poderia narrar — é que me sinto à vontade para juntar e alinhavar alguns pontos sobre a sua exuberante trajetória de vida, ordenando-os sob a ótica de uma professora de Direitos Humanos (da Faculdade de Direito do Recife). Vejo no exemplo que deu ao Brasil e ao mundo, com a sua incansável luta pela concretização dos Direitos Humanos fundamentais (quer de primeira, segunda ou terceira gerações ou dimensões, como prefiram chamá-los), importantíssimo marco que não pode deixar de ser ressaltado e exaltado em todas as oportunidades em que a sua vida missionária e profética for lembrada.
Dom Helder sempre esteve em plena sintonia com a efetivação dos Direitos Sociais (chamados de segunda geração ou dimensão) como bandeira internacionalmente assumida, especialmente no mundo ocidental, no pós-Segunda Guerra Mundial. A Igreja, grandemente levada pela força dos seus ideais e da sua voz, também as empunhou através do Concílio Vaticano II e, na América Latina, em Puebla e Medelin.
Os Direitos Sociais buscavam a igualdade efetiva entre os seres humanos e se configuravam em direitos que o Estado deveria prover aos seus cidadãos de modo a eliminar, ou pelo menos diminuir, as diferenças entre classes e pessoas. É o Direito dos pobres — à educação, à saúde, à habitação, ao trabalho, à igualdade de salários para trabalhos iguais, entre muitos e muitos outros que todos conhecemos perfeitamente. A sua concretização é a Justiça Social.
Mas, ao mesmo tempo, o nosso país, na época da sua chegada ao Recife, retrocedia em matéria política, viviam-se dias de regime de exceção e como tal era preciso defender os Direitos Humanos de primeira geração, quais sejam — as liberdades. Aqueles direitos inscritos desde a Declaração da Virgínia, de 1776, e a da Revolução Francesa, de 1789, e absorvidos pelo constitucionalismo moderno, objeto de capítulos em todas as constituições dos séculos XIX e XX. Aqueles direitos que estavam consubstanciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e mais que tudo inscritos na consciência dos povos que desejavam ser e permanecer livres. Direito à vida, à liberdade de locomoção, de pensamento e de sua expressão, de opções políticas, de reunião, de poder manifestar a sua crença, dentre outros igualmente evidentes e já incorporados definitivamente às convicções dos que defendem e crêem no Estado Democrático e de Direito.
As pessoas perseguidas por motivos políticos encontravam em Dom Helder um refúgio. Jamais se furtou a estender a mão aos que a buscavam e não se omitiu de empunhar também essa velha bandeira da liberdade que, para outros povos, já estava pacificamente consagrada.
Pela força das suas idéias e pelo carisma como as transmitia, tornou-se um peregrino mundo afora. Entendia acertadamente que só a Justiça Social levaria à paz interna e internacional. Era a paz positiva, paz cooperação, paz solidariedade que não se confunde com a paz negativa — non war — que é a simples ausência da guerra e, como tal, frágil e quebradiça. A História assim nos prova. Como defensor da paz e do desenvolvimento, tornou-se também um arauto dos Direitos Humanos de terceira geração ou dimensão. “Dom Helder, o artesão da paz”, como tão propriamente apreendeu o título da obra publicada pelo Senado Federal contendo alguns dos seus muitos discursos.
Creio que, se vivo fosse, estaria hoje cuidando também dos direitos de quarta geração, que se delineiam como os decorrentes das mutações genéticas e biológicas, propugnando pela prevalência da ética nas suas manipulações, mas com a mente aberta para o novo desde que os enxergasse acordes com os planos de Deus.
Fixemo-nos um pouco mais detidamente em alguns ângulos dos Direitos Humanos nos quais Dom Helder marcou presença, quer com sua atuação concreta, quer com a elaboração de conceitos ou, ainda, aliando as ações ao pensamento.Não seguiremos, aqui, a cronologia da sua vida, mas as diferentes dimensões dos direitos que ardorosamente defendeu.
DOM HELDER E AS LIBERDADES:
– Direitos Humanos de 1a dimensão –
A instabilidade política existente em diferentes regiões do mundo não desapareceu no século XX, sendo fato historicamente constatado. A América Latina foi palco de inúmeros exemplos de revoluções e golpes de Estado, incontáveis até. O Brasil não fugiu a tais situações, sendo rompida a ordem constitucional em vários momentos da nossa História, com tempos longos de exceção representados pela ausência do Estado de Direito e, portanto, da democracia. Sem democracia não há liberdade.
Foi exatamente em abril de 1964, como lembrei, início do último período de exceção que atravessou o nosso país, ocasião em que Dom Helder chegava ao Recife como seu arcebispo. Era um momento de antagonismos de difícil compatibilização. De um lado, o regime político autoritário; do outro, a posição de Dom Helder em defesa da democracia e das liberdades. Novamente antepunham-se, de uma parte, Dom Helder, assumindo o novo pensamento da Igreja formulado no Concílio Vaticano II, apontando a opção preferencial pelos pobres e a busca da Justiça Social; da outra parte, a desconfiança do governo estabelecido em relação a tudo o que se referisse a atividades com o povo ou para o povo. O que tivesse o cunho “popular” ficava estigmatizado como sinônimo de ação contra o regime.
Logo no seu discurso de posse, Dom Helder deixou bem claro a que vinha, ao afirmar:
“Ninguém se espante me vendo com criaturas tidas como envolventes e perigosas, da esquerda ou da direita, da situação ou da oposição, anti-reformistas ou reformistas, anti-revolucionárias ou revolucionárias, tidas como de boa-fé ou de má-fé.
Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as suas inimizades.
Minha porta e meu coração estão abertos a todos, absolutamente a todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo excluir do diálogo fraterno.”
E, no mesmo texto, logo a seguir, afirmava:
“Claro que, amando a todos, devo ter, a exemplo de Cristo, um amor especial pelos pobres. No julgamento final, nós todos seremos julgados pelo tratamento que tivermos dado a Cristo, a Cristo na pessoa dos que têm fome, têm sede, andam sujos, machucados e oprimidos…”
No seu discurso de instalação da Comissão de Justiça e Paz, criada por ele em Pernambuco, assim se expressou, em 1968:
“Verão, os que têm olhos de ver e almas não toldadas por preconceitos, que se instala um dispositivo de defesa dos direitos fundamentais do homem, tão solenemente proclamados há 20 anos pela ONU e ainda hoje tão esquecidos e pisados por 2/3 do nosso Continente. Minhas palavras adquirirão ressonância dramática quando, hoje e aqui, começarem a repercutir, nesta sala, vozes que clamam por justiça em termos de bradar aos céus.”
Ao mesmo tempo demonstrava, claramente, um aspecto importantíssimo da sua forma de proceder: que a luta pelos Direitos Humanos deve ser sem violência:
“A Comissão que hoje se instala nesta Casa é demonstração patente de que confiamos nos processos democráticos. Quando muito dos nossos melhores jovens, em toda a América Latina, partem para a radicalização e a violência, queremos tentar uma demonstração clara e insofismável da validade da pressão legítima e democrática. Rigorosamente dentro da lei e dentro da não-violência, procurando enfrentar injustiças venham de onde vierem, mesmo de todo-poderosos, capazes de fazer a terra desaparecer debaixo dos pés e o ar rarefazer-se, e os amigos sumirem, e testemunhas se intimidarem, e fecharem-se, perigosamente, veículos de comunicação social.”
Se estas eram as suas palavras (e muito mais poderia citar), não menos incisivas foram as suas ações. A lição que nos deu de que é possível lutar, sim, mas violência não, está consubstanciada na própria criação da Comissão de Justiça e Paz. Essa comissão, cuja atuação está a merecer mais estudos, representou um organismo institucionalizado, sob o seu manto, para defender indivíduos ou grupo de pessoas que sofriam opressão em razão de situações concretas, de violação aos Direitos Humanos, às liberdades fundamentais. Embora os objetivos da comissão fossem bem mais amplos (e foram), naquele momento um dos papéis principais era a defesa dos presos políticos e a busca dos desaparecidos, vítimas da atuação político-policial. Em nenhum momento acovardou-se ou acomodou-se, afirmando-se como um símbolo de resistência à opressão e do respeito às liberdades, sem jamais usar ou pregar a violência. A lição da não- violência também deve ser anotada como importante contribuição ao País e ao mundo.
Incontáveis, os perseguidos que procuraram e encontraram em Dom Helder o acolhimento caloroso, o abrigo possível e, acima de tudo, a firmeza que transmitia até nas horas mais difíceis que atravessou: “Se é a mim que buscam, levem-me e deixem os meus em paz”, afirmou após o doloroso episódio da morte do Padre Henrique.
Dom Helder, guardião das liberdades, protetor dos perseguidos, defensor da não-violência, é um símbolo da reconstrução da democracia no nosso país.
DOM HELDER: OPÇÃO PELOS POBRES – JUSTIÇA SOCIAL
– Direitos Humanos de 2a Geração: a igualdade social
Tive a grata oportunidade de ouvir, aqui no Recife, a frase emblemática do Papa João Paulo II: “D. Helder, irmão dos pobres, meu irmão”. Se para o Papa ele era um irmão, para nós, seus amigos e admiradores, o parentesco é ainda mais forte. Não se enquadra nas normas do Direito Civil, mas, sim, nas normas maiores da consciência cristã e do sentimento de humanidade, que nos permite afirmar: Dom Helder, nosso pai e nosso irmão! Pai, enquanto seguidores dos seus ensinamentos, da sua palavra; irmão por também estarmos incluídos na mesma imensa fraternidade dos pobres deste mundo afora. Ou parafraseando a sua dedicatória em livro a Roger Garaudy: “irmãos na fome e na sede de Justiça”.
A opção pelos pobres é o ponto inicial da caminhada pela Justiça Social. Sem a primeira jamais se alcançará a segunda. Em Dom Helder, há perfeita sintonia entre o pensar e o agir, o que demonstra a coerência da sua vida e das suas propostas nem sempre compreendidas. E isso está bem claro na sua conhecida frase: “Quando dou comida aos pobres, chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”. Como bem lembrou o dominicano Albert Nolan, ao comentar essa frase: “A transição do ato de alimentar os pobres para o de perguntar por que eles são pobres é o mesmo movimento que vai da ‘caridade’ para a Justiça”. Esta constatação é mais um ensinamento, uma outra lição, que poderemos extrair do seu exemplo: a coerência.
Ele era AÇÃO quando iniciou, no Rio de Janeiro, com o Padre José Távora, pela década de 50, o trabalho com os migrantes, oriundos das áreas rurais de todo o País, que acorriam para a cidade grande levados pelo sonho do trabalho e da sobrevivência digna. O êxodo rural. Ali eram atirados na periferia urbana, encarapitados nos morros, favelizando-se com a exclusão social a que ficavam expostos.
Ele era ação quando enfrentou três grandes desafios próprios dos excluídos: o primeiro foi o da habitação popular (um dos Direitos Sociais), criando a Cruzada São Sebastião, uma das primeiras experiências no Brasil e que teve o mérito maior de trazer a lume o problema da falta de habitações dignas, um dos pontos da favelização dos morros do Rio. Há referência de que o Papa João XXIII teria comentado: um nome pouco feliz, para uma iniciativa de tamanho valor evangélico.
O segundo desafio foi a criação do Banco da Providência, um sistema de crédito para empréstimos de pequeno valor, destinado igualmente à população carente, visando a atender às suas necessidades imediatas. Nessa experiência pode ser visualizado o embrião do que viria ser conhecido como Banco do Povo.
O terceiro foi o trabalho de recuperação de marginais, apoiado pelo seu amigo, o Abbé Pierre, criando no Rio a versão brasileira dos Trapeiros de Emaús, considerada como uma das experiências mais bem-sucedidas para recuperação de pessoas marginalizadas, com casos tidos como perdidos.
Dom Helder era PENSAMENTO quando extraiu dos problemas concretos — com os quais convivia, trabalhando para eliminá-los — e levantou questões à reflexão, à formulação de enfrentamento e à busca de soluções: migrações internas (intraestatal ou inter-regional), favelas e condições da vida rural. Detenhamo-nos em apenas dois aspectos dessa sua contribuição.
O primeiro foi quando se voltou à questão do desenvolvimento (regional). Sob a inspiração do pensamento do seu amigo o Papa Paulo VI, que pregava “o desenvolvimento do homem todo e de todos os homens” e, com maior extensão, “o desenvolvimento como o novo nome da paz”; e do Padre Lebret, com o movimento Economia e Humanismo, Dom Helder lançou-se no Governo Juscelino às questões relativas ao desenvolvimento do Nordeste.
Dom Marcelo Carvalheira lembra com precisão as palavras de Dom Helder: “Desenvolvimento, sim, mas com Justiça Social”. Na segunda metade da década de 50, reuniu, com entusiasmo, os bispos do Nordeste — Campina Grande e Natal — “visando ao soerguimento das populações dessa Região”, e diz, ainda, Dom Marcelo:
“e logo se iniciaram as etapas de um processo oficial que veio a desembocar na criação da Sudene. Era uma espécie de ministério especial voltado para essa região subdesenvolvida do Brasil, mas rica de valores humanos e recursos da natureza. Dom Helder se mostrava, então, empolgado e irradiante, identificado com as grandes causas do homem nordestino. O Criador e Pai, dizia ele, ‘não queria salvar somente as almas, queria salvar o homem todo, corpo e alma, com herança na terra e no céu também’”.
Como é sabido, o Plano de Metas elaborado pelo BNDE, adotado em 1956 pelo Governo Juscelino Kubitschek, apesar das muitas propostas saídas da reunião dos bispos em Campina Grande, deixara o Nordeste praticamente ao largo. Mas, graças à determinação do presidente e aos efeitos da devastadora seca de 1958/1959, foi solicitada ao BNDE uma proposta de política governamental específica para a Região, cabendo a um economista do Banco, Celso Furtado, a feitura do famoso relatório: Uma política para o desenvolvimento econômico do Nordeste. Com ele nascia a Sudene, trazendo, também, todos os anseios de desenvolvimento do Nordeste, mas, infelizmente não concretizados.
O segundo ponto diz respeito à reforma agrária. O problema da má distribuição das terras no Brasil vem dos seus primórdios, e a tão esperada reforma agrária arrasta-se sempre em ritmo inferior à necessidade. Dom Helder, nordestino de nascimento e convivendo com os migrantes das áreas rurais, não poderia ficar afastado da grave situação vivida no campo — a estrutura fundiária injusta, as condições desumanas impingidas ao trabalhador rural e à sua família, além do fenômeno cíclico das secas, que fazem do sertanejo um retirante, levavam-no a pensar e buscar soluções para o problema.
Ao encontro das suas aspirações, veio a Constituição de 1946, que, no parágrafo 16, do art.141 (Dos Direitos e Garantias Individuais), flexibilizava o direito de propriedade introduzindo a possibilidade de desapropriação por interesse social:
“É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro”.
É verdade que a Constituição de 1934, de efêmera duração, também consagrara no parágrafo 17, do art.113:
“É garantido o direito de propriedade que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma em que a lei determinar”.
Mas, com o advento do Estado Novo e a outorgada Constituição de 1937, desapareceu o aspecto social do direito de propriedade. Assim, era de se saudar com esperança, a norma constitucional de 1946 que reintroduzia o interesse social como uma das possibilidades de desapropriação.
Na mesma direção da norma constitucional, Dom Helder soube aproveitar alguns espaços dentro do chamado Ponto IV, ou seja, o programa que os Estados Unidos ofereceram como ajuda ao Brasil no pós-guerra (o primo pobre do Plano Marshall), que previa, dentre outras atividades, o apoio para a modernização do setor agropecuário, com crédito e extensão rural. O Ministério da Agricultura criou órgãos para a implementação dos programas e, em cooperação com os mesmos, Dom Helder promoveu cursos para sacerdotes que atuavam na área rural e as Semanas Ruralistas. Na primeira delas, ocorrida no sul de Minas, ao perceber a presença de apenas proprietários rurais, fez introduzir um parágrafo na carta que seria lançada no evento: “Conosco, sem nós, ou contra nós, irá se fazer a reforma agrária”.
O regime de exceção que limitou fortemente a atuação de Dom Helder na proposição das políticas públicas inibiu, com certeza, uma das maiores contribuições que este país poderia ter recebido para a solução das históricas mazelas sociais que tínhamos e que, lamentavelmente, continuamos a conviver com elas, hoje em escala bem maior e com um fosso bem mais profundo.
Embora limitado na sua atuação concreta, Dom Helder não esmoreceu no seu trabalho com os pobres. Estão aí os exemplos dos Engenhos Ipiranga, Guaretama e outros; o trabalho com as comunidades carentes de Tururu e dos Coelhos, além de uma infinidade de outras ações que conseguiu desenvolver malgré tout.
O dominicano Albert Nolan faz uma afirmação extremamente apropriada: “De particular importância foi, para nós como para tantos outros pelo mundo afora, o fato de Dom Helder ter personificado tudo aquilo que se queria significar com a expressão ‘opção pelos pobres”.
DOM HELDER E O MUNDO: ARTESÃO, TECELÃO OU SEMEADOR DA PAZ!
Direitos Humanos de 3a geração: a fraternidade
O desenvolvimento que pregava era o caminho da paz que tanto buscava. Desenvolvimento, meio ambiente saudável e paz são direitos humanos fundamentais, que, por sua natureza, são direitos difusos que não pertencem apenas a um indivíduo ou a um grupo determinado, mas a todos em qualquer lugar onde se encontrem. Não têm limites de fronteiras nem devem ficar adstritos à soberania de um Estado, mas decorrentes simplesmente da própria natureza humana. Dom Helder soube associá-los, com precisão, aos verdadeiros titulares desses direitos, aqueles que não tinham voz, mas integravam a maioria da população da Terra — os pobres do mundo inteiro. Ele foi um dos grandes intérpretes desse sentimento que o século XX conheceu.
E isso se tornou possível porque Dom Helder foi o único pássaro que, ao ter as asas cortadas, conseguiu alçar vôos bem mais altos. E o Concílio Vaticano II foi o espaço onde pôde contribuir para que se firmasse a visão da Igreja da opção preferencial pelos pobres. Naquela oportunidade, soube articular com maestria os seus pensamentos e seus ideais. E daí poderemos retirar mais uma lição da sua maneira de ser — a articulação como um mecanismo de levar adiante as convicções, de modo a vê-las recebidas e aceitas de forma pacífica e consensual.
O mundo inteiro queria ouvi-lo, quando no Brasil a sua voz era inoportuna e incômoda. Portanto, deveria ser inaudível. Os incontáveis títulos de “Doutor Honoris Causa”, concedidos pelas mais respeitáveis universidades; os inúmeros títulos de cidadania, como demonstração dos muitos que o queriam como concidadão; os prêmios, como reconhecimento da sua contribuição à causa da humanidade, bem demonstram o respeito e a aceitação dos seus ideais expressados por suas palavras em diferentes idiomas.
Tive o prazer e a oportunidade de ouvi-lo, por diversas vezes, fora do Brasil. Pude presenciar a maneira como era recebido e tratado: um profeta está entre nós, era o que saltava dos olhos dos que iam assisti-lo. Uma vez, nos arredores de Londres, fui com mais dois colegas da Universidade (Professor Carlos Osório e Prof. Ferreira) ouvir uma conferência. Ao nos ver na platéia, saudou-nos com tanto afeto que nos valeu, no final da solenidade, até pedidos de autógrafos. A nós, imaginem a ele!
A sua mensagem batia bem dentro do espírito de todos que desejam paz, desenvolvimento com justiça social em qualquer parte do mundo. Todos que se escandalizassem com 2/3 da humanidade passando fome; com o fosso entre os países pobres e ricos; com os gritantes preconceitos raciais, étnicos ou religiosos. Todos que defendessem a não violência ativa como meio de solucionar conflitos sociais ou condenassem a guerra como solução de conflitos internacionais. Todos que rejeitassem as diferentes formas de exclusão social e entendessem que a cidadania se estendia igualmente aos pobres que deveriam ser os sujeitos da sua própria história. Por isso a sua voz não poderia ser calada, nem os seus sonhos desfeitos porque ele não temia as utopias reafirmando sempre que quando partilhadas se tornam a “mola da história”
Mas, ao concluir, o faço com as suas próprias palavras ao receber o Prêmio Popular da Paz, na Alemanha, em 1974, portanto há trinta e dois anos passados, e que são a expressão bem maior de tudo o que eu pudesse lhes deixar como mensagem:
“Até que ponto o prêmio que a vossa generosidade me entrega dirige-se a um ingênuo visionário de uma paz impossível ou a um sonhador que entrevê e antevê uma paz sólida e próxima, baseada na justiça e no amor?
Creio na humanização dos homens!
Até hoje, é verdade, minorias continuam decidindo guerras sempre mais mortíferas e covardes. Até hoje, minorias continuam explorando uma paz enganosa — como a dos pântanos! —, paz baseada na apatia e no fatalismo de mais de 2/3 da humanidade, cujo sangue alimenta a sociedade do desperdício […]
Se me perguntardes em que se firma a minha crença na humanização dos homens — crença que parece ingênua e impraticável — , direi que muito mais ingênuo e impraticável e incomparavelmente mais audacioso é o sonho, ou melhor, o plano, ou melhor ainda, o desígnio do Pai de divinizar o homem.
[…]
Delírio? Utopia? O impossível dos impossíveis se tornou realidade: o Filho de Deus se encarnou e se fez Homem, se fez nosso Irmão. Depois desse prodígio, que mais poderemos esperar? O Pai, preparando a divinização do homem, certamente nos ajudará no trabalho urgente e inadiável da humanização do homem”.
Que Dom Helder nos ajude a, pelo menos, nos conservarmos fiéis aos seus ideais e difundi-los com o nosso exemplo e as nossas ações, e que as nossas pegadas se tornem as marcas da sua passagem.
Margarida Cantarelli
Professora de Direito Internacional e Direitos Humanos da UFPE
Desembargadora Federal – Presidente do TRF 5a Região