Entrega da Casa de Pernambuco no Porto

Entrega da Casa de Pernambuco no Porto

Data: 28 de julho de 2022, às 16 horas

Palavras de: Margarida Cantarelli

Tome um pouco de azul se a tarde é clara

E espere pelo instante ocasional.

Neste curto intervalo Deus prepara

E lhe oferta a palavra inicial.

             (Carlos Pena Filho – poeta pernambucano)

……….

Senhoras, senhores

Sob a inspiração de um poeta, começo com uma pergunta: é possível realizar um sonho? A resposta está no tão conhecido verso de Fernando Pessoa: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Não tenho dúvida de que estamos vendo um sonho realizado: esta Casa! São mais de duas décadas, quase três, perseguindo um sonho. O sonho de dar mais um laço na sempre almejada união luso-brasileira, apertando os nós – Pernambuco & Porto! Recife & Porto, cidades-irmãs, altaneiras e libertárias. O sonho daqueles que desejam que “o mar nos una, já não nos separe”. 

                     Sonho que sonhou acordado, no início acompanhado por muitos – vejo alguns na plateia, outros nos veem da dimensão onde se encontram. Com o passar do tempo e aos poucos, por circunstâncias naturais da vida, ficou quase só. Mas, novos se achegaram e assim foi girando a roda do tempo. Embora seja indispensável o querer de Deus, nada fazemos sem esse desígnio, mas para transformar a obra em realidade, não podem faltar ao homem que sonha: coragem, persistência e desprendimento. Se assim não fosse, não estaríamos hoje aqui. O persistente sonhador tem nome: Zeferino Ferreira da Costa. Dedicou-se a esta Casa como tal intensidade – de trabalho, de dispêndio, de determinação – que não só lhe deu corpo, também alma. O projeto dos arquitetos Janete e Acácio Gil Borsoi – seus amigos, ambos já falecidos – traçou as linhas de um corpo que foi muito lindamente edificado. O artesanato que povoa cada ambiente é um pedacinho de Pernambuco que os colore e traz a inspiração das mãos que moldaram ou esculpiram a argila, a madeira, a pedra ou o granito, do mais rústico ao mais sofisticado. De Ana das Carrancas e Nuca de Tracunhaém a Abelardo da Hora e Francisco Brennand. Deram-lhe, assim, a alma! 

          Posso afirmar porque fui testemunha de todo o caminhar: desde a Pedra Fundamental até este momento. Uma saga, uma devoção, uma História! 

         Agora, com a Casa pronta, devemos nos irmanar à Universidade do Porto, companheira do sonho e ao Instituto Pernambuco-Porto, para lhe dar: o sopro da vida. A vida é a convergência que se deve buscar num mundo de desencontros que vivemos. E a vida está na nossa mãe comum: a língua portuguesa.

          Neste ano de 2022 que tanto se tem falado sobre o bicentenário da Independência do Brasil, é preciso que se diga que há um ponto que nunca foi contestado, questionado, nem alvo de qualquer protesto ou reivindicação em contrário: nosso idioma- a língua portuguesa, que a consideramos materna. Essa é, repito, a maior convergência, de identidade e de união. Somos hoje, no Brasil, em torno de 220 milhões de falantes. Em Pernambuco, mais de 10 milhões que por ela nos comunicamos, expressamos sentimentos, ideias, nos entendemos e quando nos desentendemos não é pelo idioma que falamos, mas pelo significado do que foi dito. 

Interessante notar que todas as Constituições brasileiras anteriores à de 1988 não fazem qualquer menção à língua oficial, tal ínsita estava na alma do povo. Nem mesmo nas de 1934 e 1937, período de clima nacionalista mais aceso, há norma sobre o assunto. Na Constituição vigente – 1988, reza o art. 13: A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. Alguns comentaristas até criticaram o dispositivo por desnecessário e óbvio. Mas, o Constituinte brasileiro seguiu bem próximo o modelo da Constituição portuguesa que traz no art.11, 3: a língua oficial é o Portugues. Para nós, como também para cá, tratou-se apenas de uma questão de técnica legislativa, diferentemente de outros países onde a indicação do ou dos idiomas oficiais é questão relevante de disputas e até, em certos casos, pacificadora.

A Constituição brasileira de 1988, adotando a multiculturalidade constitucional não poderia deixar, entretanto, de contemplar uma abertura para manutenção das línguas faladas pelas populações indígenas, ultrapassando as 240, dentre as quais, em torno de 200 línguas vivas, com muito mais de 160.000 mil falantes. O art.210 parágrafo 2º, dispõe que: o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Em recente artigo cujo título é – “Qual o idioma falado no Brasil?”, o professor Marco Bruno Clementino defende que o art. 13 da CF não proíbe a instituição de idiomas COOFICIAIS, tendo em vista a existência das “ilhas-Brasil” como chamava Darcy Ribeiro. O autor invoca, a guisa de comparação, a Lei n.7/99 da Assembleia da República de Portugal que reconhece os direitos linguísticos da Comunidade Mirandesa (Revista CEJ, Brasília, Ano XVIII, n.63, p.65-72, 2014).

Sempre que tive a oportunidade de atuar na área da Educação, apoiei projetos de ensino das línguas indígenas, por entender que é elemento constitutivo da identidade de um povo. No início da década de 1990, no Tocantins, na Tribo dos Kraós acompanhei pessoalmente a seleção de jovens indígenas candidatos a professores da língua nativa. Em 1997, em Pernambuco, relativamente à Tribo Fulniô (Águas Belas) para introduzi-los no mundo da informática. 

            Ao encontro desse pensamento, no ano 2000, nas celebrações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, o Gabinete Portugues de Leitura e o Real Hospital Portugues de Beneficência em Pernambuco patrocinaram a publicação de um dicionário e gramática de Iatê, a língua dos Fulniôs (Águas Belas).

No Município de São Gabriel da Cachoeira, Alto Rio Negro, no Estado do Amazonas, no qual 90% da população é de origem indígena, foi aprovada a Lei Municipal n. 145/2002 que dispõe sobre a co-oficialização das línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa. Visitei a Região e constatei tantas são as línguas que há até uma Língua Geral. Mas, em nenhum momento, por parte de qualquer etnia, há repúdio ao Portugues como a língua oficial. 

           No período pós 1ª Guerra Mundial, a partir da segunda década do século XX, houve um repensar de muitos temas. O mundo tinha mudado substancialmente. Passado um século, estamos agora revisitando alguns deles. O modernismo, em todas as manifestações culturais – literatura, música, pintura, arquitetura e mais, punha em xeque conceitos anteriormente consolidados.

Mesmo em tais momentos, quanto ao português, se questionava a forma: na linguagem ou na métrica, mas nunca o idioma. Algumas vezes a discussão sobre a língua resvalava, na realidade, por discussões sobre raças que formaram o caldeamento no Brasil. Se a contribuição de grupos étnicos, nativos ou africanos tinha sido assimilação, integração ou empréstimo! O predomínio dos francesismos (galicismos) e a pouca atenção aos tupinismos e africanismos recebiam críticas. Aqui, com relação ao francesismo, quem não ouviu na voz de Amália Rodrigues: “Lisboa não sejas francesa, tu és portuguesa, tu és só para nós”.

O poeta Ascenso Ferreira, pernambucano, um dos primeiros modernistas, publicou um poema: História Pátria 

Plantando mandioca, plantando feijão,

Colhendo café, borracha, cacau,

Comendo pamonha, canjica, mingau,

Rezando de tarde nossa Ave-Maria,

Negramente…

Caboclamente…

Portuguesamente

A gente vivia.

De festas no ano só quatro é que havia

Entrudo, Natal, Quaresma, Sanjoão!

Mas tudo emendava num só carrilhão!

E a gente vadiava, dançava e comia…

Negramente…

Caboclamente…

Portuguesamente…

Todo santo dia!

O Rei, entretanto, não era da terra!

E gente pra Europa mandou estudar…

Gentinha idiota que trouxe a mania

De nos transformar

Da noite pro dia..

A gente que tão

Negramente…

Caboclamente…

Portuguesamente…

Vivia!

(E foi um dia a nossa civilização

Tão fácil de criar!)

Passou-se a pensar,

Passou-se a cantar,

Passou-se a dançar,

Passou-se a comer,

Passou-se a vestir,

Passou-se a sentir,

Tal como Paris

Pensava,

Cantava,

Comia,

Sentia…

A gente que tão

Negramente…

Caboclamente…

Portuguesamente…

Vivia!

             Ao olhar de hoje, os regionalismos e localismos são comuns em todas as línguas. E assim aconteceu à nossa, no Brasil. Acrescentamos por integração (não por empréstimo) palavras dos povos nossos irmãos nativos, o tupinismo: o beiju, a tapioca do Tupi-Guarani (hoje tão olindense, no Alto da Sé); o tucupi, o tacacá – do Norte; o maracá, o catimbó-jurema, a oca, o pajé, o cacique de todos nós; demos nomes aos lugares: Itamaracá, Igaraçu, Itacuruba; ao rio, Capibaribe – nosso cão sem plumas, dos versos de João Cabral; os igarapés, os iguapós (como diz Fafá de Belém – não me fale em Amazônia quem não distingue um igarapé de um iguapó!). 

       Dos irmãos que chegaram da África, imigrantes forçados, nunca se valorizou o papel relevante que desempenharam na “nacionalização” do português, observa o Prof. Marco Bruno, uma vez que eram forçados a aprendê-lo até para se comunicarem entre si, já que provinham de regiões diferentes da África com seus idiomas próprios ou, se da mesma região, proibidos de utilizá-la para evitar acertos de fuga. Deles, adotamos nas comidas: o munguzá, o quindim, o acarajé, a moqueca, o dendê; nos laços pessoais, a sinhá, o ioiô, dos dengos e dos cafunés; o ganzá, os Afoxés, dos carnavais; os Orixás, o Candomblé e a Yemanjá – nome moreno para N. S. da Conceição, que certamente recebe com o mesmo carinho, pois a Ela só importa a fé de quem a invoca. 

      Ora, se o acento é grave, agudo ou circunflexo; se o “C” é mudo ou o “H” aspirado, se algumas palavras têm significados diferentes aqui ou ali, isso é tão menor ante a grandeza da convergência que a língua representa, que não vale a pena perder tempo em buscar prevalências. Só sei que do Oiapoque ao Chui quando queremos figurativamente dizer em todo território brasileiro, embora saibamos que o extremo Norte é o Monte Caburaí, em Roraima, mas que corresponde à nossa costa Atlântica. Também da Ponta do Seixas, na Paraíba, à nascente do Rio Moa, no Acre, de Leste a Oeste, falamos o mesmo português. 

                 Se falamos um português adocicado, açucarado, lento, dengoso, com bem disse Gilberto Freyre, para mim, quem melhor entendeu as nossas raízes, não passa de um feitiço dos Trópicos. Hoje a padronização imposta nacionalmente pelos meios de Comunicação tem diminuído esse gingado, ainda perceptível aos ouvidos mais apurados: esse é um gaúcho – (tchê); aquela é maranhense – que se orgulha de falar o melhor português; aqueloutro é um mineirim (uai); e agora ouvem uma pernambucana que diz para tudo isso: ôxente! 

  Uma língua se perpetua, sobretudo, através dos registros nas obras escritas desde as suas origens. Quer estejam inscritas na pedra, no bronze, em lâminas de prata. No papiro, no pergaminho e em tantos manuscritos donde extraímos os primórdios da História da Humanidade. O papel, como a nossa época conheceu com a imprensa, o manusear as folhas de um livro completava o prazer de ler. Hoje – como o mundo mudou! – nossa biblioteca cabe dentro de um I-Pad, porque lemos e-books. Escrevemos no teclado, exibimos numa tela e, o que é mais grave, arquivamos tudo nas nuvens! Só peço a Deus que essas nuvens nunca virem chuva, senão a nossa memória vai toda por água abaixo.

       O Português jamais desaparecerá, porque Os Lusíadas foram escritos e sempre haverá alguém para cantar e se encantar com os feitos dessa gente ousada mais que tantas. E os incontáveis autores, ao longo dos séculos, a perpetuaram através de grandes obras literárias: poetas, romancistas, contistas, ensaístas, historiadores e mais.  Não perecerá a língua de Camões, Gil Vicente, Eça de Queiroz, Almeida Garret, Camilo Castelo Branco, Fernando Pessoa, Florbela Spanca, Sophia de Mello Breyner Andresen, Miguel Torga, Saramago e outros tantos e tantos jovens que despontam. 

E o que fizemos nós com ela? 

       Esses efeitos de perpetuidade, também nos alcançam. Não estenderei a todo Brasil, ficarei com alguns dos muitos nomes de Pernambuco, como Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, Gilberto Freyre, João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira, Mauro Mota, Carlos Pena Filho, Ascenso Ferreira, Luzilá Gonçalves Ferreira, Lourival Holanda, José Paulo Cavalcanti e mais outros tantos, os muitos jovens que chegam.

      Alguns recebem até o título de imortais, não o autor, ser humano mortal por natureza (que bom seria!), mas é a obra que se perpetua.

      Clarice Lispector, nascida na Ucrânia, quando a família fugia da Rússia para o Brasil, passou sua infância e parte da adolescência no Recife, onde assumiu o gosto de escrever, afirmou numa crônica em 14 de maio de 1968:

               “Essa é uma confissão: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável… A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve… eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos”.

    E chegou.                   

                 Na obra o “Cristo Cigano”, Sophia de Mello Breyner Andresen dedica o primeiro poema – “A palavra faca”, ao poeta João Cabral de Mello Neto: 

A palavra faca

De uso universal

A tornou tão aguda

O poeta João Cabral

Que agora ela aparece

Azul e afiada

No gume do poema

Atravessando a história

        Por João Cabral contada”.

              O longo poema – “Uma Faca só Lâmina – ou Serventia das Ideias Fixas”, foi escrito por João Cabral em 1955 e oferecido a Vinicius de Moraes: 

…….

Relógio que tivesse

O gume de uma faca

E toda a impiedade

Da lâmina azulada

Assim como uma faca

Que sem bolso ou bainha

Se transformasse em parte

Da vossa anatomia.

Se João Cabral escreveu sobre a dura lâmina da faca, também fez triste relato da vida do homem do Sertão, em Morte e Vida Severina, que assim termina:

Severino retirante,

Deixe agora que lhe diga:

Eu não sei bem a resposta

Da pergunta que fazia

Se não vale mais saltar

Fora da ponte e da vida;

Nem conheço essa resposta,

Se quer mesmo que lhe diga;

É difícil defender,

Só com palavras, a vida;

Ainda mais quando ela é

Esta que vê, severina;

Mas se responder não pude

À pergunta que fazia,

Ela, a vida, a respondeu

Com sua presença viva.

E não há melhor resposta

Que o espetáculo da vida:

Vê-la desfiar seu fio,

Que também se chama vida.

…….

Mesmo quando é a explosão

De uma vida severina. 

        Mas, há também o português vivo que está na boca do povo: que fala, que grita, que canta. Sim, é na música popular que encontramos verdadeiras poesias feitas até por pouco letrados. Algumas se tornaram ícones e se perpetuaram nas vozes de gerações. Com um português maleável que permite expressar sentimentos ou até mensagens duras tão docemente que as palavras ditas são compreendidas e delas depreendido o sentido maior e profundo nelas contido. 

Quando Cartola cantou o prosaico sentimento de um amor não correspondido, o fez de forma tão sensível que varou o tempo:

“Volto ao jardim

 Com a certeza que devo chorar,

Pois bem sei que não queres voltar,

Para mim.

Queixo-me as rosas,

 Que bobagem, as rosas não falam,

Simplesmente as rosas exalam,

O perfume que roubam de ti”.

     Ou, quando Nelson Cavaquinho expressou suas mágoas, em:

“Tire seu sorriso do caminho

Que eu quero passar com a minha dor

Hoje pra você eu sou espinho,

Espinho não machuca a flor

Eu só errei quando juntei minha alma à sua

O sol não pode viver perto da lua”

Ou, em Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa, música que está no repertório de tantos cantores famosos, que Carlos Drumond de Andrade considera um dos belos versos da língua portuguesa:

“A porta do barraco, era sem trinco

Mas a lua furando nosso zinco

Salpicava de estrelas nosso chão,

Tu pisavas nos astros distraída

Sem saber que a ventura desta vida

É a cabrocha, o luar e o violão”

Ou, ainda, quando para nós o inesquecível Luiz Gonzaga – pernambucano do Exu – no Hino do Nordeste brasileiro, Asa Branca, descreve a tristeza causada pela seca e a esperança da chuva chegar:

“quando o verde dos teus olhos

Se espalhar na plantação,

Eu te asseguro, não chore, não, viu

Que eu voltarei pro meu sertão”.

Lourenço Barbosa, para nós o muito conhecido compositor Cabipa, pernambucano de Surubim, compôs uma bela valsa “Maria Bethânia” que foi gravada em 1945, por Nelson Gonçalves, e se tornou sucesso nacional, no rádio. Por curiosidade, levou Caetano Veloso a pedir a sua mãe, D. Canô, para colocar o nome na irmã que nasceu no ano seguinte – Maria Bethânia, hoje uma grande cantora.

Maria Bethânia era a personagem de uma peça teatral: “Senhora de Engenho”, baseada no romance regionalista de Mário Sette, e foi representada por uma jovem por quem o poeta-compositor se apaixonou. Como os namoros naquela época eram mais respeitosos, o sentimento ficou na poética letra da música: 

Maria Bethânia

Tu és para mim a senhora de engenho

Em sonhos te vejo

Maria Bethânia, és tudo que eu tenho.

……

Maria Bethânia tu sentes saudade de tudo, bem sei

Porém também sinto

Saudade do beijo que nunca te dei

……

Hoje confesso

Com dissabor

Que não sabia

Nem conhecia o amor.

  Não se pode esquecer de Fernando Brant/Milton Nascimento que expressaram a força da mulher, em “Maria, Maria”:

‘’É a dose mais forte e lenta

De uma gente que ri quando deve chorar

E não vive, apenas aguenta.

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça

É preciso ter sonho sempre

Quem traz na pele essa marca possui

A estranha mania de ter fé na vida”.  

A língua doce pode ser muito forte, expressar todo um sentimento de protesto, muito suavemente, como a minha geração soube cantar, para não dizer que não falei de flores:

“Caminhando e cantando e seguindo a canção,

Somos todos iguais, braços dados ou não,

Nas escolas, nas ruas, campos, construções,

Caminhando e cantando e seguindo a canção.

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,

Quem sabe faz a hora não espera acontecer.

…..

Os amores na mente, as flores no chão

A certeza na frente a História na mão

Caminhando e cantando e seguindo a canção

Somos todos iguais, braços dados ou não.

Nem foi menos suave, até mesmo ameaçadora em alguns versos, embora docemente cantados, por Chico Buarque. E de tão entendida, à época foi censurada:

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia

…..

Onde vai se esconder

Da enorme euforia

Como vai proibir

Quando o galo insistir

Em cantar

…….

Você que inventou a tristeza,

Ora, tenha a fineza

De desinventar…

Inda pago pra ver

O jardim florescer

Qual você não queria,

Você vai amargar

Vendo o dia raiar

Sem lhe pedir licença.

E eu vou morrer de rir

Que esse dia a de vir

Antes do que você pensa”.

Numa noitada carioca, no que antigamente se chamava “Boite”, o escritor pernambucano de Caruaru, João Condé conversava com o famoso compositor Ari Barroso sobre o sucesso do cantor e compositor mexicano Agustin Lara, com a música Madri. Foi quando veio a provocação de Condé a Ari: por que ele não compunha sobre Portugal e o Brasil? E seguiu adiante, dizendo que a letra teria que ser do poeta pernambucano Manuel Bandeira. Logo ligou para Bandeira (1h30 da madrugada). Tal foi o entusiasmo do poeta, que ao amanhecer a letra estava pronta e era: “Portugal meu avozinho”. Diga-se que para Bandeira, “avô” tem uma importância enorme na sua sensibilidade, pois um dos seus mais belos poemas: “Evocação do Recife”, num dos versos está: “Rua da União – a casa de meu avô/ tudo lá parecia impregnado de eternidade”.

Em pouco tempo, Ari Barroso fez a partitura do que chamou samba-fado, que Bandeira e os amigos aprovaram (em 2014, regravada por Olívia Heime):

Como foi que temperaste,

Portugal meu avozinho,

Esse gosto misturado 

De saudade e de carinho?

Esse gosto misturado

De pele branca e trigueira,

Gosto de África e de Europa,

Que é o da gente brasileira!

Gosto de samba e de fado,

Portugal meu avozinho.

Ai Portugal que ensinaste

Ao Brasil o teu carinho

Tu de um lado e do outro nós…

No meio o mar profundo!

Mas, por mais fundo que seja

Somos os dois um só mundo!

Grande mundo de ternura

Feito de três continentes.

Ai, mundo de Portugal,

Gente mãe de tantas gentes!

Ai, Portugal de Camões,

Do bom trigo e do bom vinho,

Que nos deste, ai avozinho,

Esse gosto misturado,

Que é saudade, e que é carinho.

Autoridades e amigos presentes.

É chegada, enfim, a hora da entrega desta Casa-Templo à sociedade portuense. E entregá-la carregada de tantos símbolos que desfiamos para colocá-los nas mãos do futuro que se chama: Instituto Pernambuco & Porto. Parafraseando Fernando Pessoa: Da obra ousada, meu caro Zeferino, é sua a parte feita (1). Mas, não termina aqui, nem agora. E, com o mesmo poeta, faço um vaticínio: “nenhum sonho acaba” (2) porque “nós somos nossos sonhos” (3). “O pôr-fazer é só com Deus” (4).

1.Mensagem – Padrão

2. O Marinheiro

3. Poemas aos ingleses

4. Mensagem – Padrão


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