Hermenêutica e a concretização dos Direitos Humanos

 Seminário sobre Direitos Humanos

João Pessoa, 5 de setembro de 2006.

Tema: Hermenêutica e a concretização dos Direitos Humanos

Palavras de: Margarida Cantarelli

Gostaria de agradecer o convite que me foi formulado pelos Professores Luciano Maia e Maria Luíza para participar desta mesa. É sempre um prazer estar aqui em João Pessoa, e, especialmente na companhia para mim por demais honrosas do próprio prof Luciano e do Prof Harbendorf, ambos os verdadeiros conhecedores desta matéria. 

Pensei muito em como abordar este tema, e várias idéias me vieram à mente. Primeiro achei que deveria apreciar as diferentes interpretações que têm sido dadas à obrigatoriedade da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, fruto de Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas. O grupo de países ocidentais, desejoso de que aqueles princípios fossem seguidos por todos os membros da Organização, sob a influência dos seus respectivos  governos democráticos ou redemocratizados no pós 2a Guerra Mundial e de doutrinadores que viam e vêem a obrigatoriedade da Declaração correlacionando-a, numa interpretação aos dispositivos da própria Carta de São Francisco, inclusive do seu preâmbulo (que sabemos não tem valor imperativo, mas pode ser chamado quando necessário para aclarar o conteúdo de um tratado). Outro grupo, capitaneado pela antiga União Soviética e pensadores do chamado Direito Internacional Soviético, considerava que a Declaração tem mero efeito enunciativo de princípios que representavam anseios e propósitos das nações, sem contudo emprestar-lhe o caráter de obrigatoriedade. Embora o debate acadêmico sobreviva, mas o advento dos dois Pactos sobre Direitos Civis e Políticos e o sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, além dos Protocolos adicionais, promovidos pela própria ONU, em 1966, esvaziou o acendrado debate do passado, embora para mim continue uma questão que continua  a merecer reflexão em razão da possibilidade latente de vir a ser reaberta em situações similares no futuro.

Mas, abandonando o tema, pensei em focalizar a interpretação  do parágrafo 2o do art.5o da Constituição Federal antes e depois do advento da Emenda Constitucional n.45/2004 que introduziu um parágrafo 3o ao mesmo artigo. Avanço ou retrocesso? como ficam hierarquicamente os tratados anteriormente aprovados, ratificados  e vigentes do país? Creio que esta questão relevantíssima será objeto de exposição de outros participantes em razão da importância que traz em si. Para mim, como tenho continuadamente afirmado, os tratados internacionais relativos aos Direitos Humanos anteriores à EC45 têm status constitucional. Considero, com relação ao parágrafo 3o , um retrocesso que poderá causar ainda maiores problemas de interpretação quando da aplicação, criando tratados de duas categoriais, aqueles aprovados com o quorum determinado no referido parágrafo e que adquirirão a hierarquia constitucional e outros que, também aprovados, mas não logrando o quorum, não terão, por óbvio, status constitucional. No aplicador recairá mais um problema, procurar saber o quorum de aprovação obtido pelo tratado para resolver alguma questão que verse sobre conflito entre uma lei ordinária e  um tratado internacional!

Parti para um outro ponto, de não menor relevância todavia com menos destaque, relativo à interpretação das normas de Direitos Humanos, qual seja o da conflituosidade de princípios. Muitos casos já estão presentes nos nossos Tribunais.

Li um interessante artigo de Luís Roberto Barroso, que está no “jus navegandi” sobre o “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito”, onde o autor analisando os tempos de hoje diz “que não pode o intérprete beneficiar-se do distanciamento crítico em relação ao fenômeno que lhe cabe analisar. Mas, ao contrário, precisa operar em meio à fumaça e à espuma”. Daí ele busca explicar o uso tão frequente dos prefixos: pós e neo – pós-modernidade, pós-positivismo, neoliberalismo, neoconstitucionalismo, neojusnaturalismo, etc.,etc. 

Mas, este intróito vem a pretexto do neoconstitucionalismo que ao apreciar o seu marco filosófico o põe como conseqüência do pós-positivismo trazendo à reflexão a superação da velha dicotomia positivismo versus jusnaturalismo. O “pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e a aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos sobretudo os judiciais”.

Dentro dessa visão aponta como características: a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores  e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma nova teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana.

No marco teórico, reconhece o autor três grandes transformações no Direito Constitucional: a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; a expansão da jurisdição constitucional e c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.

Esse enfoque dado pelo neo-constitucionalismo que é uma decorrência natural da força normativa da Constituição não aposenta os clássicos métodos de interpretação do direito, como o gramatical, o histórico, o sistemático e o teleológico, nem os critérios tradicionais de solução de conflitos normativos tais como o hierárquico (a lei superior prevalece sobre a inferior), o temporal (lei posterior revoga a anterior) e o especial (lei especial prevalece sobre a geral). Boa parte das questões jurídicas ainda continuam a ser resolvidas através de tais métodos.

Ainda convém referir que a jurisprudência e a doutrina têm afirmado (ou confirmado) alguns princípios específicos aplicáveis à interpretação constitucional, de natureza instrumental, dentre os quais poderemos citar: o da supremacia de Constituição, o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, o da interpretação conforme da Constituição, o da razoabilidade, da efetividade, etc.

Mas, considerando que ainda não são suficientes, é que tem tomado vulto  a nova interpretação constitucional (sincretismo metodológico) com a mais expressiva contribuição da doutrina pátria, sem esquecer algumas decisões judiciais de vanguarda.

A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas grandes premissas: o papel da norma (deve conter em abstrato a solução para os problemas concretos – jurídicos) e o papel do juiz (a quem cabe identificar a norma aplicável ao problema, revelando a solução. O sistema jurídico deve conter a resposta/solução para ser aplicada pelo juiz ao caso concreto). “No modelo convencional, as normas são percebidas como regras, enunciados descritivos de condutas a serem seguidas, aplicáveis mediante subsunção”. É um silogismo (a norma é a premissa maior, o fato é a premissa menor, a solução é a sentença).

Contudo, nem sempre as coisas são tão simples e o sistema tradicional a que me referi não raro deixa de atender satisfatoriamente, quer com relação ao papel da norma, quer com relação ao papel do juiz – este, neste novo momento, torna-se co-participante do processo de criação do Direito, complementando o trabalho do legislador ao fazer valorações nas clausulas abertas, ou ao realizar escolhas entre soluções possíveis.

Assim, a nova interpretação trabalha com diferentes categorias, dentre outras incluem-se, as clausulas gerais, os princípios, as colisões de normas constitucionais, a ponderação e a argumentação. 

Embora muitas das categorias referidas possam e devam ser utilizadas conjuntamente na solução de um caso concreto, fixemo-nos na colisão de normas constitucionais, que podem ocorrer tanto nas de princípios como nas de direitos fundamentais. 

As Constituições modernas são documentos dialéticos que consagram bens jurídicos que muitas vezes se contrapõem. Há choques entre a promoção do desenvolvimento e a preservação do meio ambiente; entre a livre-iniciativa e o direito do consumidor; entre a privacidade do indivíduo e a liberdade de imprensa;e por aí se segue uma infinidade de situações antagônicas que fatalmente levam a conflitos de interesses.

Como solucionar? O juiz não pode deixar de julgar um caso concreto!

É evidente que quando duas normas de igual hierarquia colidem em abstrato, é óbvio que não podem fornecer por si a solução do problema. Nestes casos a atuação do intérprete levará à criação do Direito aplicável ao caso concreto. Aí há a necessidade de ponderação de normas, bens ou valores “será a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível ou, no limite, procederá à escolha do direito que irá prevalecer, em concreto, por realizar mais adequadamente a vontade constitucional. O conceito-chave na matéria é o princípio da razoabilidade”.

Apresentarei algumas decisões dos Tribunais Superiores relativas a colisão de normas constitucionais e, portanto, de igual hierarquia.


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