La cosa juzgada y la defensa del acusado

LA COSA JUZGADA (NE BIS IN IDEM) Y LA DEFENSA DEL ACUSADO

Inicialmente quero agradecer à União Iberoamericana de Advogados – UIBA a oportunidade de participar desta Jornada, ao mesmo tempo em que me congratulo com os seus organizadores pela escolha de um tema tão atual quanto importante.

Peço muitas desculpas pela minha maneira da falar, mas aceitem como um esforço especial de quem procura usar – mesmo que com muitas falhas, este idioma tão belo, que deu forma à inspiração e às obras de tantos gênios da literatura mundial. 

                             A criação da Corte Penal Internacional sempre foi um desejo dos que se dedicam ao Direito Internacional Penal, aos Direitos Humanos e aos Direitos Humanitários. A proximidade de sua instalação exige, agora, que todos nos voltemos para os diversos aspectos do seu futuro funcionamento, a partir do Tratado de Roma de 1998 e outras regras estabelecidas. Todos os setores de profissionais do Direito – professores, magistrados, promotores, advogados, entre outros, deverão estudá-lo sob os ângulos das suas especialidades e experiências. Creio que ao advogado deva interessar, de modo especial, o direito de defesa que exercitará perante a Corte como representante do(s) seu(s) cliente(s), quase sempre o(s) acusado(s). Embora também o possa ser da(s) vítima(s) ou dos seus familiares. 

Portanto, dentro do espírito que entendi ser o desta Jornada, procurarei abordar um aspecto que me parece será relevante para a missão de defender, encartado no Estatuto da Corte Penal Internacional.

Deter-me-ei no estabelecido no seu art.20, que cuida do ne bis in idem e que o texto em espanhol optou pela expressão Cosa juzgada.

ne bis in idem , como é sabido por todos, integra um elenco de princípios do Direito, marcante no Direito Penal e no Direito Processual Penal (embora também presente noutros ramos do Direito, como no Direito Civil, no Direito Processual Civil, no Direito Tributário, etc.) e  reconhecido, de certo modo,  no âmbito do Direito Constitucional, quando  é assegurado o respeito à coisa julgada.

Ignácio Berdugo Gómez de la Torre reconhece que “conectado direta ou indiretamente com os princípios da legalidade e da tipicidade, encontra-se o princípio do ne bis in idem, que obsta a aplicação de mais de uma pena a um mesmo fato ou a aplicação de uma agravante já considerada no tipo básico. O que o princípio ‘proscreve é a duplicidade de sanções para uma mesma pessoa, ou por um mesmo fato ou sanções que tenham um mesmo fundamento’, ou dito de uma outra forma, que tutelem um mesmo bem jurídico”.

Alberto Suarez Sanchez, na sua obra “El Debido Proceso Penal”, no capítulo sobre “Segurança Jurídica”, trata, no item 3, da Prohibición del non bis in idem , diz: “se evita que la experiência jurídica se convierta en una sucessión continua e interminable de procesos y fallos sobre el mismo asunto. Frente a la seguridad jurídica se garantiza que el procesado no sea sumetido a las incomodidades de procesos contínuos sobre el mismo asunto y a que tenga certeza de que el Estado no volverá a hostigar por lo ya juzgado”.

A Convenção de Direitos Políticos e Civis, das Nações Unidas de 1966, no seu longo e detalhado, art. 14, que trata dos direitos das pessoas ante os Tribunais, no seu último parágrafo (7o), diz:

“Nadie podrá ser juzgado ni sancionado por um delito por el cual haya sido ya condenado o absuelto por una sentencia firme de acuerdo con la ley y el procedimiento penal de cada país”.

No mesmo sentido o art. 4o, I, do Protocolo n º 7 à Convenção Européia de Direitos Humanos, sobre ampliação de direitos civis e políticos:

“Nadie podrá ser juzgado o castigado nuevamente en un procedimiento criminal bajo la jurisdicción de un mismo Estado por delito por el cual él ya ha sido absuelto o condenado de acuerdo a la ley y al procedimiento penal de ese Estado”.

Este tema pode ser apreciado em três níveis:

  1. No âmbito interno dos Estados nacionais;
  2. Entre Estados nacionais; e,
  3. Entre Cortes Internacionais e Estados nacionais.

                                A primeira hipótese – dentro de um mesmo Estado: esta é, seguramente, a mais simples. Na maior parte das legislações, há uma norma que proíbe a repetição de processo: um julgamento definitivo impede a propositura de outra ação idêntica, isto é, que tenha as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. É o reconhecimento do princípio bis de eadem re ne sit actio — não pode haver duas ações sobre o mesmo fato ou na forma mais conhecida — ne bis in idem. Esta regra se observa, como mencionei, não só no Processo Penal, mas será neste que aqui vai nos interessar. 

                            Quando o ne bis in idem não aparece diretamente expresso no ordenamento jurídico, subsiste sob o manto das garantias (sob a forma de exceções), através do reconhecimento da litispendência ou, sobretudo, da coisa julgada. Para caracterizá-las há mecanismos processuais, como a exceptio litispendentiae (no Direito brasileiro, por exemplo, previsto nos art.95, I e 110 do Código de Processo Penal) e a exceptio rei judicatae  (art.95, V, 110 do Código de Processo Penal).  A coisa julgada, inclusive, está protegida na Constituição Federal (art. 5o, XXXVI).

A segunda diz respeito ao reconhecimento do princípio entre Estados nacionais: o problema agora se coloca também no âmbito do Direito Internacional, no sentido em que se deve questionar se depois de uma condenação por um Estado, um outro poderá, por seu turno, processar a mesma pessoa pelo mesmo fato. A resposta é menos evidente. Alguns alegam que é possível, considerando que a jurisdição é uma das manifestações da soberania (interna) de um Estado, como de fato o é. Ao exercitá-la, de acordo com as regras de aplicação da lei penal no espaço, estar-se-á, tão só, praticando um ato para o qual tem atribuições inerentes à sua condição de Estado soberano. Nada mais. 

                            Assim, quando acontece a concorrência de jurisdição entre Estados nacionais soberanos, cada um atuando dentro dos limites do seu próprio ordenamento jurídico, poderá ensejar a duplicidade de processos. Os que vêem desta maneira, interpretam que o dispositivo do art.14.7, da Convenção de Direitos Civis da ONU ou o art.4.1, do Protocolo n.7  à Convenção Européia, dizem respeito, exclusivamente, a situações internas, dentro de um mesmo Estado e não entre Estados. 

                          Permitam-me que, mais uma vez, exemplifique com o Direito Penal brasileiro. Quando trata da extraterritorialidade, o art. 7o do nosso Código Penal diz que ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: “I – os crimes: a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, Estados, etc.: c) contra a administração pública, ou por quem está a seu serviço; d) genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil”. Nesses casos, conforme o parágrafo primeiro do mesmo artigo, o agente é punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro. Apenas há a ressalva do art.8o, de que a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversa, ou nela é computada, quando idênticas.

Hoje já se formam concepções mais flexíveis, que se opõem a um segundo processo, levadas por razões mais de eqüidade do que da rigidez da soberania. Há legislações nacionais que começam a adotar tais posições. Como exemplo, o art.692 do Código de Processo Penal da França (Título X – Infrações cometidas fora do território da República, Capítulo II – art. 692 “Dans les cas prévus au chapitre précédent, aucune poursuite ne peut être exercée contre une personne justifiant qu’elle a été jugée définitivement à l’étranger pour les mêmes faits et, en cas de condamnation, que la peine a été subie ou prescrite”.

Alguns textos internacionais – europeus – são mais avançados com relação à autoridade externa da coisa julgada, o que leva ao reconhecimento do ne bis in idem também nas relações entre Estados. Como exemplos, a Convenção Européia sobre o valor internacional dos julgamentos repressivos, da Haia, 28 de maio de 1970, nos artigos 53 e seguintes e nos artigos 35 a 37 da Convenção Européia sobre a transmissão dos processos repressivos de 1972. Todavia, a mais importante é a Convenção de Bruxelas, de 25 de maio de 1987, que consagra o princípio do ne bis in idem e que está adotada, palavra por palavra, pela Convenção de Schengen, de 1990 (artigos 54 a 58).

Quanto à Schengen, deve-se ressalvar que o art.55 da Convenção permite aos Estados fazerem uma declaração segundo a qual eles não estão obrigados às disposições do art.54. São três as hipóteses que podem desobrigar um Estado do ne bis in idem: 1) quando o fato criminoso ocorreu no território do Estado contratante (art.55- 1, “a”); 2) quando atingiram a segurança ou interesses essenciais do Estado contratante (art.55-1, “b”) ou, 3) quando cometidos por funcionários do Estado contratante em violação às obrigações de suas funções (art.55-1, “c”). Contudo, essas excepções devem ser definidas até o momento da aprovação da Convenção e, pelas disposições do art.56, as novas penas que eventualmente venham a ser aplicadas não serão cumulativas, mas computadas.

Chamo atenção para o fato de que, embora seja grave a constatação da possibilidade de duplicidade de julgamentos, ou seja, de uma pessoa ser julgada pelo mesmo fato, em dois Estados diferentes, todavia nestes casos se estará apreciando – tão só – uma concorrência de jurisdição decorrente da aplicação da lei penal no espaço e não a qualidade do julgamento nem a manifestação do Estado-Juiz.

A terceira hipótese diz respeito à relação das Cortes Internacionais, dentre as quais a Corte Penal Internacional, e os Estados nacionais: são poucas e recentes as experiências de Tribunais ou Cortes Penais Internacionais, como todos sabem, datam da segunda metade do século XX: os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, instalados logo após a Segunda Grande Guerra e os recentes Tribunais “ad hoc”, criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, para julgar os crimes cometidos no território da ex-Iugoslávia e em Ruanda.

Como bem afirmou Claude Lombois, quando se referia à noção de crimes internacionais, é que só recentemente o Direito Internacional admitiu dois postulados: que um Estado pode ser submetido às normas do Direito nas relações internacionais e que se pode imputar a um indivíduo as infrações de um Estado. E conclui o seu pensamento, afirmando:

“C’est pourquoi, malgré l’apparence, la notion n’a pás d’histoire”.

Os artigos 10 e 11 do Estatuto do Tribunal Militar de Nuremberg tratam da hipótese de uma pessoa julgada por tal Tribunal vir a ser também processada por Cortes Nacionais. Os casos previstos estavam correlacionados com a possibilidade de o Tribunal poder considerar diversas Organizações como criminosas e o veredicto refletir-se sobre todos os seus membros que, por tal circunstância, teriam cometido o “crime de filiação” (d’appartenance).

O Tribunal “ad hoc” para a ex-Iugoslávia, no art. 9o, trata da Jurisdição concorrente entre ele próprio e os Tribunais Nacionais, inclusive assegurando a sua prioridade sobre as jurisdições nacionais. Diz textualmente o art.9o, 2:

“El Tribunal Internacional tiene prioridad sobre las jurisdicciones nacionales. En cualquier estadio del procedimiento, puede solicitar oficialmente a las jurisdicciones nacionales que se desprendan de un procedimiento en su favor de acuerdo con el presente Estatuto y con su reglamento”.

Especificamente quanto ao ne bis in idem, o art.10 estabelece:

1. “Nadie puede ser convocado ante una jurisdicción nacional por hechos constituyentes de graves violaciones del derecho internacional humanitario en el sentido entendido en el presente Estatuto si ya sido juzgado por esos mismos hechos por el Tribunal Internacional.

2. Quienquiera haya sido convocado ante una jurisdicción nacional por hechos constitutivos de graves violaciones del derecho internacional humanitario no puede ser subsecuentemente llevado ante el Tribunal Internacional, excepto si:

  1. El hecho por el cual ha sido juzgado estaba calificado como crimen de derecho común;
  2. La jurisdicción nacional no ha resuelto de forma imparcial o independiente; la finalidad de los procedimientos llevados a cabo ante ella era sustraer al acusado de su responsabilidad penal internacional; o las diligencias no fueron llevadas a cabo correctamente.

3.    Para decidir la pena a imponer a una persona condenada por un crimen contemplado en el presente Estatuto, el Tribunal Internacional debe tener en cuenta la pena que dicha persona haya podido cumplir ya por el mismo hecho, y que le haya sido impuesta por una jurisdicción nacional”.

O Tribunal “ad hoc” para Ruanda, criado posteriormente ao Tribunal para a ex-Iugoslávia, manteve, praticamente, o mesmo conteúdo do antecessor nos artigos 8o e 9o, não convindo repeti-lo.

O art. 20 do Estatuto da Corte Penal Internacional, que tem como título Cosa Juzgada, no texto em espanhol, e ne bis in idem nos textos em outros idiomas, possui um conteúdo semelhante ao dos Tribunais “ad hoc” que o antecederam. Diz:

“1.Salvo que en el presente Estatuto, se disponga otra cosa, nadie será procesado por la Corte en razón de conductas constitutivas de crímines por los cuales ya hubiere sido condenado o absuelto por la Corte.

2. Nadie será procesado por otro Tribunal en razón de uno de los crimines mencionados en el artículo 5 por el cual la Corte ya le hubiere condenado o absuelto.

3. La Corte no procesará a nadie que haya sido procesado por otro tribunal en razón de hechos también prohibidos en virtud de los artículos 6, 7 u 8 a menos que el proceso en el otro tribunal:

  1. Obedeciera al propósito de sustraer al acusado de su responsabilidad penal por crímenes de la competencia de la Corte; o
  2. No hubiere sido instruido en forma independiente o imparcial de conformidad con las debidas garantias procesales reconocidas por el derecho internacional o lo hubiere sido de alguna manera que, en las circunstancias del caso, fuere incompatible con la intención de someter a la persona a la acción de la justicia.

                                  O princípio do respeito à coisa julgada ou de impedir o ne bis in idem está presente nos parágrafos 1º e 2º, do artigo 20 – ninguém poderá, por um mesmo fato, ser processado duas vezes pela Corte; nem por outro Tribunal, quando já o houver sido anteriormente pela Corte. O parágrafo terceiro, embora inicie com uma regra geral no mesmo teor das duas anteriores (ninguém será processado pela Corte quando houver sido anteriormente por Tribunais nacionais), todavia apresenta as exceções nas alíneas “a” e “b”: 1) se o processo fora conduzido de modo a afastar do acusado a responsabilidade penal por crimes de competência da Corte (ou como diz o art.10 do Tribunal da Iugoslávia – foi julgado como crime comum); ou 2) se não se processou de forma independente ou imparcial, mas com o propósito de não submeter verdadeiramente o indivíduo à justiça.   

São várias as observações que podem ser feitas na ótica da defesa do acusado: a primeira e mais grave é que as exceções do parágrafo terceiro do art.20 partem do pressuposto de que o acusado é verdadeiramente culpado; tanto assim que não contemplam a possibilidade inversa, de um inocente, por perseguição política, por exemplo, ter sido processado de maneira parcial perante uma Corte nacional. Aí não se abre a possibilidade de a Corte Internacional reexaminar o caso (inclusive a pedido do condenado) a fim de apurar a verdade. Embora em todo Estatuto da Corte esteja dito que a sua jurisdição se rege pelo princípio da complementaridade, indubitavelmente, as exceções apresentam-se como um duplo grau de jurisdição apenas admitido para a acusação, nunca para a defesa. Isto pode dar margem à consideração de que a Corte existe apenas para condenar e não para fazer justiça.

A segunda observação diz respeito à imprecisão das expressões usadas, especialmente pela carga subjetiva que contêm, como: “propósito de subtrair”, “instruído de forma não independente ou imparcial”; “circunstâncias incompatíveis com a intenção”, entre outras. Elementos que contenham expressões imprecisas dificultam o trabalho da defesa pela largueza que deixam ao julgador para apreciá-las.

Mas, para que a excepcionalidade seja reconhecida, há que a correlacionar com as questões de admissibilidade do caso e estas estão fixadas no art.17 do Estatuto. Aí, então, além daquelas já referidas e constantes do parágrafo terceiro, “a” e “b”, do art.20, aparecem outras hipóteses de incidência da jurisdição da Corte, igualmente utilizando-se de expressões um tanto imprecisas.

Assim, diz o art.17, 1, “a”, que será inadmissível um caso que estiver sendo objeto de investigação ou processo em Estado que tem jurisdição sobre o mesmo:

“salvo que éste no esté dispuesto a llevar a cabo la investigación o el enjuiciamiento o no pueda realmente hacerlo”.

No mesmo sentido a alínea “b” seguinte, que considera inadmissível um caso que tiver sido objeto de investigação por um Estado competente e este tenha decidido por não promover a ação penal:

“salvo que la  decisión haya obedecido a que no esté dispuesto a llevar a cabo el enjuiciamiento o no pueda realmente hacerlo”.

Para determinar se há ou não disposição de agir em um determinado caso, reza o parágrafo segundo do mesmo art.17, que o Tribunal examinará o processo em si, “teniendo em cuenta los princípios de um proceso com las debidas garantias reconocidas por el derecho internacional” e a constatação de uma ou várias das seguintes condições:

“a) […] que la decisión nacional haya sido adoptada con el propósito de sustraer a la persona de que se trate de su responsabilidad penal por crimines de la competencia de la Corte;

b)que haya habido una demora injustificada en el juicio que, dadas las circunstancias, sea incompatible con la intención de hacer comparecer a la persona de que se trata ante la justicia;

  1. Que el proceso no haya sido o no esté siendo sustanciado de manera independiente o imparcial […]

                               Todavia, o exame da admissibilidade vai além das condições do processo e, no parágrafo terceiro, analisa as do próprio Estado:

“A fin de determinar la incapacidad para investigar o enjuiciar en un asunto determinado, la Corte examinará si el Estado, debido al colapso total o sustancial de su administración nacional de justicia o al hecho de que carece de ella, no puede hacer comparecer al acusado, no dispone de las pruebas y los testimonios necesarios o no está por otras razones en condiciones de llevar a cabo el juicio”.

É muito expressiva a diferença entre as duas primeiras hipóteses aqui analisadas relativamente ao reconhecimento do princípio do bis in idem (dentro de um Estado nacional e entre diferentes Estados nacionais) para  esta terceira (relativamente ao relacionamento das Cortes Internacionais com os Estados nacionais). 

A um, porque nas duas primeiras se discute a aplicação da lei penal no espaço (quer no âmbito nacional quer no da extraterritorialidade), cuida-se de apreciar a competência e os remédios são quase sempre processuais (como nas exceções de litispendência ou de coisa julgada). Nesta terceira hipótese, além do aspecto processual também se analisa o mérito da causa, pois só é possível, por exemplo, saber se alguém foi subtraído da justiça internacional e julgado por um crime comum quando deveria ser por um delito internacional, apreciando os fatos imputados ao acusado, o valor das investigações, as provas colhidas e correlacionando tudo isso com a justeza do julgado. Vai além do processual e é exame de mérito

                            Para o acusado significa mais um julgamento, sendo que, nessa fase, só lhe é dado apresentar impugnação à jurisdição da Corte por uma vez, nos termos do art.19, 2, “a” e art.19,4 do Estatuto. Deverá ser formulada antes do julgamento ou em seu início. Só em circunstâncias excepcionais a Corte autorizará que a impugnação seja requerida mais de uma vez ou em fase ulterior do processo. Mas, a impugnação feita pelo acusado não suspende as investigações do Promotor.  

A dois e por fim, enquanto nas duas primeiras hipóteses examinam-se exclusivamente o caso e a incidência ou não de uma norma jurídica, nesta última aprecia-se também o agir do próprio Estado. Ao lado do acusado também está sentado no banco dos réus o Estado nacional, soberano no exercício de sua jurisdição – é o próprio Estado-Juiz sendo julgado. É o Poder Judiciário, pela atuação dos seus magistrados, que está posto em dúvida.

Como aos acusados, o Estado só pode  oferecer impugnação à jurisdição da Corte, com o permissivo do art.19,2, “b”, “c”, 4  e 5 do Estatuto, sendo que nestas hipóteses o Promotor deverá suspender as investigações até que a Corte decida o incidente (art.19,7). Todavia, poderá solicitar o prosseguimento das mesmas com base no art.19,8.

Se comparada com os poderes do Promotor, a defesa  – tanto do acusado quanto a do Estado, se encontra em desvantagem e  com pequeno espaço para sua atuação.

É bem verdade que a razão da possibilidade de reexame dos casos já processados perante tribunais nacionais vem ao encontro dos anseios da sociedade internacional de não deixar impunes os autores dos graves delitos praticados contra os direitos humanos e os direitos humanitários. Embora indiscutível a motivação, mas não se pode perder de vista, ao mesmo tempo, a preservação de certos mecanismos de equilíbrio jurídico entre a acusação e a defesa, com condição para a justa aplicação do Direito.

Estou certa de que, mesmo com as imprecisões que possam ser apontadas às regras que regerão a Corte Penal Internacional, urge que ela seja instalada e o seu funcionamento certamente permitirá os ajustes e as correções necessárias através de sua própria jurisprudência.

A instalação da Corte Penal Internacional simboliza a consolidação dos valores fundamentais e expectativas compartilhadas por todos os povos do mundo para que prevaleça a equidade sobre a iniqüidade, o Direito sobre a força.  Este será um nobre caminho para a Paz.

Margarida de Oliveira Cantarelli

Professora de Direito Internacional – UFPE/UNICAP   (Brasil)

Doutora em Direito

Desembargadora Federal no Tribunal Regional Federal da 5aRegião –  Brasil.


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