SOLENIDADE EM HOMENAGEM AO DIA NACIONAL DA MULHER
SUBSECCIONAL DE JABOATÃO DOS GUARARAPES E MORENO DA OAB-PE
TEMA: IGUALDADE DE GÊNERO
DATA: 19 DE MAIO DE 2016, ÀS 19,00 HORAS
PALAVRAS DE: MARGARIDA CANTARELLI
Querida amiga Presidente da Comissão de Mulher Advogada da OAB JG/MOR, Maria José do Amaral,
Estimados colegas advogadas e advogados
Senhoras e Senhores,
AGRADECIMENTOS:
Foi com imensa alegria que recebi o convite feito pela minha querida e leal amiga, advogada Maria José do Amaral para participar desta solenidade. Nossa amizade vem de um bem remoto passado, mas sempre muito presente em nosso coração. Agradeço também a gentileza do convite por me fazer relembrar da nossa luta, querida Maria José, companheira de magistério na disciplina Direitos Humanos, criada a duras penas e com efêmera duração, na Faculdade de Direito do Recife, da UFPE.
Meus agradecimentos a todos os presentes que aqui vieram para partilhar deste momento de algumas reflexões sobre tema tão importante quanto a questão da igualdade de gênero.
Receber a medalha “Clara Camarão” tem para mim muitos e importantes significados. Primeiro, por partir da Ordem dos Advogados, Instituição a que pertenci e em que cheguei, na difícil década de 70, a exercer a Vice-Presidência da Seccional de Pernambuco; segundo por ser fruto da generosidade de amigos tão sinceros; terceiro por trazer como patronesse a figura legendária de Clara Camarão.
O TEMA:
A questão da igualdade de gênero está inserida no contexto mais amplo dos Direitos Humanos, no plano geral, ou dos Direitos Fundamentais, no âmbito constitucional, que trazem como razão de ser (ratio essendi) a dignidade dos seres humanos. E não se pode admitir dignidade que não traga a igualdade como condição essencial.
E quando se fala em igualdade, não se está referindo à igualdade física, porque não há duas pessoas iguais, mesmo os gêmeos univitelinos, têm pequenas diferenças, quase imperceptíveis, mas têm. Sabe-se que as impressões digitais são únicas e, por tal, usadas para identificação individual.
A igualdade que se busca, muitas vezes em algum tempo ou em algum lugar, como uma quimera, é a igualdade perante o Direito (quando digo Direito vou muito além da Lei), é a igualdade na sociedade, é a igualdade de oportunidades, mas é acima de tudo, a igualdade no respeito e na dignidade do ser humano.
As desigualdades campearam e ainda campeiam pelas razões mais diversas: de raça, de religião, de opções políticas, de classes sociais, de nível econômico, de sexo, de idade, de capacidade física, dentre tantas.
A nossa Constituição de 1988 estabelece no art.1º, dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil, no inciso III – a dignidade da pessoa humana e dentre os objetivos fundamentais, no art.3º, IV, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No art.5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e no inciso I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. E a partir da Lei Maior, toda a pirâmide jurídica deveria assim estabelecer.
Além das múltiplas Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos que estabelecem firme e objetivamente a igualdade entre os seres humanos. Interessante destacar que durante todo o período do Regime de Exceção que o Brasil viveu não houve assinatura, adesão, nem ratificação de Tratados e Convenções sobre Direitos Humanos, todos só passaram a integrar o Direito Interno brasileiro (cumpridas as formalidades nacionais e internacionais) após a Constituição de 1998 e no início da década de 90. Mas, só uma foi ratificada no Governo de João Figueiredo: A Convenção para eliminação das discriminações contra a mulher (1985), embora com algumas reservas que depois de 90 foram eliminadas.
Mas, embora se tenha um razoável arcabouço legal, é isto que se cumpre na vida real? Não. Nem formal nem materialmente.
A HISTÓRIA:
A História nos mostra que essa desejada igualdade, como razão de ser da dignidade humana não está presente, nem nunca esteve em todos os tempos e lugares. O binômio tempo e espaço, lastreado nas fontes culturais que incidem fortemente na sociedade, marcam as desigualdades e discriminações, permanecendo até os nossos dias. A cultura, por um lado, e a educação por outro, são fatores determinantes de condutas, que são inaceitáveis em determinados padrões, mas comuns em outros. Há uma semana (6 de maio de 2016), almoçava num restaurante em Munique, na Alemanha, e na mesa ao lado estava uma senhora de burca preta de quem só víamos os olhos (por trás de óculos), e que não podia se servir em razão da sua veste, enquanto o marido e os filhos se refastelavam com deliciosos petiscos. Uma amiga que estava no meu grupo, de tão chocada, chegou a mudar de cadeira porque não conseguia comer diante de uma cena daquela! E a nossa indagação, reflexão mesmo: como se sentiria aquela senhora, de quem havia sido retirada a forma mais visível de identidade humana – o seu rosto? Talvez achasse natural, não se sabe! Como viajo muito tenho presenciado as mais diferentes situações públicas de tratamento desigual.
Mas, como falamos em História relembro dois exemplos (e poderia trazer outros) de mulheres cuja importância não tem sido avaliada com justiça pela História do Brasil: a primeira, Clara Camarão, mulher guerreira, de extrema coragem ao lado do seu marido Felipe Camarão, mas que não recebeu como ele o reconhecimento após a vitória com a expulsão dos holandeses do nosso território.
A segunda, é a Imperatriz Leopoldina, mulher de D. Pedro I, pertencente à poderosíssima família dos Habsburgos, do Império Austríaco. Graças ao apoio de sua família, foi possível a Independência do Brasil, na forma como ocorreu. Sem esse apoio, o “Grito do Ipiranga” seria inaudível ao resto do mundo. Para ela sobrou os maus-tratos do marido e o esquecimento da História.
A EVOLUÇÃO:
As desigualdades continuam existindo por todos os lados do mundo. Mas, não se pode deixar de reconhecer a evolução que vem ocorrendo na maior parte dos países, especialmente no mundo ocidental no pós 2ª Guerra Mundial, fruto da luta, do sacrifício e da própria vida de muitas mulheres. Como um exemplo, sugiro que assistam ao filme “As sufragistas”, passado em Londres de 1912.
Em termos de Brasil, houve sim progressos. E se mais não avançamos, deve-se aos desníveis econômicos e à carência de educação na nossa sociedade. As modificações legislativas a partir da década de 60 (vou falar sobre isto posteriormente) foram marcantes. Os grupos organizados tiveram papel reivindicatório forte além das denúncias trazidas a lume. Indiscutível e louvável.
Mas, vejo dois grandes aliados pouco explicitados nesse caminhar, relativamente à elevação profissional da mulher: o vestibular e o concurso público. Isto porque ambos privilegiam o mérito e não o compadrio! É o QI significando “quociente de inteligência” e não “quem indicou”! É o acesso às Universidades e aos cargos públicos, é a possibilidade de ter uma carreira pelo esforço, dedicação e inteligência próprios.
Ontem (18 de maio de 2016), já bem tarde da noite (quase hoje) assisti uma entrevista feita por Roberto D’Ávila, de uma neurocientista brasileira – Suzana…. que pesquisa sobre o cérebro humano. E ela dizia que é constantemente questionada sobre como é ser uma “cientista mulher”. Ao que ela reage, “se quiser saber como é ser cientista eu lhe respondo, mas não associando ao fato de ser mulher”.
Mas, reconheçamos, ainda há um longo caminho a palmilhar.
A MINHA HISTÓRIA
Como sou idosa, tenho a minha história pessoal de vida e profissional.
Era a mais nova de uma família de quatro irmãos: dois irmãos mais velhos, minha irmã e eu, a caçula. Minha irmã sempre foi muito disciplinada e aceitava com gosto os padrões dos anos 50/60, próprios para as moças de família daqueles tempos. Eu, ao contrário, sempre fui inquieta, insurgente, rebelde, levada pelas leituras (lia tudo o que chegava às minhas mãos, em casa ou nas Bibliotecas Públicas) procurava descobrir o mundo. Quebrei a tradição de uma família de médicos e fui estudar Direito, movida por um desejo de fazer Justiça, numa época de turmas com apenas 10% de alunas. Escolhendo o magistério e o Direito Internacional para dedicação acadêmica, em 1968 ganhei uma bolsa de estudo do Governo da Holanda (nunca viajei nem fiz cursos por conta do governo brasileiro) e fui fazer pós-graduação na Haia, sonho de todo internacionalista. Naquele tempo só se admitia que as moças muito ricas estudassem em Colégios na Suíça, o que não era o meu caso. Lembro-me do comentário do marido de uma prima do meu pai: “se filha minha fosse sozinha estudar na Europa, quando voltasse não entrava em casa”!
Viver na Europa nos anos 68 e seguintes, quando a juventude rompia com todos os padrões das gerações anteriores, na maneira de pensar, de vestir, nos costumes, na música, em tudo! Conviver com pessoas de todas as partes do mundo, ter oportunidades de estudar e viajar muito, de conhecer pessoas (vi Josué de Castro chorando com saudades do Brasil e Elis Regina perguntando quantos anos achávamos que ia durar a Revolução!). Um tempo de aprender a ser livre. Foi uma experiência excepcional que marcou definitivamente a minha vida e a minha maneira de ver o mundo. Para mim, tornou-se óbvio a igualdade entre as pessoas e o respeito à dignidade de todos os humanos. E disto nunca abri mão.
Mas, ao longo da vida conheci algumas discriminações, sem nunca deixar de fazer o que era o meu objetivo em razão de ser mulher e ser canhota!
Na vida profissional, advogava, mas desejava a magistratura. Naquela época o Tribunal de Justiça não acatava as candidaturas femininas ao cargo de Juiz. E isto durou muito anos até porque no tempo do Regime de Exceção, as exclusões de candidatos inscritos não precisavam de explicações. Fiz, então, concurso para o Ministério Público, depois entrei na atividade política até que realizei o meu sonho de ser juíza. Exerci a magistratura dando o melhor de mim, até que a lei do tempo me fez parar.
Que contribuição entendia que deveria dar à questão feminina? Qual seria o meu papel? Em cada luta as pessoas têm papeis diferentes: uns mais visíveis, outros mais discretos de acordo com as oportunidades e a capacidade. Entendi que o meu papel deveria ser: primeiro, o exemplo – quebrando tabus e mostrando que era possível a uma pessoa comum, igual a qualquer outra, ser a 1ª mulher vice-presidente de Seccional da OAB no país (1975); a 1ª mulher a ser Secretária de Estado Chefe de Casa Civil no país (1979); ser a 1ª mulher a ser candidata ao Senado no pais (1986); ser a 1ª (e até agora a única desembargadora federal do TRF5ª – em 1999); a 1ª desembargadora eleitoral de Pernambuco (2006).
Segundo, nas lutas pela reforma da legislação. Comecei a estudar Direito no tempo que a mulher casada, no Código Civil de 1916, era relativamente incapaz (art. 6º, II) como os silvícolas e os pródigos. Até que veio a Lei conhecida como o Estatuto da Mulher Casada (agosto de 1962). Depois a luta pelo Código Civil na década de setenta (liderada por Silvia Pimentel), até que ficou paralisado em 1975, só vindo a ser retomado no inicio do século XXI. A Lei do Divórcio, 1977. Pequenas alterações no Código Penal (conceito de mulher honesta). Na Constituinte (embora não tenha sido eleita) integrando o grupo do Ministério Público (meu marido João Cantarelli era então o presidente da Associação do Ministério Público de Pernambuco) procuramos contribuir.
Terceiro: no magistério. Entendo que ensinar Direitos Humanos, tanto inseridos no Direito Internacional ou como disciplina autônoma, escrever sobre a matéria, é uma forma de conscientizar os jovens, futuros profissionais do Direito sobre o respeito à dignidade das pessoas.
Quarto: na magistratura, julgar com a sensibilidade para os casos das mulheres acusadas – como, o daquela mulher, considerada pelo juiz de 1º grau como prostituta e negando-lhe o direito à liberdade; ou o da mulher que comprou uma cerveja com uma cédula falsa de 10 reais e foi condenada a 3 anos; ou o daquela educadora de 90 anos, cega, condenada porque o setor financeiro do Colégio que lhe pertencia não fez o recolhimento de determinado tributo! A todas essas situações era preciso reagir e mudar o entendimento existente.
À GUISA DE CONCLUSÃO:
Querida Presidente Maria José do Amaral,
Apesar de todo o avanço, é lamentável que em pleno século XXI continuemos tomando conhecimento ou mesmo presenciando cenas de discriminação e, o que é intolerável, de violência contra a mulher, na nossa cidade, no nosso entorno. A banalidade da violência vai tirando a sensibilidade dos que devem agir, vai calando os que devem gritar, e sobretudo vai cegando os que devem ver.
Não é possível que a nossa sociedade, por falta especialmente de educação, se mantenha machista como nos séculos passados e que ofereçamos às gerações futuras a mesmice de uma acomodação cúmplice.
Que cada uma faça o que estiver ao seu alcance e o que por missão lhe for dado cumprir. Já seria uma grande contribuição à igualdade e à paz social que só com o respeito à dignidade do outro é possível alcançar.
Muito grata a todos pela atenção.