PALAVRAS DE ABERTURA DO SEMINÁRIO SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA
TEMA: O ACORDO ORTOGRÁFICO E A LINGUAGEM JURÍDICA
DATA: 12 DE FEVEREIRO DE 2009 – ÀS 8.30 HORAS
ESCOLA DA MAGISTRATURA – ESMAFE
Margarida Cantarelli
Meus cumprimentos a todos os que se dispuseram a compartilhar desses momentos de um Curso diferente na forma mas que tenho a certeza será interessante e de grande valia.
Quando entrou em vigor o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, logo imaginamos que tínhamos que o conhecer e adotá-lo o mais depressa possível. Pensamos estudá-lo num formato especial, juntando outros aspectos do nosso idioma, de maneira agradável, mas, sobretudo, enriquecedora culturalmente para todos nós. Tivemos o apoio e incentivo da Escola Nacional da Magistratura – ENFAM, registrando os mais sinceros agradecimentos ao Ministro Nilson Naves e a toda a sua assessoria, pelo respeito e confiança na seriedade do nosso trabalho. A Magistratura deveria dar o exemplo de cumprir a lei. Mesmo tendo um tempo para a transição (4 anos), mas não se trata de vacatio legis. É preciso saber a importância desse Acordo para melhor valorizá-lo e aceitar o que de novo ele contém.
Antes de tudo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa é um Tratado Internacional, foi assinado em Lisboa em 16 de dezembro de 1990, por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.
ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Considerando que o projeto de texto de ortografia unificada de língua portuguesa aprovado em Lisboa, em 12 de outubro de 1990, pela Academia das Ciências de Lisboa, Academia Brasileira de Letras e delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, com a adesão da delegação de observadores da Galiza, constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional,
Considerando que o texto do acordo que ora se aprova resulta de um aprofundado debate nos Países signatários,
a República Popular de Angola,
a República Federativa do Brasil,
a República de Cabo Verde,
a República da Guiné-Bissau,
a República de Moçambique,
a República Portuguesa,
e a República Democrática de São Tomé e Príncipe,
acordam no seguinte:
Artigo 1o
É aprovado o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que consta como anexo I ao presente instrumento de aprovação, sob a designação de Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990) e vai acompanhado da respectiva nota explicativa, que consta como anexo II ao mesmo instrumento de aprovação, sob a designação de Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).
Artigo 2o
Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.
Artigo 3o
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor em 1o de janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa.
Artigo 4o
Os Estados signatários adotarão as medidas que entenderem adequadas ao efetivo respeito da data da entrada em vigor estabelecida no artigo 3o.
Em fé do que, os abaixo assinados, devidamente credenciados para o efeito, aprovam o presente acordo, redigido em língua portuguesa, em sete exemplares, todos igualmente autênticos.
Assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990.
PELA REPÚBLICA POPULAR DE ANGOLA
JOSÉ MATEUS DE ADELINO PEIXOTO
Secretário de Estado da Cultura
PELA REPÚBLICA FEDERATIVA
DO BRASIL
CARLOS ALBERTO GOMES CHIARELLI
Ministro da Educação
PELA REPÚBLICA DE CABO VERDE
DAVID HOPFFER ALMADA
Ministro da Informação, Cultura e Desportos
PELA REPÚBLICA DA GUINÉ-BISSAU
ALEXANDRE BRITO RIBEIRO FURTADO
Secretário de Estado da Cultura
PELA REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE
LUIS BERNARDO HONWANA
Ministro da Cultura
PELA REPÚBLICA PORTUGUESA
PEDRO MIGUEL DE SANTANA LOPES
Secretário de Estado da Cultura
PELA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
LÍGIA SILVA GRAÇA DO ESPÍRITO SANTO COSTA
Ministra da Educação e Cultura
O Timor Leste só aderiu ao mesmo em 2004 (evidentemente após a sua independência). O Acordo foi fruto de uma longa negociação entre a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras, atinge 110.000 palavras, o que representa 0,5% de alterações para o Brasil e 1,6% para Portugal e demais países lusófonos. Os críticos alegam que houve um “abrasileiramento” da língua. Mas dos cerca de 230 milhões de falantes, 180 milhões estão no Brasil.
Devo dizer que nunca me envergonhei do idioma do meu país, e dele só abro mão quando é imprescindível, por questões técnicas (conferências internacionais, visita a paises estrangeiros) ou por cortesia, jamais por subserviência ou exibição de “poliglotismo”.
Entendo as resistências de alguns críticos portugueses que se consideram os pais do idioma (e são), pois pelo Acordo são três vezes mais numerosas as modificações para eles do que para nós.
Depois de tantos anos da sua assinatura (16 de dezembro de 1990), o Acordo foi aprovado pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo 54, de 18 de abril de 1995, tendo o Governo brasileiro depositado o instrumento de ratificação em 24 de junho de 1996, no Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, em Lisboa, também conhecido como “Paço das Necessidades”. O Acordo entrou em vigor internacionalmente em 1º de janeiro de 2007, mas só foi promulgado pelo Presidente da República através do Decreto 6583, de 29 de setembro de 2008, prevista a vigência a partir de 1º de janeiro de 2009. Assim, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa é lei interna e, portanto, obrigatório.
DECRETO Nº 6.583, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.
Promulga o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990. |
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e
Considerando que o Congresso Nacional aprovou, por meio do Decreto Legislativo no 54, de 18 de abril de 1995, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, em 16 de dezembro de 1990;
Considerando que o Governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação do referido Acordo junto ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Portuguesa, na qualidade de depositário do ato, em 24 de junho de 1996;
Considerando que o Acordo entrou em vigor internacional em 1o de janeiro de 2007, inclusive para o Brasil, no plano jurídico externo;
DECRETA:
Art. 1o O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, entre os Governos da República de Angola, da República Federativa do Brasil, da República de Cabo Verde, da República de Guiné-Bissau, da República de Moçambique, da República Portuguesa e da República Democrática de São Tomé e Príncipe, de 16 de dezembro de 1990, apenso por cópia ao presente Decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém.
Art. 2o O referido Acordo produzirá efeitos somente a partir de 1o de janeiro de 2009.
Parágrafo único. A implementação do Acordo obedecerá ao período de transição de 1o de janeiro de 2009 a 31 de dezembro de 2012, durante o qual coexistirão a norma ortográfica atualmente em vigor e a nova norma estabelecida.
Art. 3o São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão do referido Acordo, assim como quaisquer ajustes complementares que, nos termos do art. 49, inciso I, da Constituição, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Art. 4o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 29 de setembro de 2008; 187o da Independência e 120o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Celso Luiz Nunes Amorim
http://www.planalto.gov.br/ccivil03/Ato2007-2010/2008/Decreto/D6583.htm
A Espanha já dava o exemplo, através da Associação das Academias de Língua Espanhola, de manter a uniformidade ortográfica (não da pronúncia).
A língua portuguesa era a única que tinha duas ortografias oficiais: uma para Portugal e os países que foram até recentemente colônias portuguesas e outra para o Brasil. Não estamos falando de pronúncia, mas da escrita. As duas ortografias oficiais causavam muitos problemas, perdendo o idioma em prestígio internacional mesmo tendo em torno de 230 milhões de falantes, sendo a 3ª língua mais falada do ocidente (suplantada apenas pelo inglês e o espanhol) e 5ª do mundo. Sempre se punha a dificuldade – em qual das ortografias seria redigido um texto.
Imaginem por exemplo, se o Brasil entrar no Conselho de Segurança da ONU e o português passar a ser uma das línguas oficiais. Mas, qual? Para Portugal e demais países da Comunidade lusófona seria uma ofensa! Na União Européia o português era o de Portugal, no Mercosul o do Brasil.
Mas, os problemas existentes são de toda ordem. Há algum tempo houve uma doação de livros para Angola, Timor e outros países lusófonos, feita pelo Brasil. Os livros escolares não serviram, os estudantes se os utilizassem passariam a escrever errado, para seus paises. De outro lado, o mercado leitor brasileiro (embora tenhamos grande número de analfabetos) é muito maior do que o de qualquer outro país lusófono. Hoje, mesmo no campo do Direito, vários autores têm escrito para o Brasil, como Gomes Canotilho, Oliveira Ascensão, entre outros.
Mas, veja-se, numa breve saudação que eu dirigirei a todos, quantas palavras sofreram alteração. Assim:
Hoje é uma quinta-feira (continua com hífen) e eu cumprimento tão seleta plateia (sem acento agudo), sei que vocês também creem (sem circunflexo) que as mudanças propostas no Acordo Ortográfico são superrimportante (sem hífen e com dois rr). Isto porque o idioma não é apenas parte relevante da nossa identidade cultural, mas o nosso principal instrumento de trabalho. Nós, como magistrados, sobretudo (sem hífen) ESCREVEMOS – decisões interlocutórias (continuam juntas), sentenças, votos, acórdão, já as partes apresentam contrarrazões (sem hífen, com dois rr).
Dentro da sequência (sem trema) dos cursos que a Escola da Magistratura promove, tivemos a ideia (sem acento agudo) de oferecer, como estreia (sem acento agudo) de 2009, esta atualização sobre as mudanças na língua portuguesa, que é uma minirreforma (sem hífen e com duplo r) – computando a frequência (sem trema) de cada hora-aula (com hífen), a fim cumprir a exigência da carga-horária (com hífen ?) determinada por semestre, que é ultrarrigorosa (sem hífen e duplo r).
Alguns veem (sem o circunflexo) esta importância, por isso viajaram quilômetros (mesmo ressuscitado o k continua escrito com q) carregando malas, na vinda, com poucos quilos (igualmente com q) e, certamente voltarão superpesadas (sem hífen) de livros, pois sei que todos leem (sem circunflexo) muito. Aos que vieram pelas estradas com má infraestrutura (sem hífen) ou os que fizeram horas de voo (sem circunflexo), espero que estejam bem, pois acredito que todos são super-resistentes (com hífen). Eu perdoo (sem circunflexo) os que não entenderam a importância deste Curso e abençoo (também sem o chapéu) a todos que vieram desejando que aproveitem hiper-bem (com hífen) deste curso super-interessante (com hífen) graças à Profa. Creuza Aragão.
Brincadeiras à parte, o idioma que falamos e escrevemos é, como disse, parte importantíssima da nossa cultura. Os nossos escritores – poetas, romancistas, ensaístas, contistas – deram e dão contribuição relevante à literatura mundial. Não vou citar nomes, pois seria uma lista interminável dos conhecidos e com muitas faltas dos nomes dos que ainda não conhecemos.
Daí porque procuramos trazer informações sobre as mudanças na ortografia, juntando com uma pequena mostra sobre alguns destes escritores, particularmente aqueles que nascidos no nordeste, tornaram-se nacionais, e que contribuindo para o enriquecimento do idioma, fizeram relevantes registros da cultura da nossa região.
Não sou professora de português, mas, leio as sentenças que sobem em grau de recurso e fico supersatisfeita (sem hífen) em constatar o quanto todos dominam o nosso idioma.
Apenas, a título de uma reflexão conjunta, ressalto a importância nos nossos textos – decisões, sentenças, acórdãos, etc, de: CLAREZA, OBJETIVIDADE, e de evitar PALAVRAS POUCO USUAIS e DESNECESSÁRIAS EXPRESSÕES LATINAS.
Na Resolução nº 60, de 19 de setembro de 2008, do CNJ, que instituiu o Código de Ética da Magistratura Nacional, observa-se no artigo 11, o dever do magistrado de informar aos interessados de “forma útil, compreensível e clara”. Da mesma maneira, o parágrafo único do art.22 impõe a utilização de “linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível”.
Na Recomendação nº 18, de 4 de novembro de 2008, o CNJ recomenda aos Magistrados Criminais que evitem a utilização das denominações de efeito dadas às operações policiais: Operação Paraíso, Escambo, dentre tantas que a imaginação policial pode batizar.
A clareza e a objetividade são importantes porque o que estamos decidindo diz respeito a outrem. Embora o advogado seja o intermediário entre o Juízo e a parte, mas esta tem o direito de compreender o que foi dito sobre ela. Não estou aqui defendendo que não se usem os termos técnicos – é impossível deixar de chamar apelação de apelação, seria realmente uma apelação!
Toda ciência tem os seus termos técnicos e utiliza-os normalmente; algumas atividades têm até jargões (“presunto”, referindo-se a cadáver; “macaco”, a instalação clandestina de eletricidade; “gato”, ligação d’água irregular; outro dia apareceu num processo os tais “chupa-cabra” ou equipamentos para obter ilegalmente dados de cartões de crédito através dos caixas eletrônicos. “Laranja” deixou de ser apenas uma fruta, e passou a significar alguém que empresta o seu nome para atividades ilícitas, entre muitos outros exemplos).
Na medicina, muitos nomes vêm da sua origem latina ou grega. Assim, em qualquer parte do mundo ocidental se pode compreender quando se está falando em hemácia, hemograma porque “haîma” em grego é sangue, pode apenas mudar a pronúncia! Mas, quanto aos modernos exames, os laudos são elaborados com termos incompreensíveis para os que são fora daquela área. Quem receber o resultado de uma tomografia sua, por exemplo, certamente ao concluir a leitura ficará com fortes dúvidas se ainda está mesmo vivo!
Tenho sido uma vítima da incompreensão dos laudos, nos últimos tempos. Certa feita, fiz uma Tomografia da Face – curiosa resolvi ler o resultado: “Espessamento da mucosa, assumindo aspectos lobulados, sugerindo a presença de cistos de retenção ou pólipos”. Levei correndo o exame ao otorrino, aterrorizada, sem querer dizer o que estava pensando. Mas quando ele me disse vai ter que se operar, marque com minha secretária. Não me contive e quase gritei: é câncer? Ele riu e disse não é uma prosaica sinusite! Só que um laudo médico, em princípio, vai de um profissional (que o elaborou) para outro (que requisitou). E o último é quem dará ao cliente a notícia (boa ou má).
Acompanhei um amigo que estava amedrontado para fazer um exame solicitado pelo oculista, chamado ORBSCAN, numa máquina incrível. Mas ao terminar, a gentil médica disse: “acho conveniente continuarmos vou fazer agora uma ABERROMETRIA”. Ao leigo parece que você vai ter que berrar. Logo perguntada, respondeu – “é para ver as aberrações da sua córnea”. Pior a emenda do que o soneto! Quando terminou o exame tive que deixar o meu amigo em casa, passando mal – do medo.
Como disse, a ciência do Direito também possui os seus termos técnicos, estabelecido em lei com um significado exato e não podem ser modificados ao bel prazer do operador, desde a palavra recurso (que no passado tinha um conotação popular bastante diferente), sentença, acórdão, contestação, ação, denúncia, etc., etc. Mas é preciso cuidado, pois muitas vezes, para evitar a repetição de um termo técnico, utiliza-se exageradamente expressões figuradas, como sinônimas: código de ritos, para o Código de Processo; aclaratórios para os Embargos de Declaração; Remédio Heróico, para Mandado de Segurança ou Habeas Corpus; Sodalício para o tribunal (Corte até que o pessoal entende – nunca vi um povo gostar tanto de Monarquia como o nosso – Rei dos Galetos, Rainha do Mar, Pricesa do Agreste, agora no carnaval temos a inconfundível figura do Rei Momo, e muitos outros).
Nossa ciência é sutil com as palavras. Muitas, parecidas graficamente, são completamente diferentes no sentido, como por exemplo: mandado/ mandato; laudo/lauda; imissão/emissão; édito/edito; elidir/ilidir; dilação/delação, etc. Ressalto que não é contra os termos técnicos, repito, que se tem procurado facilitar a compreensão do direito pelo cidadão em geral. O que se está buscando é simplificar a linguagem não técnica utilizada por alguns quase sempre para causar impressão ou na presunção de eloqüência.
Não procurando justificar, mas buscando explicar algumas causas que levaram o profissional do direito à utilização no vocabulário forense expressões pouco usadas na linguagem coloquial, vejo-as na formação do bacharel (no bacharelismo), já que as primeiras Faculdades de Direito no Brasil datam de 1827, nascidas nos conventos (dos Beneditinos, em Olinda e dos Franciscanos, em São Paulo) um ensino jurídico bastante formal, com vieses humanistas, característicos do seu tempo. Cursavam nas mesmas turmas ao lado dos futuros advogados e magistrados, também poetas, jornalistas, filósofos, políticos, com outra vocação, mas que encontravam nos Cursos Jurídicos a única via de formação superior, profissional (fora o Seminário). Isto transformou as Faculdades de Direito, nas suas origens, em verdadeiros centros de irradiação cultural da região (como ocorreu com a Faculdade de Direito do Recife). A oratória fazia parte da boa formação jurídica. Os debates entre Tobias Barreto e Castro Alves, dos camarotes do Teatro de Santa Isabel, no Recife, ficaram famosos; os discursos abolicionistas de José Mariano e de Joaquim Nabuco, eram inflamados e arrebatadores. Também não se pode esquecer a influência do direito português, cujas Ordenações vigoraram no Brasil mesmo depois da nossa independência. Até hoje o formalismo nos atos judiciários é muito forte em Portugal.
Reconheço como válidas a utilização de algumas expressões latinas, mas com moderação. O nosso Direito está inserido no sistema continental, ou do “civil law” que tem suas raízes no Direito Romano. Às vezes uma pequena expressão, com duas ou três palavras, indica o que se necessitaria de um parágrafo e nem sempre com muita precisão. Algumas já estão consagradas, são intraduzíveis – Hábeas Corpus, por exemplo. Mas, a maioria dos jovens não estudou latim que foi excluído do curriculum. Embora não se aprendesse muito nas escolas, nem mesmo na preparação para o vestibular, mas pelo menos se sabia a pronúncia.
Por falar em pronúncia do latim, eu me lembro que fiz o curso clássico no Colégio Vera Cruz – naquele tempo havia a distinção entre o curso clássico e o científico. A minha professora de filosofia e de latim era uma freira alemã – Irmã Magna. Lamento que como jovem não tivesse percebido a oportunidade de conviver com pessoa tão culta e aprender mais ainda. Ela tinha sido aluna de Heidgger. Na filosofia tudo bem, mas o latim ela ensinava com uma pronúncia alemã. Assim, os conhecidos hic, haec, hoc (este, esta, isto) – huius – huic, eu aspirava o “h”. Quando comecei o cursinho pré-vestibular – Curso Torres, o único existente para Direito, na primeira aula, o Prof. Torres que sabia que eu vinha do Vera Cruz, mandou que eu declinasse, exatamente: hic, haec, hoc! Risada geral! Até hoje tenho que pensar quando vou dizer “ad-hoc”!
Bem, a verdade é que o nosso direito importou muitos brocardos e locuções latinas que ficaram consagradas. Assim, o latim permeia as petições, a fala dos oradores. Na primeira aula do curso de Direito, o aluno ainda não refeito do vestibular, lá vem o mestre: ubi homo, ibi societas; ubi societas, ibi jus (onde está o homem, aí a sociedade; onde está a sociedade, aí o direito)! As locuções como – data venia, ex vi, ex positis, verbi gratia, a quo, ad quem, bis in idem, de cujus, ad nutum, de facto, de jure, erga omnes, ex nunc, ex tunc, inter vivos, status quo, res nullius, sui generis, verbi gratia, sub judice, sine qua non, in loco, entre muitas outras, estão presentes em peças judiciais.
Há também muitos brocardos, lembrarei os mais usuais e conhecidos: dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é a lei); dormientibus non succurit jus ( o direito não protege os que dormem); in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu); nullum crimen, nulla poena sine lege (princípio da legalidade); nemo plus juris ad alium transferre potest quam ipse habet (ninguém pode transferir para outro mais direito do que tem); accessorium sequitur principale (o acessório segue o principal); ex facto oritur jus (do fato nasce o direito).
Há pouco tempo atrás, a Associação de Magistrados lançou uma campanha sobre a clareza na linguagem jurídica. Os magistrados mais novos, pelo que tenho observado, já se livraram do “juridiquês” como demonstração de erudição, usar palavras difíceis pouco usuais, como prova de grande saber!
A “Campanha Nacional pela simplificação da linguagem jurídica”, da AMB, tinha um lema interessante: “ninguém valoriza o que não entende” e foi lançada uma cartilha que recebeu aplausos da imprensa.
A jornalista Lúcia Hipólito teceu grandes elogios em sua coluna, ao lado de duríssimas críticas ao distanciamento que o Judiciário mantinha com relação aos cidadãos. Disse ela: “A Justiça brasileira sempre se manteve muito distante dos cidadãos. A começar pelo vocabulário empregado, quase sempre barroco e muitas vezes desnecessariamente complicado como se fosse feito de propósito para que a população não entendesse e considerasse os magistrados seres superiores. Boa parte das vezes eram sentenças muito mal escritas, essa é a verdade, com citações num latim muito chinfrim…. Uma cartilha simples e didática, tudo o que o Judiciário precisava para se aproximar mais dos cidadãos… Esta é a maneira correta de incluir cada vez mais brasileiros no manto generoso da Justiça. Quando os magistrados descem do Olimpo e se aproximam dos cidadãos, a democracia ganha sempre”.
No cartaz de divulgação da Campanha, havia um pequeno diálogo entre uma advogada e um magistrado, concluindo com a perplexidade do acusado:
Diz a advogada: “Excelência, não há razão para levar o increpado ao ergástulo público”.
Respondeu o Juiz: “Doutora, nesta fase não vigora o princípio ‘in dubio pro reo’. Mantenho a segregação do indigitado”.
Pergunta o acusado: “Mas afinal eu vou continuar preso ou vou ser solto?”
Na fala da advogada há: increpado e ergástulo, palavras incomuns. Increpado quer dizer acusado e ergástulo, prisão. Na do Juiz, “in dubio pro reo”, na dúvida em favor do réu; segregação é manter preso e indigitado é acusado.
A resposta compreensível para o acusado é: você vai continuar preso!
Também não é de se esperar que se responda: tais na pior, meu! Ou na forma chula, pouco recomendável usada por certa autoridade do país.
Há na apresentação da referida Cartilha, um item do enunciado: “Entendeu?”. Deste, citarei um parágrafo que me pareceu mais interessante”
“Afigura-se mesmo ignominioso o emprego da liturgia instrumental, especialmente por ocasião de solenidades presenciais, hipótese em que a incompreensão reina. A oitiva dos litigantes e das vestigiais por eles arroladas acarreta instransponível óbice à efetiva saga da obtenção da verdade real. Ad argumentandum tantum, os pleitos inaugurados pela Justiça Pública, preceituando a estocástica que as imputações e a defesa se escudem de forma ininteligível, gestando obstáculo à hermenêutica. Portanto, o hercúleo despendimento de esforços para o desaforamento do juridiquês deve contemplar igualmente a magistratura, o ínclito Parquet, os doutos patronos das partes, os corpos discentes e docentes do magistério das ciências jurídicas”.
Vou, também, repetir aqui uma brincadeira (com pequenas modificações) que fiz na abertura de um Seminário que promovi anos atrás sobre o relacionamento do Judiciário com a imprensa. Naquela ocasião, para demonstrar aos participantes, como poderia ocorrer dificuldade na compreensão do português para os leigos visitantes, numa simples recepção neste Tribunal.
“Apraz-me, com vivo gáudio, idem os meus eminentes Pares, agasalha-los neste Sodalício, “locus” de um juízo “ad quem”, onde são vergastadas “decisa” “a quo”. Preambularmente das exordiais examinamos, se presentes, o fumus boni juris e o periculum in mora. Acórdãos são objurgados, em juízo rescindendo ou infringentes; invectivados, “inter allia”, mandamus, habeas corpus ou remédio heróico, concedidos ou negados writs.
No Pretório Excelso e no Superior extraímos escólios ou excertos para dar ou negar provimento aos arestos prolatados.
Aqui oficia o Parquet como custos legis ou domus litis.
Ex positis resenhada foi a competência desta Augusta inserta na Lex Mater. Mas, ex-vi do art.535,I do Codex de ritos, entremetam Aclaratórios, se por al assim o aprouverem”.
Evidentemente que há um exagero proposital para minha parte. Não se juntariam tantas palavras menos usadas e expressões latinas ao mesmo tempo. Mas, na realidade, muitas delas ainda aparecem com mais frequência (sem o trema) do que o desejado, distanciando o prolator do receptor.
Para comprovar que essas frases aqui referidas como um chiste, trouxe algumas extraídas de processos reais que casualmente passaram pelas minhas mãos, numa mesma semana:
Numa sentença que subiu em apelação, há a seguinte frase:
“Ultrapassadas as isagoges levantadas pela demandada passo agora a analisar outras questões profligadas”.
Noutro processo, está:
No relatório: O laudo pericial dormitante às fls.138/142
Nos fundamentos: A porfia sob destrame cinge-se em torno dos créditos tributários.
Perlustrando a fio as alegativas deduzidas pela requerente, com amparo, outrossim, no laudo pericial adormecido aos fólios, forçoso é concluir que razão lhe assiste. Com efeito, o cerne da vexata quaestio juris consiste em verificar…
De fato o experto asseverou que… seguindo essa trilha de interlecção,
Demais disso urge esclarecer, não elidindo, portanto, as alegativas da demandante.
Assim, caros participantes, escrevi este texto porque “verba volant scripta manent” (as palavras voam e os escritos permanecem), no intuito de trazer para vocês como uma mensagem, que a clareza e a objetividade na correta aplicação do Direito e a ética no exercício da magistratura são muito mais relevantes do que um amontoado de palavras que poucos conhecem. É importante sim, que a linguagem traduza a retidão das ideias e a beleza da expressão comunicativa – RECTE BENE ET PULCHRE.
Obrigada pela atenção.