O caso dos 7 Povos das Missões

INSTITUTO ARQUEOLÓGICO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO PERNAMBUCANO

Abertura do Cine-auditório Ramires Teixeira

Data: 12 de setembro de 2020 – às 10 horas

Palavras de: Margarida Cantarelli

A FORMAÇÃO DO TERRITORIO BRASILEIRO – vista pelos Tratados Internacionais – o caso dos 7 Povos das Missões

Agradeço o convite para participar da sessão de abertura do Cine-auditório do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. Acho muito interessante a iniciativa do Presidente do IAHGP, Silvio Amorim, de preparar o tradicional auditório do Instituto com equipamentos para apresentação de filmes e documentários que permitirão debates sobre fatos históricos de uma maneira diferente das tradicionais conferências.

Hoje está sendo apresentado e debatido o filme A MISSÃO que ganhou a Palma de Ouro, com um elenco famoso, como Robert de Niro e a trilha sonora de Ennio Morricone. Baseia-se num fato histórico ocorrido no século XVIII conhecido como a Guerra Guaranítica, num território (7 Povos das Missões) que hoje integra o Estado do Rio Grande do Sul. Evidente que, em se tratando de um filme, não se pode exigir um rigor histórico em muitos diálogos e situações. Tem uma bela fotografia, a música excelente e nos permite refletir, num contexto internacional, episódios e fatos relevantes para a formação do território brasileiro. 

Os dois comentadores que me antecederam são historiadores –  Professores Antonio Jorge Siqueira e George Félix Cabral, apreciaram o tema sobre a ótica da História, da missão dos Jesuítas nesta parte da América e a Guerra Guaranítica (dos Índios Guaranis). Escolhi abordar o tema por outro enfoque, o internacional através dos Tratados cujas regras incidiram na Região e suas causas mais remotas.  

A formação do território brasileiro começou a ser objeto de disputa mesmo antes do descobrimento oficial em 1500. Celso de Albuquerque Mello expõe que após o retorno de Cristóvão Colombo da sua primeira viagem à América, os reis de Espanha e de Portugal tentaram reivindicar as terras recém descobertas com fundamento no TRATADO DE ALCÁÇOVAS (1479). Mas, o referido Tratado tinha por objeto o reconhecimento para Portugal das terras descobertas e por descobrir abaixo das Canárias até a Guiné, excetuando as Canárias que já pertenciam à Espanha. Neste mesmo Tratado, a Espanha reconhece como sendo de Portugal as ilhas da Madeira e dos Açores. O referido Tratado teve a aprovação da Santa Sé.     

           Nesse período da História, eram as Bulas Papais que davam ao descobridor o Direito de Propriedade sobre as terras descobertas, o autor do descobrimento teria apenas o Direito de Preferência. Para fazer prevalecer as suas pretensões, a Espanha através dos Reis Católicos – D. Fernando e D. Isabel, começaram a negociar com o Papa Alexandre VI, que era espanhol, melhores condições com relação aos descobrimentos como também influir nos direitos obtidos por Portugal através de Bulas Papais anteriores.  E conseguiram que o Papa Alexandre VI, através das Bulas Eximiae Devotionis e Dudum Sequidem, ambas de 1493, diminuísse e revogasse doações feitas a Portugal por Papas que o antecederam.

Na mesma esteira, veio a Bula Inter Coetera também do ano de 1493 (há controvérsias sobre datas e textos) na qual atribuía ao Rei da Espanha as terras a serem descobertas, desde que não estivessem sob o domínio de príncipe cristão. Na primeira versão não havia menção ao Rei de Portugal. Sob protestos da diplomacia portuguesa, apareceu outra versão onde Alexandre VI dava à Espanha as terras que ficassem a mais de 100 léguas a oeste das Ilhas dos Açores.  

            Mas, foi a ameaça de reação armada de Portugal (D. João II) que levou à negociação de um tratado entre os dois Reinos e que recebeu o nome da cidade de Castela onde foi assinado: TRATADO DE TORDESILHAS, em 7 de junho de 1494, no qual ficou determinado que pertenceria a Portugal as terras descobertas ou a serem descobertas até a distância de 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Era dado aos navios da Espanha o direito de passagem pelos mares portugueses para atingirem os seus domínios.

O Tratado de Tordesilhas era de difícil demarcação (qual das ilhas do Arquipélago de Cabo Verde? Santo Antão? São Nicolau? Embora não fosse grande a distância entre as ilhas). Considero o Tratado indemarcável pela falta de equipamentos capazes de precisar o meridiano ao qual se referia.  Para Arno Wehling, “o Tratado de Tordesilhas é o ato inaugural da diplomacia moderna, pois foi o primeiro acordo entre Estados sem a interferência papal”. O Tratado, a bem da verdade, recebeu posteriormente a chancela do Papa Júlio II (sucessor de Alexandre VI), em 1506.

O Tratado de Tordesilhas serviu para aplacar os ânimos entre Espanha e Portugal. Não evitou, mesmo com a União Ibérica (1580/1640), na interpretação de Moniz Bandeira, que os portugueses e brasileiros ultrapassaram a linha divisória, avançando largamente para o oeste na busca de riquezas. Os espanhóis logo encontram as riquezas e tinham o obstáculo da Cordilheira dos Andes que os conteve. Por outro lado, na Ásia, os espanhóis avançaram nos domínios portugueses, como, por exemplo, nas Filipinas. 

  Mas, a situação dos limites começou a se agravar com a instalação da Colônia do Santíssimo Sacramento, em 22 de janeiro de 1680 (já dissolvida a União Ibérica) por Manuel Lobo, então governador da Capitania Real do Rio de Janeiro, com uma fortificação simples, na margem esquerda da Foz do Rio da Prata. Anteriormente, Martin Afonso de Sousa chegou ao estuário do Prata com a missão de colocar marcos de posse portuguesa. Missão não cumprida em razão de naufrágio da sua embarcação. A ocupação da Colônia do Sacramento em 1680 teve resposta imediata dos espanhóis que a tomaram dos portugueses, mas devolveram no ano seguinte em razão do TRATADO PROVISIONAL DE LISBOA, de 7 de maio de 1681, ficando, assim, na posse dos portugueses de 1683 a 1705. O aspecto relevante, para além da defesa da fronteira sul, era o comércio de escravos africanos, produtos como o açúcar, tabaco, algodão, a manufatura européia, em troca da prata peruana. Os interesses ingleses no referido comércio, a tornou um importante centro de contrabando anglo-português.

Num período de dez anos (1705-1713/1715) a Colônia do Sacramento foi retomada aos portugueses, só vindo a ser devolvida com o TRATADO DE UTRECHT.  

A Guerra de Sucessão espanhola se desencadeou com a morte em 1700 do Rei Carlos II, sem herdeiros diretos. Um herdeiro possível (havia outro pretendente) era o Duque d`Anjou, Felipe de Bourbon sobrinho-neto do soberano falecido e neto de Louis XIV, da França. O Duque D`Anjou assumiu o trono como Felipe V. Mas, as Potências europeias ficaram temerosas de uma possível aliança da Espanha e França. Então, uniram-se constituindo uma Grande Aliança da qual Portugal (D. João V) fez parte ao lado da Inglaterra (Rainha Anne – que saiu as páginas empoeiradas dos registros históricos para as telas do cinema através do filme – A Favorita). 

O Tratado de Utrecht de 1713 (1715) selou a Paz entre as partes, mantendo Felipe V no trono da Espanha, tendo este renunciado a qualquer direito ao trono da França. Muitos foram os ganhos das partes vencedoras e grandes as perdas para a França e a Espanha, especialmente esta última. 

Mas, é de grande importância para o Brasil os ganhos de Portugal através do Tratado de Utrecht.  Da França, Portugal teve reconhecida a sua soberania nas terras da América portuguesa do Rio Amazonas (Vicente Pinzon) ao Oiapoque (correspondendo hoje ao território do Estado do Amapá) e que lhe dava direito ao rio Amazonas e à sua navegação. Sepultado, assim, o sonho francês de estabelecer a França Equatorial. Para a Rainha Anne da Inglaterra (desde 1707, a primeira rainha da Grã Bretanha) interessava bem mais que o Amazonas ficasse nas mãos de Portugal do que passasse para a França, como enfoca Jaime Cortesão. Coube também, ao sul, pelo segundo Tratado de Utrecht, de 1715, a restituição da Colônia do Sacramento a Portugal.

A reação espanhola, ressentida com as perdas impostas pelo Tratado de Paz de Utrecht, foi apoiar o estabelecimento dos Jesuítas espanhóis, com as Missões no Rio Grande de São Pedro: São Francisco de Borja (hoje, São Borja); São Nicolau; São Lourenço Mártir (atual São Lourenço); São João Batista; São Luís Gonzaga; Santo Ângelo e São Miguel Arcanjo.  Missões que se tornaram prósperas, seguindo as regras de Santo Inácio de Loyola, para se tornarem autossustentáveis.

Após o Tratado de Utrecht diversas causas levaram os soberanos de Portugal (D. João V) e da Espanha (D. Fernando VI) a celebrar um Tratado que estabelecesse ou reconhecesse de forma mais próxima da realidade, as fronteiras dos territórios de cada um no continente americano. Evidente que a linha de Tordesilhas nunca fora demarcada e que ambas as partes infringiram o seu traçado: Portugal ultrapassando a linha em direção ao ocidente e a Espanha no continente Asiático. Casamentos entre as famílias reais amenizaram ou acirravam os antagonismos, mas, o crescente poderio inglês que a todos intimidava. 

Em 1750 foi celebrado entre Portugal e Espanha o TRATADO DE MADRI. Nas negociações houve a participação do brasileiro, natural de Santos, Alexandre de Gusmão (“o avô dos diplomatas brasileiros” segundo Araujo Jorge), secretário de D. João V. Também não se pode negar a influência da Rainha da Espanha, Maria Bárbara de Bragança e o amor por sua terra, filha de D. João V. No Tratado de Madri, as duas partes reconhecem suas respectivas infrações ao Tratado de Tordesilhas pelo desrespeito ao Meridiano demarcatório e consideraram que deveriam revogá-los. A partir do novo acordo, o Meridiano é substituído pelo princípio do Direito Romano do: UTI POSSIDETIS, ITA POSSIDEATIS (quem possui de fato, deve possuir de direito). A delimitação seria feita por acidentes geográficos: rios, montanhas, outros. Observa-se que o território do Brasil reconhecido pelo Tratado de Madri em comparação com a linha de Tordesilhas, mais do que dobrou em área ocupada. Logo, era de grande interesse o seu reconhecimento. 

Mas, não se pode deixar de constatar que o princípio estabelecido (UTI POSSIDETIS) só foi parcialmente seguido.  Portugal entregar à Espanha a Colônia do Sacramento (o que não se efetivou em face dos interesses ingleses na região) e a Espanha entregar a Portugal os territórios a leste onde se encontravam os índios colonizados pelos Jesuítas, nos Sete Povos das Missões não se coadunava com o UTI POSSIDETIS, pois desde 1679, com breves interrupções, era Portugal que  detinha a posse da Colônia do Sacramento, como, por outro lado, nunca possuíra a Região onde se encontravam os Sete Povos, e sim a Espanha. 

A reação dos índios guaranis desencadeou os conflitos de que tratou o filme apresentado – a Guerra Guaranítica.

E a questão continuou entre conflitos e tratados de Paz – Tratado de El Pardo, de 1761 que revoga o Tratado de Madri, Tratado de Santo Idelfonso, de 1777, Paz de Badajoz, 1801. Esta foi uma questão territorial que adentrou o século XIX. Paralelamente, os Jesuítas sofreram perseguições e expulsos de vários países e suas colônias. É outra longa história.


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