A História registrava dos homens públicos, preferencialmente, a sua atuação política, os cargos que exerceu, os posicionamentos que assumiu e, nem sempre, dava o merecido destaque a outros ângulos do seu trabalho e das suas realizações. Ainda mais, se essas atividades estivessem voltadas para o social e para as classes menos favorecidas da sociedade. Nas décadas de trinta e quarenta, tais ações eram consideradas muito mais como “obras de caridade” que caberiam à Igreja, às suas Instituições Pias e, também, às senhoras devotas, do que como obras de governo. Talvez por essa visão da ação social, aqueles que se anteciparam no tempo, quase visionários dentro do Poder Público, não tenham recebido os adequados registros pelo seu pioneirismo social. Agamenon Magalhães é um dos homens públicos que têm uma biografia incompleta.
O ex-governador de Pernambuco, que faleceu no exercício do seu mandato, é lembrado como um político hábil, duro, que ocupou cargos de destaque no âmbito federal e que foi interventor em Pernambuco durante o chamado Estado Novo. Timbrar um homem de grande dimensão social pelo exercício de um dentre os muitos cargos que exerceu, é ficar com o transitório e esquecer o permanente. Tanto isto é verdade que o povo, que é o detentor da soberania, o elegeu para um mandato de governador pelo voto livre, num período de plena democracia.
Homenageado após a sua morte com a aposição do seu nome em avenidas, escolas, hospitais e outras instituições, parecia que isto seria o bastante para reverenciar a sua memória. Mas, não! O tempo sozinho se encarrega de soltar a fumaça do esquecimento e os burocratas ajudam-no transformando em siglas estranhas, nomes eméritos.
Dentre as instituições que receberam o seu nome, destaque-se o “Serviço Social Agamenon Magalhães” nova denominação para a “Liga contra o Mocambo”, por ele criada e localizada no bairro de Santo Amaro.
Quando integrei a equipe de Joaquim Francisco, na Secretaria do Trabalho e Ação Social, esta funcionava no 1º andar do prédio do Serviço Social Agamenon Magalhães que já era chamado de SSAM. Naquela oportunidade, conheci de perto os frutos da “Liga contra o Mocambo”, entendi a dimensão e o pioneirismo social dessa Instituição que assim se manteve por décadas.
É preciso mergulhar no tempo e suas circunstâncias para compreender o alcance de determinadas ações. No Recife e adjacências, havia (e lamentavelmente ainda há) uma grande parte da população completamente desvalida. E a palavra é esta – desvalida, sem valor, desamparada! Alguns socorros vinham da Igreja, através da Santa Casa de Misericórdia e para atender os indigentes, o Hospital Santo Amaro!
Embora com precariedade, algumas categorias profissionais tinham um certo amparo assistencial: comerciários, ferroviários, funcionários públicos, etc. Os migrantes (chamados de retirantes) que chegavam à capital fugindo das dificuldades do interior, inclusive das agruras das secas, alojavam-se em moradias extremamente precárias: os mocambos pouco visíveis sobre palafitas ou enterrados na lama dos manguezais nas proximidade dos cursos d’água. Eram homens, mulheres e crianças vivendo dos caranguejos e mariscos, quase como um deles.
Por outro lado, também se encontravam desvalidas muitas mulheres que trabalharam durante toda a sua vida em empregos domésticos e ao final, quando já sem forças e sem saúde, nada tinham para sua velhice salvo a caridade de alguma bondosa antiga patroa. Eram as cozinheiras, arrumadeiras, lavadeiras, entre outras.
Pelo que consegui depreender das atividades da “Liga contra o Mocambo”, ela atuava em dois eixos: as Ligas Operárias (Centros Educativos Operários) e as Vilas Populares.
As Ligas Operárias, uma eficiente antecipação do sistema público de saúde, ofereciam gratuitamente assistência médica e odontológica, localizadas nas próprias vilas ou nas proximidades, com horário condizente com a necessidade dos beneficiários. Todos eram atendidos, adultos e crianças, com boa qualidade, num claro respeito à dignidade do ser humano pobre. Tinham o caráter de serviço ao público e não de mera caridade.
As ações educativas desenvolvidas nas Ligas também tinham um diferencial que era um direcionamento profissional. Para os homens, os cursos eram de soldadores, eletricistas, reparadores de rádio (ainda não havia televisão, que depois foi incluído), etc. Para as mulheres, eram corte e costura, flores artificiais (muito na moda) e outros.
Com frequência, havia distribuição no Palácio de máquinas de costura. Como se vê, os cursos não “davam o peixe, mas ensinavam a pescar”. Ainda encontrei diversos núcleos de cursos profissionalizantes em funcionamento.
Quanto às Vilas, conjunto de casas populares, destinavam-se à eliminação dos mocambos, trazendo dos manguezais para habitações dignas aquelas pessoas que viviam em condições subumanas; como também, construindo Vilas para cozinheiras, lavadeiras e outras domésticas, em Santo Amaro. Neste último caso, há um duplo pioneirismo pois visava atender a mulheres as quais exerciam atividades não contempladas em qualquer das modalidades de profissões já reconhecidas legalmente: as domésticas.
E a Liga contra o Mocambo, mesmo quando já se denominava Serviço Social Agamenon Magalhães, continuou construindo casas populares, como a Vila de Ouro Preto, à época a maior vila popular da América Latina, hoje um bairro importante de Olinda.
Quando estive na África do Sul, fui conhecer o Sweto onde viviam segregados nos negros, inclusive os que trabalhavam em Jonhsburgo, na época do Aparthaid. Nunca tinha visto uma imagem do lugar. Ao externar o meu desejo, logo me foi dito que não estava incluído nos roteiros turísticos. Mesmo assim, consegui chegar lá. Chocou-me na saída de Johnsburgo passar pela Estação Ferroviária e ver os vagões destinados ao transporte dos negros entre as duas localidades.
Ao chegar no Sweto, outro impacto me aguardava. Aquele imenso núcleo habitacional era, no estilo de construção das casas, extremamente parecido com a Vila das Cozinheiras do bairro de Santo Amaro. Sweto era um imenso Santo Amaro, só que em cada casa eram amontoadas várias famílias. Foi-nos explicado que Nelson Mandela quando assumiu a presidência levantou os valores pagos pelos moradores ao governo ao longo de tantas décadas. Constatando que era muito superior ao devido para a compra e entregou os títulos de propriedade às famílias. Daí muitas casas já estavam com melhor aparência, há Hospitais, Universidade, Estádio de Futebol construído para a Copa do Mundo e outros serviços, embora ainda instável socialmente.
Essa visita me mostrou outra importante grandeza de Agamenon Magalhães. As casas se pareciam, mas lá no Sweto, era um programa de exclusão social, sem conceder a propriedade, obrigando todo aquele povo a pagar caro por uma moradia e por razão de raça, a viver segregado.
Aqui, ao contrário, cada família tinha desde logo a propriedade de sua casa, qualquer que fosse a cor da sua pele, era um real programa de inclusão social.
Se tudo isto não está nos registros históricos em torno da figura pública de Agamenon Magalhães, é lamentável porque o seu exemplo ensinaria aos gestores de hoje o como tratar dignamente o ser humano. Mas, eu sei porque vi, o maior dos reconhecimentos que é a gratidão daqueles que de invisíveis caranguejos se tornaram homens e daquelas que da beira do fogão ou dos tanques, passaram a ter um teto como seu lar.