FACULDADE INTEGRADA DO RECIFE – FIR
14 DE NOVEMBRO DE 2001.
TEMA: O REFLEXO DA GUERRA NOS DIREITOS DOS ESTRANGEIROS
PALESTRANTE: MARGARIDA CANTARELLI
I – Agradecer o convite – satisfação em estar na FIR
II – Tema: Reflexos da Guerra nos Direitos dos Estrangeiros
Artigo publicado DP/ Gazeta de Alagoas (23/09/2001)
“Mais uma preocupação deve afligir a todos, o perigo de que uma paranóia xenófoba se instale e o estrangeiro volte a ser o “hostis”, o inimigo. Que o racismo, num sentido amplo, fonte de tantas malsinadas referências históricas venha a emergir, levando a uma via contrária ao que se tem buscado ardentemente: a eliminação das discriminações em razão da cor da pele, de lugar do nascimento, da nacionalidade”, entre outras formas.
III – Artigo iniciado: “Depois da vida, a liberdade”
“Ninguém nega que os bens maiores do ser humano são a vida e a liberdade. Vimos o desrespeito à vida de inocentes, que tragicamente encontraram a morte entre chamas e escombros. No primeiro momento, todos os pensamentos e sentimentos voltavam-se para as vítimas e seus familiares, sem contudo, deixar de apreciar os fatos políticos e o simbolismo que emoldurava os atentados.
Agora começam a surgir outras faces do problema cuja dimensão não se antevia no momento da perplexidade. Depois das vidas perdidas, a ameaça recai também sobre a liberdade dos cidadãos.
A sua primeira manifestação está em reações racistas contra pessoas pelo simples fato de ter outra nacionalidade. O estrangeiro passa a ser visto como um inimigo, um ser perigoso e, por isso, deve ser afastado e quase punido pelo que os outros fizeram. Confunde-se muçulmanos com árabes, e os dois com terroristas. Pode até ter havido a coincidência, os terroristas que participaram dos atentados serem árabes e muçulmanos, mas a recíproca não é verdadeira. A preocupação reside em que todos os movimentos que começam com a discriminação e perseguição a pessoas em razão da raça, têm desenvolvido um perigoso processo de antagonismo e violência e finais trágicos. A História está repleta deles e não se precisa buscar referências num passado remoto.
Todo um esforço internacional vinha sendo desenvolvido no sentido de eliminação das discriminações entre pessoas, dentre as quais as decorrentes da raça, da religião, da idade, do sexo, etc. A Conferência Internacional recentemente promovida pelas Nações Unidas e que se realizou na África do Sul, lamentavelmente não fez grande progresso. Por que? Quem se omitiu, quem procurou inviabilizá-la?
Foi enviado ao Congresso americano um projeto de lei restringindo as liberdades civis individuais, especialmente em relação aos estrangeiros. Os direitos e garantias que foram consagrados pela primeira vez na Declaração da Virgínia, de 1776, da Independência americana, antes mesmo da célebre Declaração de Direitos do Homem do Cidadão, da Revolução Francesa de 1789, parecem abalados. Os direitos civis pareciam mais sólidos do que as edificações materiais do país.
Mas não foi por terem sido estas – as edificações materiais – destruídas que aqueles ficaram abalados. Mas pelo simbolismo que os atentados atingiram: o poder econômico (as torres); o poder militar (o Pentágono) e o poder político (cujo alvo inatingido, provavelmente seria a Casa Branca)”.
Parei por aí, não conclui o artigo, achei que poderia parecer uma intromissão nos assuntos internos de outro país. Certas afirmativas não permissíveis no campo acadêmico, mas publicadas pela imprensa talvez não se coadunasse à minha indissociável condição de magistrada. Talvez, quem sabe, possamos encontrar um final neste assunto que vamos examinar conjuntamente.
IV – O Tema propõe uma trilogia: guerra, Direitos Humanos e estrangeiros.
A guerra, como conflito armado e organizado é uma prática antiga e constante na vida dos povos. A História da Humanidade é um repertório dos seus relatos.
Na obra clássica “Sobre a Guerra” (Vom Kriege), de Karl von Clausewitz, escrita em 1831 e publicada após a sua morte, o autor via a guerra como um instrumento racional da política nacional. As três palavras “racional”, “instrumento” e “nacional” são os conceitos chaves do seu paradigma. Em seu prisma, a decisão de fazer a guerra ‘deve’ ser racional, no sentido de basear-se na estimativa de suas perdas e ganhos. A guerra ‘deve’ ser instrumental no sentido de que se destina a um determinado objetivo a alcançar, nunca por si própria , e na sua estratégia ou táticas, buscar um fim, nomeadamente a vitória. E, ainda, a guerra ‘deve’ ser nacional, no sentido de que seus objetivos favoreçam os interesses nacionais e os esforços da nação sejam mobilizados ao serviço dos objetivos militares. Embora a guerra tenha mudado desde o já remoto início do século XIX, especialmente no âmbito espacial de sua atuação, vale a definição de Clauzewitz, numa forma muito objetiva: “a guerra é um ato de violência promovido para compelir nosso opositor a fazer a nossa vontade”.
O Direito Internacional , costumava ser dividido pelos autores mais antigos em Direito da Paz e Direito da Guerra. Até porque o Direito Internacional clássico se voltava para a sociedade de Estados e a guerra se operava entre Estados soberanos. O jus belli et pacis – o Direito de fazer a guerra e a paz era prerrogativa do Estado soberano. O Estado vassalo não poderia promovê-la por si, mas aderia à guerra do suserano.
Voltei aos meus velhos livros e no clássico Traité de Droit International Public, de Paul Fauchille, ed. Paris, 1921, há três volumes dedicados à PAIX – Paz, o 4º volume, à Guerre et Neutralité. Interessante observar que naquela época a guerra era sobretudo terrestre e marítima, e das 1095 páginas que compõem o livro, apenas umas dez ou pouco mais são dedicadas à guerra aérea. Como os tempos mudaram!
Hoje há duas ciências voltadas para o estudo da Guerra e da Paz: a Polemologia (ciência da Guerra) – polemos, palavra grega que significa guerra e a Irenologia (ciência da paz), vem da mitologia grega Irene (Eirene), deusa da paz, filha de Zeus (deus supremo dos gregos) e Themis (deusa da justiça). Pela sabedoria grega que a mitologia expressa, portanto, a paz é filha da Justiça!
A Polemologia sempre foi objeto de atenções e estudos. Se no passado se falava na arte da guerra, hoje, mais que nunca ela é ciência, tecnologia, estratégia militar. O desenvolvimento armamentístico exige pesquisa científica, experimentos, movendo uma biolionária industria bélica. Mas a polemologia, enquanto parte da ciência política, volta-se ao estudo das causas da guerra, dos fatores políticos, sociais e econômicos que desencadeiam os conflitos armados.
O Direito, que não dispunha no passado de mecanismos para eliminar de forma efetiva os conflitos (a bem da verdade, nem no presente). voltou-se à regulamentação da guerra, como meio de diminuir os seus efeitos maléficos. Isto ocorreu desde sempre através dos costumes da guerra (normas costumeiras formadas ao longo do tempo pela prática reiterada) depois consolidados em várias Convenções Internacionais formando as chamadas “Leis da Guerra”, hoje integrantes do novo ramo do Direito Internacional – o Direito Humanitário.
Na Antigüidade, em várias partes do mundo, como por exemplo, no Código de Manu, na Índia, já era proibido o uso de armas pérfidas, flechas envenenadas, destruição de campos cultivados, ataques a mulheres e crianças. Por influência da Igreja, na Idade Média, vários institutos foram criados, como a Paz de Deus e a Trégua de Deus, que era a proibição de combate em determinados locais, dias da semana ou durante a celebração de festas religiosas. Alguns Concílios chegaram a proibir, sob pena de ex-comunhão, a venda de armas e barcos para a guerra, e o desrespeito era considerado – contra bannum (contra o proibido) daí a palavra contrabando.
No dizer de Celso de Albuquerque Melo, “a maior contribuição da Igreja talvez tenha sido o conceito de guerra justa, desenvolvido por Santo Ambrósio, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, este, dedica à guerra uma parte da “Summa Theologica: Secunda Secundae – De Bello”.
Alberico Gentili emancipa o jus belli da vinculação teológica, vendo o fundamento do direito das gentes não na lei divina, mas a lei natural. Isto não o afastou dos usos de benignidade aconselhados pelos teólogos, como: o respeito à vida dos prisioneiros e das crianças, à honra das mulheres, à segurança dos agricultores, mercantes, forasteiros e demais pessoas inofensivas. É o que nos mostra o jovem bacharel Barbosa Lima Sobrinho, num opúsculo, talvez a menos conhecida das suas obras, vez que publicada em 1922, sob o título, “A illusão do direito de guerra”.
Das muitas Convenções Internacionais sobre o Direito da Guerra, ou sobre a humanização da guerra, convém lembrar, entre tantas, inclusive anteriores, a 1ª Conferência da Haia de 1899, quando foi criada a Corte Permanente de Arbitragem, assinadas várias Convenções sobre leis e costumes de guerra terrestre, Convenção para adaptação da guerra marítima à Convenção de Genebra de 1864 ( ocasião em que foi criada a Cruz Vermelha Internacional), além de outras proibindo o uso de gazes asfixiantes, lançamento de explosivos e de projéteis de se espalhem ao atingir o corpo humano. A 2ª Conferência da Haia realizou-se em 1907, inclusive com representação latino-americana, estando Ruy Barbosa na Delegação brasileira. Esta Conferência teve um âmbito mais expressivo na regulamentação das leis de guerra. Da época, vale lembrar, ainda, a Conferência Naval de Londres, de 1909, que tratou da guerra marítima.
Com o advento da 1ª Guerra Mundial, foi interrompido o curso da codificação das leis de guerra, e novos esforços só vieram a ser empreendidos, todavia sem grande êxito, sob os auspícios da Liga das Nações, organização internacional de caráter geral que foi criada com o término daquele conflito.
Depois da 2ª Guerra Mundial, foram celebradas as Convenções de Genebra, de 1949 e tantas outras, já sob a égide das Nações Unidas, quer direta ou indiretamente ligadas à guerra, às suas causas e aos meios de minorar seus efeitos devastadores.
Interessante observar que os estudos sistemáticos sobre a paz são bem mais recentes. A irenologia, ciência da paz e os irenistas, confundem-se muitas vezes com o pacifismo e os pacisfistas, levados mais pelos contextos políticos – o tempo da guerra fria, dos conflitos leste-oeste, norte-sul, sem a interdisciplinariedade necessária a uma mais profunda compreensão dos problemas que quebram a paz ou que impedem que ela seja alcançada e mantida.
A História nos mostra na antigüidade (e para sermos verdadeiros, não só durante esse período), que os tratados de paz, quase sempre eram impostos aos vencidos. Ai dos vencidos! A Pax Romana era uma paz imposta.
O primeiro Tratado de Paz negociado, vamos encontrar com a celebração da Paz de Westfália, 1648, depois de três anos de negociações e que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos. A Paz de Westfalia é considerada o marco inicial do Direito Internacional Moderno, representando o momento em que os Estados soberanos discutiram, deliberaram e acordaram em torno dos problemas da época e do porvir.
Não podemos esquecer, entretanto, que o Tratado de Versailles, um dos celebrados no fim a 1ª Guerra Mundial, foi considerado por muitos, como uma das sementes que fez germinar a própria 2ª Guerra.
Os projetos de paz – paz perpétua – nasciam das obras doutrinárias e estão, com freqüência, associados a modelos de criação de órgãos superiores para garantir-lhes a efetividade. Por tal razão encontramos referências aos mesmos ao estudarmos os antecedentes das organizações internacionais.
Vale mencionar, apenas os mais destacados: DANTE, mais conhecido com autor da Divina Comédia, escreveu “Da Monarchia” (1315) onde propõe uma monarquia universal, a fim de que a paz seja assegurada, com a hegemonia do Imperador.
ERASMO, celebrizado pela sua obra “Elogio da Loucura”, em “Querela Pacis”(1517), lembrava a fraternidade dos cristãos, sugeria a arbitragem como forma de solução de litígios e que a guerra só fosse deliberada por toda a nação e não apenas pelo príncipe.
WILLIAM PENN, escreveu “Ensaio sobre a presente e a futura paz da Europa pelo estabelecimento de uma Dieta Européia, parlamento de entendimento ou acordo”( 1693), propunha que fosse composto um Parlamento, com noventa membros, cada Estado teria sua representação de acordo com a importância econômica e demográfica. Solução semelhante à que vem sendo adotada hoje pelos órgãos da União Européia.
JEREMIAS BENTHAM, ficou bastante conhecido por ter sido o primeiro a usar a expressão International Law, no sentido de Direito Internacional e que deu o nome à nossa disciplina, deixou uma obra sobre “Um plano para uma paz universal e perpétua”, escrita em 1786 e publicada após a sua morte.
KANT, cujo pensamento influenciou a filosofia moderna e contemporânea, no ensaio “Sobre a paz perpétua” (1795) propõe uma federação de Estados livres, com a soberania do Direito.
Muitos outros projetos foram apresentados, mas nenhum deles conseguiu atingir os seus objetivos concretamente.
Os primeiros movimentos pacifistas começaram a surgir no século XIX na Inglaterra e Estados Unidos, e os primeiros Congressos Pacifistas teriam ocorrido em Londres, em 1843 e nos Estados Unidos onde cerca de 50 Associações Pacifistas reuniram-se na American Peace Society, sendo o primeiro presidente William Ladd que lutava pela criação de um Tribunal Internacional, sucedido pelo Presidente da Suprema Corte, William Jay.
Mas, o Direito à Paz, só veio a aparecer em documento internacional, na sua formulação negativa, e no contexto do final da 2ª Guerra Mundial, ao considerar crimes certos atos atentatórios à paz, constando do art.6 do Estatuto do Tribunal Militar Internacional para Europa, instituído pelo Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945, a fim de processar e julgar os grandes criminosos de guerra das Potências Européias do Eixo, cujos delitos não tenham localização geográfica precisa. Ou seja, pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberg:
Art.6: omissis
Os atos seguintes, ou qualquer um dentre eles, são crimes submetidos à jurisdição do Tribunal e acarreta uma responsabilidade individual:
- Os crimes contra a paz: quais sejam, a direção, preparação, desencadeamento ou a perpetração de uma guerra de agressão, ou de uma guerra em violação aos tratados, compromissos ou acordos internacionais, ou participação num plano combinado ou num complot para a realização de qualquer dos atos precedentes;
- Crimes de guerra, isto é, a violação às leis e aos costumes de guerra […];
- Crimes contra a humanidade, isto é, assassinato, extermínio, redução à escravidão, deportação e todos outros atos inumanos cometidos contra população civil […]
O art.5º do Estatuto do Tribunal de Tóquio contem o mesmo dispositivo – crimes contra a paz – todavia, numa redação bem mais objetiva.
Nos textos dos dois Estatutos não aprece o tipo penal denominado genocídio, porque ainda não entrara em voga, no jargão do Direito Internacional Penal, tal denominação, utilizada primeiramente pela doutrina.
O Tribunal Internacional “ad hoc” para os crimes cometidos no território da ex-Iuguslávia, não elenca entre os delitos previsto para a jurisdição da Corte, os crimes contra a paz. Refere-se às violações às Convenções de Genebra de 1949; violações às leis e aos costumes de guerra; genocídio e crimes contra a humanidade. Todavia, o próprio Tribunal teve como fundamento jurídico para sua criação o Capitulo VII da Carta da ONU, que diz respeito a “ação relativa a ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão” e foi estabelecido como um meio para a restauração e manutenção da paz naquele território.
O Tratado de Roma de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional, também não tipifica os crimes contra a paz, mas estarão submetidos àquela jurisdição: o crime de genocídio; os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão. E que são esses senão crimes contra a paz?
Na realidade, todos esses crimes são violações aos Direitos Humanos fundamentais. Estes, ou Direitos da Pessoa, como preferem alguns denominá-los, receberam a sua formulação positiva – e podemos considerá-las como as primeiras as já referidas Declarações, a americana e a francesa, impregnadas do espírito iluminista da época. De tal forma transbordaram as fronteiras nacionais que se transformaram, sobretudo a francesa que se tornou mais conhecida, como símbolo e referência aos movimentos políticos liberais que se sucediam, especialmente na Europa.
Mas, foi depois da 2ª Guerra Mundial com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, promovida pelas Nações Unidas, que se recomeçou a laborar no alargamento daqueles direitos que compunham o texto inicial e na promoção das respectivas garantias.
Os doutrinadores costumam classificar os Direitos Humanos em três categorias, ou três gerações, relacionadas com muita felicidade por Karel Vasak, aos ideais expressos pela Revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
Os direitos de 1ª geração, os políticos e civis, correspondem ao ideal de liberdade preconizado pela Revolução francesa “têm a base constituída dos valores fundamentais e invioláveis do individualismo que a pessoa encarna, aos quais devem se subordinar os interesses do poder, em obediência à barreira caracterizada como espaço sagrado da liberdade”: liberdade de expressão, liberdade de locomoção, liberdade de consciência; sigilo de correspondência, respeito ao domicílio e à intimidade. Nessa geração de Direitos o Estado deve se abster, tendo como papel apenas garantir ao indivíduo o pleno exercício dos seus direitos.
A segunda geração(de direitos) reporta-se ao ideal de igualdade, compõe-se de “direitos derivados que se erguem da contínua intervenção do Estado para a promoção de serviços ou auxílios consideráveis, no campo dos direitos econômicos e sociais que incluem: direito à educação, à saúde, ao trabalho, à segurança, à qualidade de vida decente”. Assim, o Estado passa da função de proteger o cidadão, dentro da noção de estado mínimo, para a noção de Estado de Providência, que objetiva proporcionar o bem-estar do cidadão.
Os direitos humanos de primeira e segunda gerações hoje praticamente integram os textos constitucionais modernos dos Estados democráticos de Direito.
A terceira geração dos Direitos Humanos diz respeito ao ideal de fraternidade preconizado pela Revolução francesa. “Essa categoria foi concebida nos últimos anos, para se referir aos chamados direitos globais, que incluem: direito à paz, à solidariedade, ao desenvolvimento e à integração das culturas”.
Esses direitos, pelo aspecto novo que introduzem na concepção dos Direitos Humanos, recebem algumas críticas por não se enquadrarem nos quatro elementos considerados por alguns juristas proeminentes, como imprescindíveis à prevalência dos Direitos Humanos: a existência de um titular, objeto que dê conteúdo ao direito, uma oposição que reaja à violação dos direitos e uma norma, com preceito e sanção, que garanta a sua eficácia.
Já se fala nos direitos da 4ª geração, como o dom de viver com a liberdade de usufruir dos bens inerentes ao patrimônio comum da humanidade, como os fundos dos mares ou o espaço sideral, entre outros.
Ouso discordar dos que não aceitam os Direitos de 3ª Geração, entre os quais o Direito à Paz como um dos direitos humanos. O que acontece é que o Direito à Paz traspassa por muitos dos direitos de 1ª e 2ª geração, como que os amalgamando. E vamos sentir isto muito claro quando refletirmos sobre o momento atual. Como dizia no início desta nossa conversa, com a violação do Direito à Paz, vidas se foram e estão indo, mas foi-se também, e a cada hora mais, em muitos dos seus aspectos, a própria liberdade: de informação verdadeira sobre os fatos que estão acontecendo; de locomoção, restringida a milhares de pessoas em razão da raça ou da religião; do sigilo da correspondência, basta que falte o remetente e pode ser alvo de exames; das contas bancárias, das comunicações, tudo pode ser visto, de repente, como suspeito.
Não estou negando as razões que levam às medidas preventivas ou de segurança, porém é de se constatar mais uma conseqüência de 11 de setembro que não foi sentida concomitantemente aos fatos. Depois que milhares de pessoas perderam e outras tantas estão perdendo a vida, todos nós perdemos, em parte, a nossa liberdade.
Por isso entendo que não precisamos buscar quem é o titular do direito à paz – somos todos os seres humanos; o objeto é poder continuar usufruindo dos direitos de 1ª e 2ª gerações que são negados quando a paz é quebrada; quanto à oposição, ou quem pode reagir, embora sem grandes forças para mudar o quadro, mas a voz de cada um clamando pelo seu restabelecimento. E, ainda, quanto à norma, a máquina judiciária para garanti-lo, esperemos que a sociedade internacional se conscientize de que é preciso dar prevalência ao Direito, força a organizações internacionais ou supranacionais, para fazer valer as normas emanadas, que se instale o Tribunal Penal Internacional para processar e punir os autores daqueles crimes: de guerra, contra a humanidade, de agressão e genocídio, que, como disse, nada mais são do que violações ao direito à paz.
Hoje constamos uma duríssima realidade. Nas raízes dos conflitos, além da violência estrutural aprofundam-se outras causas de rivalidades, de fricção que levam ao confronto. Se as guerras perderam algumas das suas características, as soluções precisam atentar à modificação de tais raízes. Nos dias atuais, também já não se resolvem apenas com a promoção do desenvolvimento, através da cooperação que muitas vezes é fruto de um paternalismo falso. Precisa sim, mas de uma cooperação verdadeira que vá mais além, que exige respeito mútuo e consciência de que somos apenas parte de um todo que é o gênero humano – qualquer que seja o nosso sexo, a cor da nossa pele, o lugar onde nascemos, a religião que professamos ou a escolha política que fizemos .
O ensaista e Professor Sérgio Paulo Rouanet fez uma das mais agudas análises sobre o conflito que estamos vivendo, e deu como título ao seu artigo: “Os três fundamentalismos” – analisando o islâmico, o judaico e o cristão.
Na realidade, a ação dessas três forças torna esta guerra diferente, tanto na sua condução – porque os atores não se movem dentro do modelo clássico Estado versus Estado, mais a maior potência do mundo atual (Estado) versus uma Organização não Governamental Internacional – ONGI, que territorialmente tem seu principal ponto de apoio num dos mais pobres Estados do orbe (Afeganistão). Todavia a localização do conflito não decorreu da pobreza do país, mas de identidades de princípios (assim chamemos) entre o Al-Qeda – que é uma ONGI e governo afegão, chefiados pelo Talibã. E em conseqüência os seus métodos heterodoxos destes, dificultam a encontrar a porta de saída para o conflito, cuja raiz está fora do local do teatro das operações. Se não houver maturidade dos que detêm o poder (ali e fora) para as concessões na sua exata dosagem, e chegar a um tratado de Paz justo, sob a égide do Direito, este conflito terá dimensões imprevisíveis, no tempo e no espaço.
Vimos aquilo que aparentava solidez ruiu como um castelo de cartas – as duas torres, o que parecia inespugnável – o Pentágono, foi atingido com a facilidade de um vôo de pássaro, mesmo metálico. O terror que veio em dose impactantemente gigantesca, e agora, salpicando aqui e ali, com a imprevizibilidade que marca esses tipo de ação, está implantando, com sucesso, o que os italianos chamam de “strategia de la paura” – ou seja, a estratégia do medo. Acrescida de uma nova característica – o espetáculo. Temos o terrorismo espetáculo, cujos atos acontecem cronometradamente, em horário em que todo o mundo está acordado – a Europa, as Américas, o Japão, a Oceania e a China.
E veio o revide da parte ofendida, como dizia no meu artigo inacabado, muito menos em decorrência das vidas perdidas e dos danos materiais sofridos – embora seja isso o que se diz – mas, especialmente por ter se sido a maior humilhação internacional, muito maior que Pearl Harbour, que um Estado Soberano sofreu em tempo de paz, em toda a História moderna.
Relembro as quatro colunas douradas do palco da Ópera de São Francisco no momento da assinatura da Carta da Organização das Nações Unidas que representavam as quatro liberdades que foram exaltadas na célebre mensagem do Presidente Roosevelt ao Congresso americano, em 6 de agosto de 1941:
“No futuro, que procuramos tornar seguro, esperamos que surja um mundo baseado nas quatro liberdades essenciais do homem: a primeira é a liberdade de expressão, em todas as partes do mundo; a segunda é a liberdade de cada pessoa prestar culto ao seu Deus da maneira que lhe aprouver, em todas as partes do mundo; a terceira é a liberdade das necessidades, que traduzidas em termos universais, significa entendimentos comerciais que possam assegurar para cada nação uma vida sadia em tempo de paz, em todas as partes do mundo; a quarta é a liberdade do medo – que traduzido em termos universais, significa uma redução de armamentos em todo o mundo a tal ponto e de modo tão completo que nenhuma nação fique em condições de perpetrar um ato de agressão física contra qualquer vizinho – em qualquer parte do mundo.
Não é utopia para o próximo milênio. É um alicerce definido para o mundo dos nossos dias e da nossa geração”.
Foi isso que disse o Presidente americano naquele momento. É, portanto, nelas que precisamos pensar, são elas que precisamos buscar para que não continuem meras utopias.
Na sala do Conselho de Segurança, no prédio da sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York, há um grande painel ao fundo, de autoria de um pintor norueguês, e está dividido em três partes: na inferior, pintada em cores bastante escuras, há figuras humanas acorrentadas, contorcidas, expressando sofrimento e cercadas por serpentes e estranhos animais – representavam, na visão do artista, a época anterior à criação da Organização . A parte do meio, é clara, cores vivas, com casais aparentando bodas em festa, guirlandas de flores e harmonia – seria a representação do tempo que se esperava viesse com a Organização. A parte superior está esboçada, tem traços que mostram a natureza, mas está inacabada – na razão do pintor, por não saber qual seria o futuro da humanidade.
Os fatos que vêm acontecendo mostram que o artista tinha razão. A utopia continuou utopia. Já não podemos afirmar qual será o futuro da humanidade.
Na seção Tendências/Debates, da Folha de São Paulo, publicada no dia 3 de novembro de 2001, a pergunta colocada era: A nova lei antiterror dos EUA significa um retrocesso nos direitos civis? Respondendo SIM, estava o artigo “Combater o terror sem limitar direitos” de Carlos Miguel Aidar, advogado e Presidente da Seccional paulista da OAB. O articulista apresenta sua grande preocupação com as diversas formas permitidas de quebra de privacidade – desde o sigilo bancário ao rastreamento das mensagens via internet.
Em sentido contrário, respondendo NÃO, está o artigo “Questão de maturidade política”, de Marco Aurélio Velinho de Oliveira Castro, que defende a mensagem antiterror, considerando que a maturidade das sociedades que são levadas a tomar medidas drásticas contra o terror é o fator principal de estabilidade democrática. Não se pode esperar, diz ele, que a adoção de medidas duras seja o farol guia do neototalitarismo. Mas tudo isto pode ser feito com um vigoroso e sério compromisso com o Estado democrático de Direito”.
A nova legislação foi sancionada pelo Presidente Bush, depois de aprovada pelo Congresso americano, em 26 de outubro, e foi batizada pôr “Lei patriótica dos EUA de 2001”. Dentro dos EUA muitos grupos receberam a nova lei com apreensão. Com a lei, fica permitido rastrear de maneira mais eficaz as comunicações de suspeitos, particularmente pôr internet e por e.mail; autoriza um reforço na colaboração entre o FBI e os serviços de inteligência; autoriza a justiça e os serviços de imigração a manter detido um estrangeiro suspeito de atividades terroristas por sete dias sem acusação formal; fortalecimento do controle na fronteira entre EUA e Canadá; reforça as penas em caso de terrorismo e criminaliza o ato de abrigar uma pessoa suspeita de terrorismo; permite congelar os recursos de supostos terroristas, aumenta as sanções e limita a possibilidade de transações entre bancos norte-americanos e estrangeiros com atividades suspeitas; alguns dispositivos devem durar quatro anos.
Evidente que, além de atitudes antisociais com relação ao estrangeiro, agora a lei permite algo impensável, alguém se detido (estrangeiro) sem culpa formada por sete dias.
A Constituição brasileira não permitiria medida semelhante sob pena de inconstitucionalidade.
Os episódios estão acontecendo com tamanha imprevisibilidade que já não se pode fazer o fecho de um tema senão no dia em que for apresentado.
Mas, de tudo que foi dito eu gostaria que vocês refletissem que a paz duradoura só se estabelecerá sob a égide do Direito, dentro da grande sabedoria da mitologia grega – a Paz é filha da justiça.